Apesar das experiências anteriores com as eleições na Venezuela apontarem para uma disputa pouco limpa, sem transparência, e com obstáculos quase intransponíveis para derrotar o regime, os grupos opositores a Nicolás Maduro se apegam às chances do pleito de 28 de julho deste ano.
Com a popularidade do governo abaixo dos 20%, segundo pesquisas, e a líder opositora María Corina Machado tendo ganhado as primárias com 93% dos votos, a aliança anti-Maduro tem pisado em ovos para construir uma candidatura competitiva e que tente, de alguma maneira, escapar das garras da ditadura chavista.
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O problema é que, não bastassem as inúmeras armadilhas e barreiras impostas pela ditadura, a própria oposição não consegue entrar em um consenso, colocando em risco as poucas chances de expor o ditador chavista a um verdadeiro escrutínio dos venezuelanos e da comunidade internacional.
Com um calendário eleitoral extremamente apertado, os partidos que compõem a Plataforma Unitária Democrática (PUD) - coalizão que reúne a maioria dos opositores, sob liderança de María Corina - correm contra o tempo para definir um nome único ainda esta semana, quando acaba o diminuto prazo para consolidação das candidaturas. Depois de 20 de abril, qualquer mudança de candidatos não aparecerá na cédula de votação, o que praticamente inviabiliza as comunicações de campanha.
“É preciso levar em consideração as limitações impostas por um regime autoritário, principalmente se ele sabe que vai perder”, observa o cientista político venezuelano Francisco Alfaro Pareja. “Se a oposição estiver unida, 80% das pessoas a apoiarão, segundo as pesquisas. Neste momento, a voz de María Corina Machado sobre o curso de ação a ser tomado é muito importante.”
“A população venezuelana sabe que o único mecanismo restante para uma ação pacífica e democrática atualmente são as eleições. Mesmo que essas eleições não sejam as mais justas ou transparentes, pelo contrário, são eleições com muito pouca transparência e condições muito desvantajosas, talvez esta seja a eleição com as piores condições eleitorais dos últimos 25 anos. Mesmo assim, devemos encontrar uma maneira de não desperdiçar o caminho eleitoral, porque hoje os venezuelanos não têm outro meio de ação para pressionar por mudanças”, conclui.
Mas além de travas eleitorais quase intransponíveis impostas pela ditadura chavista, existe uma profunda desconfiança interna na coalizão opositora, que leva a briga aos palcos públicos.
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Travas eleitorais
Desde o impedimento não explicado da candidatura de Corina Yoris, a candidata homônima escolhida por María Corina Machado, a oposição venezuelana vem se desdobrando para encontrar um nome que desperte a mesma motivação eleitoral que o de María Corina, mas que não seja, novamente, bloqueado pelo regime chavista.
A líder opositora foi inabilitada de concorrer a cargos públicos durante 15 anos, o primeiro entrave eleitoral. Apesar das promessas do chavismo de conduzir eleições limpas em troca do levantamento de sanções pelos Estados Unidos, a inabilitação foi confirmada no começo deste ano, o que levou os EUA a reimporem as sanções na última quarta, 17. Após o bloqueio de Corina Yoris, começou a corrida para substituí-la, embora ela continue em caravanas pelo interior do país em uma espécie de campanha.
O nome de Yoris foi definido em 22 de março e parecia perfeito para o que planejava o Vente Venezuela - partido de María Corina que lidera a coalizão PUD. Yoris é uma filósofa, acadêmica, homônima da líder, sem passado político para além da organização técnica das primárias e nenhum histórico judicial que pudesse fazê-la cair no pente fino da Comissão Nacional Eleitoral.
Ainda assim, a ditadura deu um jeito de bloquear seu nome, em uma nova trava até o momento não explicada. A partir daí a oposição se fraturou em duas frentes: o governador de Zulia, Manuel Rosales, correu para inserir o próprio nome no pleito, uma maneira, segundo ele, de garantir uma candidatura para a oposição dentro da data limite de inscrições.
Logo em seguida, o grupo de Corina Machado informou que havia conseguido inserir o nome do diplomata Edmundo González Urrutia provisoriamente, que deve ser substituído essa semana. Desde então, ninguém sabe qual vai ser a decisão da PUD. Manter Urrutia, optar por Rosales ou colocar um novo nome em disputa - o problema desta última opção é que as regras de substituição são pouco claras.
Desconfiança
Governador do Estado de Zulia (na fronteira com a Colômbia), rico em petróleo, Rosales é um político das antigas. Foi candidato à presidência em 2006, quando concorreu contra o falecido ex-presidente Hugo Chávez, morto em 2013. Ele acabou derrotado por milhões de votos. Chávez ironicamente se referia a ele como “o filósofo de Zulia”, fazendo alusão aos deslizes de Rosales em seus discursos. De lá pra cá, ele se tornou um opositor menos “radical” aos olhos da ditadura chavista - o que, por si só, complica sua relação com María Corina.
Rosales, que é do partido Um Novo Tempo (UNT), colocou a sua candidatura à disposição da PUD. María Corina, porém, parece pouco inclinada a apoiá-lo. A expectativa era por uma reunião entre os dois no último fim de semana, o que não aconteceu. Rosales diz que nunca recebeu um convite de María Corina, enquanto a opositora diz que ele não apareceu. A reunião enfim ocorreu nesta quarta-feira, 17, mas sem detalhes sobre o que foi discutido.
