Desde a vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais de 2024, o Partido Democrata parece sem rumo. A legenda perdeu terreno com eleitores latinos, afro-americanos e da classe trabalhadora branca e não tem uma estratégia coordenada de oposição às rápidas e sem precedentes medidas de Trump. Apesar das exigências do eleitorado do partido por uma postura mais ativa, as atuais lideranças permanecem apáticas, enquanto políticos de menor escalão tentam responder como podem e ameaçam romper com as elites do partido.
O momento do partido expõe uma série de problemas que os democratas vem carregando há anos, como a carência de novos nomes e a falta de uma plataforma consistente. Uma pesquisa da NBC News divulgada no dia 16 de março mostra que apenas 27% dos eleitores têm visões positivas sobre o Partido Democrata. Esta é a pior classificação do partido na pesquisa, que começou a ser feita em 1990.
A mesma enquete mostra que 65% dos eleitores do partido desejam uma oposição mais combativa a Donald Trump. Mas nomes importantes, como os ex-presidentes Barack Obama e Joe Biden, e a ex-vice-presidente Kamala Harris, pouco se manifestaram desde que Trump iniciou os seus bruscos cortes da burocracia federal e o seu giro de 180 graus na política externa americana relacionada à guerra na Ucrânia, União Europeia (UE) e o Canadá.

“O Partido Democrata está sofrendo uma crise existencial”, aponta Carlos Poggio, professor de ciências políticas do Berea College, nos EUA. “O partido não sabe o que representa hoje. Antes era o partido da classe trabalhadora, hoje já não é mais. A legenda sofre com uma falta de mensagem para o futuro e divisões internas”.
Crise
O episódio mais recente desta divisão foi a falta de consenso dentro do partido em relação a uma possível paralisação parcial do governo Trump. Os republicanos precisavam do voto de dez democratas no Senado para aprovar um projeto de lei na sexta-feira, 15, que manteria o governo aberto. Enquanto muitos democratas se opuseram à medida, alegando que o projeto de lei era ruim, o líder do partido no Senado, Chuck Schumer, optou por apoiar o projeto e alinhou outros nove senadores para votar como ele.
Schumer argumentou que uma paralisação daria a Trump e ao Departamento de Eficiência Governamental (DOGE) do bilionário Elon Musk ainda mais poder para desmantelar o governo federal, mas a medida irritou os democratas da Câmara e muitos senadores. Ao ser questionado se tinha confiança em Schumer para continuar sendo o líder democrata no Senado, o líder do partido na Câmara, Hakeem Jeffries, não respondeu a pergunta.
As críticas a Schumer ocorrem em um momento em que a ala mais jovem e progressista do Partido Democrata pede passagem. A congressista Alexandria Ocasio-Cortez, de 35 anos, estuda concorrer contra Schumer, de 74, nas primárias democratas para o posto no Senado por Nova York em 2028. Outros democratas mais velhos, como a ex-líder do partido na Câmara Nancy Pelosi, de 84 anos, também serão desafiados nas próximas primárias.

Em entrevista ao The New York Times, David Hogg, um jovem de 24 anos que foi recentemente eleito como vice-líder do Comitê Nacional Democrata, afirmou que Joe Biden não deveria ter concorrido em 2024 e que o Partido Democrata precisava de mais líderes jovens.
“Isso não quer dizer que não precisamos de pessoas experientes no partido. Precisamos, com certeza. Mas, pelo amor de Deus, realmente precisamos de alguns líderes mais jovens também”, apontou Hogg.
O Tea Party democrata
Para analistas entrevistados pelo Estadão, os democratas precisam montar uma oposição similar ao movimento Tea Party, do Partido Republicano em 2009. Na época, os republicanos passavam por uma crise de identidade após a grande vitória de Barack Obama nas eleições presidenciais de 2008, que alavancou uma maioria democrata em ambas as casas legislativas.
O movimento republicano defendia uma redução do tamanho e alcance do governo americano, menos impostos, um controle mais rigoroso das fronteiras e um forte conservadorismo. O Tea Party balançou o pêndulo do Partido Republicano ainda mais para a direita e se rebelou contra as elites da legenda. Políticos filiados ao movimento desbancaram nomes republicanos mais tradicionais em primárias em todo o país, formando uma oposição ferrenha contra as medidas de Barack Obama.
“A estratégia do Partido Republicano naquele momento era obstruir o presidente Obama de qualquer maneira com o intuito de retornar ao poder e avançar a agenda conservadora”, aponta Douglas Wilson, um consultor democrata que trabalha com políticos do partido. Como legenda minoritária em ambas as casas legislativas, os republicanos não conseguiram obter feitos concretos através de sua oposição, mas impulsionaram uma dedicada base de eleitores.

Nas eleições de meio de mandato em 2010, os republicanos adicionaram 63 cadeiras em sua bancada na Câmara dos Deputados, conquistando a maioria. “A eleição de 2010 foi um marco que mostrou a força dos republicanos. Os democratas precisam usar isso e criar a própria estratégia”, disse Wilson.
O choque geracional do Partido Democrata também passa pela relação com os republicanos. Enquanto a velha guarda da legenda se lembra do partido de George W. Bush, que era mais aberto e conseguia negociar, os membros mais jovens da base democrata só conviveram com os republicanos pós-Tea Party.
“Esse não é o partido de George W. Bush. Aquele Partido Republicano morreu em 2010. Os republicanos que estão em Washington agora querem apenas satisfazer Donald Trump, não querem trabalhar com os democratas”, destaca Wilson.

