ONU acusa forças da Eritreia de provocarem a morte por fome da população de Tigré

Organização já afirmou que 350 mil dos quase seis milhões moradores da região etíope enfrentam fome catastrófica

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Por Katharine Houreld, Giulia Paravicini e da Reuters

ADIGRAT e ADIS ABEBA — As montanhosas terras do Norte da Etiópia tornaram-se um sinônimo da fome mundial em meados da década de 1980, quando a seca e o conflito armado se combinaram para criar um desastre que matou até um milhão de pessoas. 

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Agora, a fome está perseguindo novamente a região de Tigré, e a principal autoridade da ONU para assuntos humanitários afirma que ela está sendo usada como arma de guerra.

Mais de 350 mil dos quase seis milhões de habitantes de Tigré estão passando fome, de acordo com uma análise feita pela ONU e por grupos de ajuda global. 

Quase dois milhões de outras pessoas estão à beira da mesma situação, segundo as organizações. O governo etíope, por outro lado, contesta as estimativas.

Os combates na região desde novembro de 2020 entre o governo federal e a Frente de Libertação do Povo de Tigré (FLPT), e que também envolve milícias étnicas Amhara e forças da Eritreia aliadas ao governo do primeiro-ministro e vencedor do Nobel da Paz de 2019 Abiy Ahmed, já deslocaram mais de dois milhões de pessoas.

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Pessoas aguardam para receber doação de alimentos em Shire, na região de Tigré Foto: Baz Ratner/REUTERS

Em um dos comentários públicos mais fortes sobre o conflito até agora, a principal autoridade humanitária da ONU, Mark Lowcock, acusou as forças da Eritreia de "tentarem lidar com a população de Tigré matando-a de fome". 

Em uma entrevista à agência Reuters na última quinta-feira, 10, Lowcock afirmou que soldados eritreus e combatentes locais estão deliberatamente bloqueando suprimentos para mais de um milhão de pessoas em áreas fora do controle do governo federal. “Comida está definitivamente sendo usada como uma arma de guerra”, disse.

O governo da Etiópia, a ONU e agências humanitárias entregaram alimentos e outros tipos de ajuda a cerca de 3,3 milhões de moradores de Tigré desde março, segundo o Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha, na sigla em inglês). No entanto, a maior parte dessa ajuda vai para áreas controladas pelo governo, acrescentou Lowcock.

A Eritreia, que travou uma guerra brutal com a Etiópia entre 1998 e 2000, quando a FLPT estava à frente do governo federal, não respondeu aos questionamentos da reportagem. 

O ministro da Informação, Yemane Gebremeskel, já havia dito anteriormente que as acusações de que os soldados eritreus estavam bloqueando ou saqueando os auxílios são "fabricadas".

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Os militares etíopes, o gabinete do primeiro-ministro e o chefe do governo interino em Tigré, apontado por Adis Abeba, não responderam aos pedidos de comentário sobre as afirmações de Lowcock. 

Em 3 de junho, o porta-voz de Abiy, Billene Seryoum, rejeitou as acusações de que as forças de segurança do país estariam usando a fome como arma, classificando-as como sem fundamento e motivadas politicamente.

Mitiku Kassa, chefe da Comissão Nacional de Gestão de Riscos de Catástrofes da Etiópia, que gere a ação do governo contra a crise, acusou a FLPT, que governava a região antes de ser retirada pelo governo federal, de atacar caminhões de alimentos e funcionários humanitários, mas não deu nenhum exemplo do ocorrido quando questionado. 

Na quarta-feira, ele disse a repórteres que mais de 90% das pessoas em Tigré tinham recebido algum tipo de ajuda. “Não há falta de alimentos”, disse ele.

A ONU, no entanto, disse ter recebido relatórios de funcionários tigrés da região de mais de 150 mortos pela fome. Lowcock acredita que muitos mais tenham morrido, mas não conseguiu precisar um número. 

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Ele disse já ver ecos da "tragédia colossal" da fome entre 1984 e 1985 na Etiópia. “Não é estranho... pensar que isso poderia acontecer [de novo] se as ações para resolver o problema não melhorarem”, afirmou.

Nas terras férteis do Oeste de Tigré, os fazendeiros abandonaram os campos cheios de sorgo, teff e gergelim para escapar da violência, segundo relatos mostrados pela Reuters. 

Alguns residentes acusaram as forças de Amhara de roubar suas colheitas e gado, ou expulsá-los de suas fazendas. No Norte e no Leste de Tigré, fazendeiros disseram à Reuters que soldados da Eritreia incendiaram suas safras e depósitos de grãos, e abateram bois necessários para arar a terra.

Estima-se que 90% da safra de 2020 foi perdida, segundo a ONU. Alguns agricultores disseram que agora estão comendo as sementes que seriam usadas para plantar a próxima safra.

Gizachew Muluneh, porta-voz do governo regional de Amhara, disse à Reuters que as forças de Amhara nunca roubariam colheitas, gado ou bloqueariam a chegada de ajuda.

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Antes do início do conflito, quase um milhão de pessoas na região já dependia de ajuda alimentar. O número agora, no entanto, subiu para 5,2 milhões, o que representa 91% da população de Tigré, de acordo com o Programa Mundial de Alimentos da ONU.

O governo não permitiu a entrada de comboios de ajuda humanitária na região nas primeiras cinco semanas de combate, alegando preocupações com a segurança. Embora o acesso tenha melhorado desde dezembro, relatórios semanais do Ocha mostram que áreas de Tigré permanecem fora de alcance.

Conflitos persistentes bloquearam o acesso a muitas áreas rurais, de acordo com a ONU. No final de maio, o Ocha registrou cerca de 130 incidentes de agências humanitárias recusadas em postos de controle e de funcionários sendo agredidos, interrogados ou impedidos de trabalhar na região, disse Lowcock. 

Ele ainda afirmou que os eritreus são "claramente" responsáveis por 50 desses incidentes e soldados etíopes por 50 outros. Membros das milícias de Amhara foram responsáveis por 27 incidentes, acrescentou, afirmando que as forças de Tigré também atrapalharam as operações em pelo menos uma ocasião.

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