Opinião | A extrema direita quer tomar conta da Europa, e quem lidera esta marcha é Giorgia Meloni

Com abordagem pragmática, primeira-ministra italiana conquista protagonismo no bloco europeu e mostra o caminho para o avanço dos radicais

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Por David Broder (The New York Times)

“Só há uma questão para o dia da votação. Vocês querem uma Europa islamizada ou uma Europa europeia?”

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Essa escolha radical foi apresentada por Marion Maréchal, uma estrela em ascensão entre a extrema direita francesa, durante o lançamento da campanha do seu partido para as eleições europeias marcadas para junho. Em um discurso incendiário, ela falou de uma Europeia sitiada por “muitas potências estrangeiras e organizações islâmicas que estão lucrando com a imigração anárquica em seus esforços para promover a instabilidade, subvertendo nossos jovens e organizando algo semelhante a uma quinta coluna nos nossos países, recrutando mortíferos soldados jihadistas”. Ela foi acompanhada por uma série de outros discursos lamentando um projeto europeu sequestrado por ativistas da causa LGBTQ, fanáticos ambientais e ideólogos anti-ocidentais.

Mas, apesar de toda a fúria apocalíptica, este não era um apelo para sair da União Europeia. O partido Reconquista, de Marion, faz ácidas acusações contra as elites por orquestrar uma Grande Substituição dos Cristãos pelos Muçulmanos, mas procura seu próprio lugar nos corredores do poder. Em todo o continente, o objetivo dos partidos de extrema-direita como o dela não é abandonar o bloco, e sim, cada vez mais, assumir o controle dele. Para esse projeto, eles têm um modelo a seguir: a primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni.

Primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, fala com a imprensa durante reunião informal de líderes da União Europeia em Bruxelas, Bélgica. Foto: Johanna Geron/Reuters

Giorgia já é uma inspiração para a extrema-direita europeia. Como líder da coalizão de direita na Itália, ela comandou ataques contra grupos LGBTQ e organizações de resgate de imigrantes, a tomada da emissora pública de comunicação e contínuas tentativas de alterar a constituição para expandir o poder do executivo. Mas foi no continente que ela realmente se distinguiu. Combinando uma inclinação determinada pelo Atlântico (um compromisso com a Otan e com a defesa da Ucrânia) com uma irredutível oposição às políticas de imigração e de combate às mudanças climáticas, ela se tornou uma grande força na Europa. Para a extrema-direita europeia, que parece destinada a avançar, Giorgia está mostrando o caminho.

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Depois de assumir o poder em outubro de 2022, Giorgia impressionou muitos com sua abordagem pragmática e o abandono de suas críticas anteriores à União Europeia. Em Bruxelas, ela desenvolveu uma reputação de habilidosa diplomata. Foi apelidada de “encantadora de Orban”, por exemplo, depois de ajudar a convencer o primeiro-ministro da Hungria a recuar de um veto à continuidade do auxílio da UE à Ucrânia este ano. A mudança de posicionamento de Viktor Orban teve um custo — a Comissão Europeia também liberou € 10,2 bilhões (US$ 10,8 bilhões) em recursos previamente retidos para o governo dele — mas Giorgia teve um papel crucial em conseguir a adesão dele.

Tal sucesso diplomático levou alguns a sugerirem que Giorgia não está seguindo a manada, e sim definindo a pauta. Em uma reportagem da CNN amplamente vista na Itália, Fareed Zakaria celebrou o “Momento Meloni” na Europa, comparando a posição dela com o papel de liderança antes desempenhado por Angela Merkel, ex-chanceler alemã. Do ponto de vista da política econômica, a alegação é exagerada; por mais que esteja crescendo, a economia da Itália não está conquistando novos territórios. Mas a comparação tem seu mérito. Em vários aspectos, é Roma que está dando instruções a Bruxelas.

Por exemplo, Giorgia tem assumido a vanguarda de planos para terceirizar ainda mais a política do bloco para o policiamento das fronteiras a países autocráticos do Norte da África. Em julho do ano passado, ela visitou a Tunísia para anunciar um acordo limitando a imigração através do Mediterrâneo; no mês passado ela fez o mesmo no Egito. Em ambas as ocasiões ela estava acompanhada pela presidente da comissão, Ursula von der Leyen, principal dirigente do bloco, que em janeiro aprovou a visão mais ampla de Giorgia para as relações entre UE e África. Mesmo enquanto o bloco acerta novas regras para o processamento de imigrantes depois de chegarem ao continente, a Itália está trabalhando para garantir que esses imigrantes nem sequer cheguem ao território europeu.