Novas lideranças
Apesar da posição mais tímida da liderança democrata, políticos do partido têm se destacado por sua oposição mais vocal contra Trump e ocupado as plataformas digitais. Durante a campanha presidencial de 2024, Trump atingiu um eleitorado que não se interessava por política e não votava ao participar de entrevistas com podcasters como Joe Rogan, Theo Von e Lex Fridman.
Entre os congressistas do Partido Democrata, Alexandria Ocasio-Cortez — a líder da ala mais progressista do partido — tem participado de podcasts e realizado eventos online e presencialmente para ressaltar os riscos das medidas de Trump.
No Senado, Chris Murphy, de 51 anos, está se destacando por seus vídeos nas plataformas digitais com fortes críticas ao presidente americano e entrevistas com comediantes e influenciadores. Bernie Sanders, um ícone da esquerda americana, está expressando a sua preocupação com os cortes da burocracia federal e o poder de Elon Musk na Casa Branca em comícios para milhares de pessoas em distritos considerados republicanos nos Estados-pêndulo.
Entre os governadores, JD Pritzker, de Illinois, e Gavin Newson, da Califórnia, e Tim Walz, o ex-candidato a vice de Minnesota, têm se destacado.

Newson criou um podcast e recebeu figuras importantes do movimento trumpista, como o ex-estrategista da Casa Branca Steve Bannon e o influenciador e ativista Charlie Kirk. Durante a entrevista com Kirk, o governador da Califórnia afirmou que a participação de atletas transgêneros em esportes femininos era “muito injusta”. A posição colocou Newson mais próximo do Partido Republicano neste tema e rompeu com o status quo democrata.
“A mudança de discurso de Newson mostra a divisão democrata. Esse tema é muito impopular entre os americanos e não existe um consenso dentro do Partido Democrata sobre qual é a melhor mensagem em relação a isso”, aponta Poggio.
Apesar do esforço destes políticos — que devem participar das primárias democratas em 2028 —o analista ainda não consegue destacar nomes viáveis do partido como potenciais candidatos em 2028. “Existem figuras que fazem esses esforços individuais, mas ninguém tem uma adesão nacional, uma imagem nacionalizada. Esse é o drama do Partido Democrata, eles não tem um Obama, não existe uma figura que possa unir o partido e isso aumenta as divisões”.

Representatividade
Além de uma nova mensagem e estratégia, os democratas precisam correr atrás do prejuízo. O Partido Republicano aumentou a sua fatia do eleitorado em 89% dos condados americanos nas eleições de 2024, segundo um levantamento do jornal The New York Times. Isso significa que mesmo em Estados bastiões democratas como Califórnia e Nova York Trump teve ganhos.
O presidente americano também melhorou a sua parcela de votos entre brancos da classe trabalhadora, afro-americanos, mulheres, asiáticos e árabes-americanos, eleitorados tradicionalmente mais alinhados com o Partido Democrata. Trump foi efetivo em explorar a fraca economia americana para obter mais votos entre os mais pobres, aliando a promessa de diminuição da inflação a uma construção de uma identidade social conservadora.
Para Wilson, os republicanos conseguiram usar essa ideia para conquistar os votos da base democrata, sem oferecer as melhores propostas. “Trump conseguiu promover uma mensagem para os americanos de que suas propostas iriam ajudar eles quando o oposto está acontecendo. Os democratas precisam conseguir reverter essa mensagem e aprender com isso”.
Saiba mais
Em entrevista ao The New York Times, o congressista Jason Crow, de Colorado, avalia que o Partido Democrata é visto pelos eleitores como o partido das elites e perdeu o contato com “grandes áreas do país”. “As pessoas no geral apoiam predominantemente nossas políticas, o que me faz conclui que há questões culturais e de identidade em jogo aqui.”
Para Crow, que derrotou um republicano que estava em seu cargo há cinco mandatos em 2018, a receita para o problema é conversar com os eleitores e ganhar a confiança deles novamente. “Esses eleitores não estão nos ouvindo porque eles não acreditam que nós os respeitamos. Não existe segredo, é preciso aparecer”.
Como se opor a Trump
Depois de dois meses de administração Trump, o Partido Democrata ainda está juntando os cacos e políticos e consultores tentam influenciar os próximos passos do partido. É o caso de James Carville, um famoso estrategista que contribuiu para a vitória do ex-presidente Bill Clinton em 1992.
Para Carville, os democratas devem “se fingir de morto” e deixar os republicanos se prejudicarem sozinhos. “É preciso fazer o povo americano sentir a nossa falta. Estou pedindo uma retirada política estratégica”, disse Carville, em um artigo no The New York Times. “Somente até que o governo Trump tenha chegado aos 40% ou 30% em porcentagens de aprovação pública, é que devemos agir como um bando de hienas e ir direto para a jugular”.
A estratégia foi recebida com ceticismo em diversos setores do partido, que exigem uma postura mais enérgica.

“Trump tem uma tendência de conseguir impulsionar positivamente uma política para os eleitores mesmo que seja ruim. Então a estratégia de simplesmente deixar Trump ser Trump até tudo desmoronar não é boa”, avalia Wilson. “É preciso mostrar que as políticas de Trump vão prejudicar a população”.
Antes de buscar resultados, o que deve mobilizar a base democrata é o engajamento, destaca o estrategista. “O Partido Democrata precisa de consistência, uma mensagem unificada. Figuras mais à esquerda como Bernie Sanders tem isso e até Trump o respeita por isso. Eu sinto falta disso no partido”.