Onda de calor recorde aprofunda crise energética na Europa

Continente tem demanda mais alta de energia elétrica devido às altas temperaturas, e crise iniciada pela guerra na Ucrânia aumenta

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Por Ishan Taaror

Por toda a Europa Ocidental, há sinais do que as autoridades francesas classificaram como um possível “apocalipse de calor”. Em meio a incêndios florestais cada vez mais frequentes, mais de 15 mil pessoas foram retiradas de seus lares na França, de acordo com o Ministério de Interior francês. No Reino Unido, pistas de aeroportos derreteram e trens tiveram a velocidade reduzida por temores de que os trilhos de aço possam se deformar. Meteorologistas sugeriram que esta terça-feira poderia ser o dia mais quente já registrado em algumas partes das Ilhas Britânicas.

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As temperaturas atingiram 46ºC em certas regiões da Península Ibérica, o que provocou dúzias de incêndios florestais. Ao longo da semana passada, houve provavelmente mais de mil mortes relacionadas ao calor na Espanha e em Portugal. Os hospitais estão pressionados por esse problema adicional em meio a um novo aumento no número de novos casos de covid-19. Hidrologistas estão alertando para efeitos mais profundos da seca generalizada, da diminuição dos níveis dos lençóis freáticos e de safras prejudicadas.

Políticos de centro-esquerda associam o calor extremo à evolução das mudanças climáticas. O primeiro-ministro português, António Costa, afirmou que seu país “não tem tempo a perder” e pediu investimentos mais ágeis em fontes de energia renováveis. O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, visitou a região de Extremadura, castigada pela seca e por incêndios florestais, na segunda-feira. “Evidentemente, as mudanças climáticas matam”, afirmou ele. “Matam as pessoas, matam nosso ecossistema, a biodiversidade.”

Bombeiro combate chamas de incêndio no Reino Unido nesta terça-feira, 19. Temperaturas na região chegaram a 40º C, a maior já registrada na história Foto: Loic Venance/AFP

Conforme noticiou a Capital Weather Gang, do Washington Post: “As chances de vermos dias de 40ºC no Reino Unido podem ser 10 vezes maiores no clima atual do que no clima natural, não afetado pela influência humana”, afirmou Nikos Christidis, cientista que estuda as causas do aquecimento global no Escritório Meteorológico do Reino Unido. “A probabilidade da temperatura exceder os 40.ºC em qualquer ponto do Reino Unido em um determinado ano tem aumentado rapidamente, e mesmo com as atuais promessas de reduções das emissões, tais extremos poderiam ocorrer a cada 15 anos no clima de 2100.”

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Essa temperatura extrema jamais foi testemunhada “desde que os registros modernos começaram, um século e meio atrás”, escreveu William Booth a respeito do Reino Unido. “A temperatura chegar aos 40ºC, para os meteorologistas britânicos, é um tipo de evento singular, que já apareceu em seus modelos mas até recentemente parecia quase inacreditável – e impossível em tão pouco tempo.”

Mas mesmo enquanto cientistas e formuladores de políticas europeus reconhecem a necessidade de ajuste em face a um perigo planetário que se assoma, pressões mais imediatas estão empurrando governos para a direção oposta. A invasão russa à Ucrânia – que gerou caos nos mercados globais de energia e rígidas sanções sobre os combustíveis fósseis russos – ocasionou um pico nos preços da eletricidade em todo o continente, e alguns países tiveram sua vulnerabilidade evidenciada por causa de sua dependência em relação ao gás natural e o petróleo produzidos na Rússia para alimentar suas economias de energia.

As consequências das altas temperaturas ocasionaram novas demandas numa parte do mundo em que aparelhos de ar-condicionado não são tão onipresentes quanto nos Estados Unidos. “Esse enorme aumento na demanda por gás natural para geração de eletricidade deve-se principalmente às altas temperaturas registradas como resultado da onda de calor”, afirmou em um comunicado a Enagas, empresa responsável pelo fornecimento de gás na Espanha, na semana passada.

Dúvidas pairam sobre o fornecimento de gás na Europa, onde países se apressam freneticamente para tentar encher seus tanques de armazenamento antes do inverno. “Os próximos meses serão críticos”, afirmou Fatih Birol, diretor-executivo da Agência Internacional de Energia, na segunda-feira. “Se a Rússia decidir cortar completamente o fornecimento de gás antes da Europa conseguir levar seus níveis de armazenamento até 90% da capacidade, a situação ficará ainda mais grave e desafiadora.”