O clima, segundo fontes disseram à reportagem sob condição de anonimato, é de desconfiança em torno das reais motivações de Rosales. Sua inscrição foi feita após o fim do período de postulação, em uma pequena prorrogação aberta para que a PUD inserisse, sem sucesso, o nome de Yoris. Não ficou explicado o motivo de Yoris não ter conseguido se candidatar, enquanto Rosales conseguiu.
Nas redes sociais do governador, eleitores o acusam de ter combinado a sua candidatura com o chavismo para prejudicar a coalizão opositora por dentro. A briga ganhou a praça pública nas redes sociais.
“A campanha que lançaram contra mim foi enorme e bárbara. O que fiz foi garantir a cédula e me chamaram de traidor, vendido, candidato de Maduro e muito mais. Queria salvar a via eleitoral e isso me custou o ridículo público”, desabafou Rosales.
“Nós do Vente Venezuela, expressamos nossa absoluta rejeição às declarações feitas pelo governador Manuel Rosales na terça-feira, 16 de abril, nas quais ele descreve os membros de nossas equipes como ‘pessoas que não acreditam na via eleitoral e acreditam na abstenção e na violência’”, manifestou o partido de María Corina em nota.
E continuou, acusando Rosales de utilizar os mesmos argumentos do regime chavista: “As falsas acusações do governador Rosales são as mesmas usadas pelo procurador de Nicolás Maduro, Tarek William Saab, para atacar nossos líderes e membros e colocar nosso trabalho de campanha em risco ainda maior.”
Estes enfrentamentos, aponta Alfaro Pareja, “pode levar a uma divisão da oposição entre um grupo de opositores que irá votar e outra metade da oposição que se absterá, e isso provavelmente poderá gerar uma dispersão do voto e poderá até mesmo afetar a eleição ou a possibilidade de Maduro deixar o poder.”
Nada garantido
Pouco se sabe, também, o que vai acontecer com a candidatura de Urrutia. A ideia inicial da PUD era substituí-lo por outro nome que não esteja entre os 12 candidatos inscritos. Mas essa substituição por um nome de fora, ainda que esteja prevista pela lei eleitoral, abre margem para uma nova trava do governo.
Segundo Carlos Medina, diretor da ONG Observatório Eleitoral Venezuelano, há um artigo da lei eleitoral que permite a troca de um nome já inscrito por outro ainda não postulado. Porém, este novo nome é considerado como uma nova candidatura, que precisa passar por todas as aprovações do CNE. Como o período para inscrição de novos candidatos já se encerrou, é possível que o CNE considere que novas postulações não podem ser aceitas, mesmo em caso de substituição - e a PUD ficaria limitada entre Rosales e Urrutia.
“Esta é uma interpretação extremamente restritiva do que diz a lei”, aponta o diretor. “É como se eu fosse trabalhando gradualmente, passo a passo, no processo eleitoral para restringir, restringir e restringir até chegar ao grupo que eu quero que seja o único a participar da disputa eleitoral, e é isso que está acontecendo”.
Segundo ele, este argumento cai por si só, pois desconsidera trocas de candidaturas em casos extremos, como afastamento ou morte de um dos candidatos. “Se Maduro precisasse, por algum motivo, se afastar e escolher outro nome para substituí-lo, teria também de fazê-lo entre os nomes já postulados, o que não faz sentido.”
Para Medina, o desafio aqui é construir diálogos entre todos os atores envolvidos, tanto entre membros da oposição, quanto com o regime para definir os próximos passados. “[O futuro das eleições] dependerá basicamente das circunstâncias políticas e do poder de barganha dos atores para permitir que outros nomes e outras pessoas concorram na próxima disputa eleitoral.”
Entre os diálogos em desenvolvimento, o mais importante é o acordo de Barbados, assinado em outubro do ano passado pelo chavismo e a oposição, em que o governo se comprometia a respeitar a escolha interna de candidatos pelas coalizões. A promessa, porém, já foi quebrada com o veto às candidaturas de María Corina e Corina Yoris.
O preço de entregar o poder
Se, de fato, não for possível inscrever um novo nome, nada impedirá que a candidatura escolhida entre Urrutia ou Rosales seja, no futuro, desqualificada, lembra Alfaro Pareja. “O governo vem usando estratégias jurídicas cada vez mais agressivas, argumentos jurídicos legalistas para restringir o direito de escolha das pessoas”, afirmou.
“Mesmo que haja a possibilidade de uma candidatura unida, por exemplo, em torno de Manuel Rosales, que já está registrado, não me surpreenderia se, no final, caso essa candidatura conseguisse alcançar a unidade de votos, o governo e os outros poderes públicos inventem alguma medida judicial para desqualificar esse candidato também.”
O observatório eleitoral, em um de seus boletins sobre as eleições, apontou que Rosales poderia ser bloqueado mais à frente devido ao seu cargo de governador, segundo a lei eleitoral. Mas mesmo este entrave é controvertido, já que há variadas interpretações sobre o momento em que Rosales pode se afastar do cargo Executivo anterior para concorrer a outro.
“O governo sabe que a situação é muito delicada, e por isso estará disposto a tomar as decisões que tiver de tomar para não entregar o poder, a menos que, e talvez eu faça um asterisco, esteja ocorrendo algum tipo de negociação da qual não tenhamos conhecimento”, conclui Alfaro Pareja. “Mas a realidade é: para o governo, o preço de manter o poder é muito menor do que o preço de entregar o poder”.
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