Giorgia também têm sido um espinho na sola do pé da transição verde no bloco. Ridicularizando o Acordo Sustentável Europeu, um conjunto de leis ambientais, como “fundamentalismo climático”, ela buscou consistentemente atrasar ou deter as políticas ambientais. Com frequência, a Itália se viu sozinha ou pouco apoiada nessas iniciativas. Mas, em fevereiro, Giorgia foi central para uma votação contra a lei geral de restauração da natureza na UE, que busca recuperar ecossistemas avariados em todo o continente.

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É importante notar que, nessa votação, Giorgia teve a companhia do Partido Popular Europeu, de centro-direita, o maior grupo de partidos em Bruxelas que inclui os democratas cristãos alemães. O grupo, que já tinha tentado limitar os compromissos climáticos do bloco, descreveu a proposta como um ataque aos agricultores, que recentemente protestaram em toda a Europa. Com a ajuda de alguns parlamentares dissidentes de centro-direita, a legislação foi aprovada. Mas a esperança das lideranças de centro-direita para frear uma proibição a novos carros de motor a combustão indica que esta colaboração ainda não terminou.

Pesquisas de intenção de voto antes das eleições de junho indicam que as forças do centro até a extrema-direita devem ficar com cerca de metade dos assentos no parlamento. Para muitos da direita, isso representa uma oportunidade de encerrar a grande coalizão de socialistas e democratas cristãos que historicamente dominou a política europeia, criando no seu lugar uma aliança de direita que ficaria com os principais cargos. Na prática, esse tipo de cooperação é difícil: as lideranças de centro-direita dizem que só se aliarão a partidos que defendam a UE, a Otan, a Ucrânia e o estado de direito. Isso excluiria uma parcela considerável dos partidos europeus de extrema-direita, ao menos por enquanto. Mas isso dá margem para uma aceitação completa de Giorgia.

Cartaz na sede do Parlamento Europeu promove eleições, marcadas para ocorrer entre 06 e 9 de junho de 2024, Estrasburgo, França.  Foto: Jean-francois Badias/Associated Press

Forças mais radicais, seguindo o exemplo de Giorgia, estão recalibrando sua abordagem. No partido de Marine Le Pen, Rassemblement National, os principais nomes estão recuando do seu posicionamento anterior contrário à Otan e se distanciando do Alternativa para a Alemanha, mais intransigente. Orban, há muito uma exceção nos assuntos europeus, também busca sair do isolamento antes de a Hungria assumir a presidência do bloco em julho. Ele alega que se juntará aos Conservadores e Reformistas Europeus, grupo liderado por Giorgia, após a eleição de junho, uma perspectiva que o grupo vê com bons olhos, mesmo se a abordagem branda de Orban em relação à Rússia representar um obstáculo.

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O grupo de Giorgia, dominado pelo seu partido, Irmãos da Itália, e pelo polonês Lei e Justiça, não é o único abrigo das forças de extrema-direita europeias. Há também o grupo Identidade e Democracia, que reúne o francês Rassemblement National e o italiano Liga. As relações entre os dois grupos nem sempre são harmoniosas. Em março, Marine Le Pen acusou duramente Giorgia de planejar a reeleição de Ursula von der Leyen para a liderança da comissão. Matteo Salvini, líder da Liga, insiste que seus seguidores de direita devem se recusar a trabalhar com os centristas.

Ainda assim, pesquisas de intenção de voto indicam que, juntos, os dois grupos devem ficar com aproximadamente um quarto dos assentos, dando à extrema-direita muito mais influência, independentemente de quem ficar com a presidência. Longe de buscar uma dissolução da UE, esses grupos de extrema-direita estão agora tentando imprimir sua marca a ela, criando o que Marion Maréchal chama de “Europa civilizacional” em vez da versão tecnocrática da “Europa pensada pela comissão”. De sua parte, Giorgia, parece convencida de que ambas podem conviver. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Opinião por David Broder

David Broder é autor de “Mussolini’s Grandchildren: Fascism in Contemporary Italy” e “First They Took Rome: How the Populist Right Conquered Italy".

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