A atenção recai esta semana sobre o gasoduto Nord Stream 1, que liga a Rússia à Europa e nesta quinta-feira tem sua religação agendada, após passar dez dias em manutenção. A Alemanha, particularmente, está apavorada em relação ao que poderá ou não acontecer, dependendo da disposição do presidente russo, Vladimir Putin, e da gigante estatal russa de energia Gazprom abrir ou não a torneira — um corte no fornecimento poderia sair caro também para o Kremlin, mas, não obstante, sufocaria algumas das maiores economias da Europa.

Nesta terça-feira, 19, Putin garantiu que a Gazprom vai cumprir “todas as obrigações” no fornecimento de gás à Europa. “A Gazprom cumpriu, segue cumprindo e cumprirá todas as suas obrigações”, declarou Putin após a reunião em Teerã com o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan.

“Tudo pode acontecer”, afirmou o ministro da Economia alemão, Robert Habeck, em uma entrevista de rádio. “Pode ser que o gás volte a fluir até mais do que antes. Pode ser que não venha absolutamente nada.”

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Alguns comentaristas ocidentais consideram que o blefe de Putin deve ser desmascarado e que a confrontação com o Kremlin deve ser intensificada. “Um longo inverno, gelado e repleto de calamidade, escassez de eletricidade e turbulência está à espreita”, escreveu Simon Tisdall, do Guardian, lamentando a “ilusão” da Otan de que o conflito na Ucrânia poderá se restringir somente àquela nação. “E como num medidor de gás alimentado a moedas, o preço da timidez e da miopia dos líderes ocidentais aumenta a cada hora que passa.”

Para além da guerra, os líderes europeus estão pressionando por um futuro energético livre da dependência em relação à Rússia — mas eles poderão enfrentar escassezes significativas no curto prazo. A perspectiva de um corte súbito no fornecimento do gás russo já levou a Europa a direções problemáticas. Habeck, um dos políticos verdes mais influentes no continente, adotou medidas que violam diretamente compromissos de diminuição nas emissões feitos pelos Estados-membros da União Europeia. E ele não foi o único a agir assim.

“As opções da Alemanha são poucas, imperfeitas e desagradáveis”, observou Constanze Stelzenmuller no Financial Times. “Habeck está religando usinas a carvão imundas e dizendo para as pessoas diminuírem o tempo debaixo do chuveiro. Ele está dinamizando a rede e aliviando restrições ambientais para construir terminais fixos de recebimento de gás natural ao mesmo tempo em que aluga terminais flutuantes. E cortejou líderes autoritários do Golfo em busca de novas fontes de GNL.”

A Europa é seguramente líder mundial na transição para fontes renováveis de energia. Mas a maioria dos países da UE continua dependente do gás natural para ajudar a sustentar a economia durante a mudança. “A guerra na Ucrânia sublinhou a medida em que as ambições (climáticas da Europa) dependiam do gás enviado da Rússia por gasodutos para manter as luzes acesas e as fábricas funcionando enquanto esperam o retorno dos centenas de bilhões de euros em investimento planejado em fontes renováveis de energia, carros elétricos e tecnologias para cortar as emissões da indústria pesada”, notou a Bloomberg News.

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Agora, analistas preveem no futuro próximo uma elevação considerável nas emissões. Vários países europeus aumentaram o uso do carvão, ao mesmo tempo que encorajam novos investimentos a longo prazo em extração e armazenamento de combustíveis fósseis. “Isso me soa como uma tentativa da indústria do petróleo e do gás de contornar o Acordo de Paris”, afirmou Bill Hare, da Climate Analytics, um grupo de consultoria com base em Berlim, referindo-se ao histórico tratado internacional, de 2015, a respeito das mudanças climáticas, em entrevista ao New York Times. “E estou muito preocupado, porque poderão conseguir.”

Por outro lado, especialistas também notam governos europeus dobrando a aposta em investimentos em fontes renováveis de energia, incluindo grandes expansões na capacidade de geração solar na UE. De acordo com análises do grupo Ember e do Centro para Pesquisa e Ar Limpo, as tendências atuais poderiam ocasionar uma realidade em que, em 2030, 63% da eletricidade consumida na Europa seja produzida a partir de fontes renováveis, uma elevação em relação aos 55% propostos pelos governos até o fim de 2019.

“Sempre é arriscado permitir níveis de emissões mais elevados, mas se isso vem aliado a um foco aguçado em desenvolvimento eólico e solar, provavelmente resultará em uma transição energética mais veloz”, afirmou à Bloomberg Charles Moore, diretor do programa para Europa do grupo Ember. “Seria uma estratégia arriscada se houvesse alguma outra opção, mas não há.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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