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Analista político e professor de Relações Internacionais da FGV-SP. Escreve quinzenalmente

Opinião | Democracia americana é mais resiliente do que parece

Se tentar minar a democracia, Trump enfrentará maiores obstáculos do que caudilhos como Orbán e Erdogan

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Foto do author Oliver  Stuenkel

Para cientistas políticos, a volta de Donald Trump à Casa Branca representa um experimento fascinante: o próximo presidente dos EUA, que em vários sentidos se assemelha a caudilhos como Viktor Orbán na Hungria ou Recep Erdogan na Turquia, vai seguir o exemplo dos dois (e vários outros ao redor do mundo) e enfraquecer os famosos freios e contrapesos, fundamento da democracia americana? E, se tentar, conseguirá?

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Há poucas dúvidas sobre as convicções não muito republicanas de Trump, confirmadas em livros e artigos publicados por numerosos ex-integrantes de seu primeiro governo, a maioria dos quais se recusou a apoiá-lo na campanha de 2024. Da mesma forma, é evidente que a retórica trumpista segue a cartilha de líderes com ambições autoritárias: ele não reconhece derrotas eleitorais e fomenta teorias conspiratórias contra o “estado profundo” e “inimigos internos”. Trump chegou a sugerir que Mark Milley, ex-chefe do Estado-Maior, teria cometido traição e mereceria a pena de morte. Motivo: Milley teve a coragem de enfrentar Donald Trump quando este sinalizava que não reconheceria sua derrota em 2020. Trump também prometeu nomear um procurador especial para que Joe Biden fosse preso por traição e ameaçou várias outras pessoas, desde políticos até empresários como Mark Zuckerberg.

Esses comentários geraram a preocupação de que Trump pudesse utilizar o Ministério da Justiça para ameaçar opositores e buscar politizar as Forças Armadas. O próximo presidente dos EUA pediu recentemente que redes de televisão críticas a ele tenham suas licenças de transmissão cassadas, em uma estratégia que ecoa medidas adotadas por Erdogan e Orbán, cujos aliados controlam grande parte da mídia em seus respectivos países.

Presidente eleito dos EUA, Donald Trump deve enfrentar obstáculos nas instituições e na opinião pública em caso de investida contra a democracia americana. Foto: Jabin Botsford/The Washington Post

Trump também ataca juízes verbalmente, ameaça promotores de Justiça e questiona a independência do Banco Central, taxando o presidente do Fed, que ele mesmo havia nomeado, como “inimigo [dos EUA]”. Diante do triunfo eleitoral de Trump, de seu controle sobre o Senado e a Câmara dos Deputados e de uma maioria conservadora na Suprema Corte, analistas têm alertado que o segundo mandato do empresário representa ameaça maior à democracia americana.

Porém, como escrevem os cientistas políticos Eva Bellin, da Universidade Brandeis, e Kurt Weyland, da Universidade de Texas em Austin, há vários motivos pelos quais seria precoce afirmar que Trump seguirá os passos de Orbán e Erdogan.

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Em primeiro lugar, o sistema político americano, baseado em um federalismo robusto e uma separação rigorosa entre os três poderes, oferece obstáculos significativos para qualquer líder autoritário. O controle de Trump sobre o governo federal será limitado pela autonomia de estados e municípios, que frequentemente desafiam o governo central em questões fundamentais.

Em segundo, a sociedade civil nos EUA permanece vibrante e mobilizada. Democracias resistem melhor a ímpetos autoritários quando têm atores organizados dispostos a desafiar o governo e uma cultura política que valoriza a alternância de poder. Nos EUA, o histórico recente de protestos massivos contra políticas de Trump sugere que há uma base pronta para se opor a qualquer tentativa de minar a democracia.

Protesto em Nova York após a eleição de Donald Trump.  Foto: Victor J. Blue/The New York Times

Em terceiro, o ambiente de mídia é altamente diversificado e descentralizado. Diferentemente de regimes autoritários como os de Erdogan e Orbán, Trump dificilmente terá controle direto sobre os principais veículos de comunicação.

Em quarto, Trump enfrentaria obstáculos imensos ao querer cooptar as Forças Armadas para colaborarem em qualquer atividade autoritária. De maneira diversa à de numerosos países ao redor do mundo, onde líderes autoritários deram benefícios econômicos aos generais em troca de apoio político, a cultura militar dos Estados Unidos é fortemente influenciada pelo respeito à Constituição.

Por fim, enquanto líderes autoritários costumam buscar alterar a Constituição para legalizar a erosão da democracia – como ocorreu na Turquia, Hungria, Venezuela, Rússia, entre outros países – alterações nos EUA requerem amplas maiorias no Congresso, o que Trump não tem.

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É verdade que cada líder autoritário segue sua própria receita, mas um ingrediente indispensável a quase todas elas é o tempo. Erodir a democracia costuma ser um processo demorado: Erdogan e Orban chegaram ao poder em 2003 e 2010, respectivamente. É justamente esse ingrediente que Trump não terá, pois a princípio não poderá se reeleger em 2028. Não há dúvida de que os EUA entrarão em um período turbulento e ainda mais polarizado, com tensões internas possivelmente não vistas desde o século 19. O cenário mais provável, no entanto, é que a democracia americana sobreviverá.

Opinião por Oliver Stuenkel

Analista político e Professor de Relações Internacionais da FGV-SP

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