No Long Bets, website onde especialistas testam sua determinação fazendo apostas reais em prognósticos (ou pelo menos recursos doados para instituições beneficentes) há uma aposta em aberto entre o astrofísico britânico Martin Rees, um conhecido combatente sobre um possível apocalipse, e Steven Pinker da universidade de Harvard, famoso por seu excessivo otimismo. Para Rees vencer, a previsão a seguir tem de ser comprovada: “um terror biológico, ou um erro biológico, levará a um milhão de vítimas num único evento dentro de um período de seis meses, começando não depois de 31 de dezembro de 2020”.
A aposta foi feita para o período de 2017 a 2020; você observará que este lapso de tempo expirou. Mas continua pendente, e vai depender de uma solução da questão que a mídia ocidental decidiu finalmente levar a sério: o vírus causador da covid-19 de algum modo escapou acidentalmente do Instituto de Virologia de Wuhan e não saltou de morcegos ou pangolins para o Paciente Zero humano?
Se você vem se perguntando até que ponto a hipótese de um vazamento do vírus de um laboratório realmente é importante e o que na verdade está em jogo, eis uma resposta: os US$ 400 que Rees apostou contra Pinker no tocante às capacidades autodestrutivas da raça humana.
Há outras, também, antes de retornarmos ao que a aposta representa. Na semana passada, o governo Biden ordenou que fossem intensificadas as investigações sobre as origens da covid-19, e o mais duro comentário sobre a teoria do vazamento assumiu a forma de críticas na mídia de liberais contrários como Matthew Yglesias e Jonathan Chait.
Eles tentaram explicar como uma teoria que sempre foi circunstancialmente plausível – uma vez que a pandemia teve início a mais de 1.600 quilômetros do habitat dos morcegos onde vírus similares foram descobertos, mas a poucos passos de um importante laboratório que realiza estudos sobre coronavírus – foi tratada por tão longo tempo como pura teoria de conspiração pelos serviços de mídia tradicionais e provedores de alertas de conteúdo no Facebook.
O argumento que oferecem é que esse era um caso digno de estudo pelos pensadores da mídia, especialmente a maneira que instituições aparentemente neutras encobrem cada vez mais assuntos controversos, como afirma Chait, “baseadas inteiramente em como acham que os atores políticos usarão a resposta”.
Neste caso, como a teoria do vazamento de um laboratório inicialmente foi associada a membros do Congresso contrários à China, diante da proeminência de publicações conservadoras (Jim Graghty da National Review tem sido uma voz essencial e imparcial sobre o assunto) e eventualmente aproveitada pelo governo Trump, houve uma pressão entre os jornalistas, que cobriam a história e especialistas no Twitter que opinaram a respeito – no sentido de colocar a possibilidade num box do QAnon e deixá-la ali.
Deixo para o leitor analisar como uma pressão similar se manifesta em outras áreas, desde a disparada de assassinatos em 2020-21 ao recente aumento da violência antissemita, casos em que os jornalistas desejariam evitar fazer concessões às interpretações conservadoras da realidade.
Mas permita-me oferecer um aditamento à crítica da mídia. Uma mudança chave do jornalismo tradicional na era Trump foi o impulso para dizer ao leitor exatamente o que ele deve pensar, por temor de deixar qualquer coisa ambígua no sentido de que foi feita uma concessão à demagogia da direita.
Não se tratava simplesmente de reportar que “o político republicano X disse algo Y que soa conspiratório”. Você também tinha de, especificamente, descrever a tese conspiratória como falsa ou deixar a desinformação desmascarada, de tal maneira que, antigamente, a matéria seria considerada editada, para não deixar nenhuma dúvida na mente do leitor vulnerável.
Não acredito muito que isso alcançou o objetivo esperado. (Alguém concluiu que uma teoria conspiratória era enganosa vendo-a descrita como tal na mídia tradicional?). Mas mesmo que algumas vezes isso tenha ocorrido, também foram criadas pressões cada vez maiores para descrever mais e mais coisas sem nenhuma ambiguidade e nuança e julgar cada vez mais as afirmações da direita de modo preventivo. O que é apenas uma boa regra para uma profissão que busca a verdade se supor que nunca chegará o dia em que Cotton terá razão.
Mas, surpreendentemente, tanto Chait como Yglesias afirmam que esta crítica da mídia é a coisa mais importante que você pode extrair do debate das origens da covid-19. “Não sei se esta hipótese será um dia provada”, escreve Chair sobre a teoria do vazamento. “E não me preocupo porque não existe nenhuma questão política dependendo de uma resposta”.
O que me parece um erro. Sim, se nunca entendermos a verdade sobre as origens da covid-19, os perigos do pensamento de grupo da mídia serão a única lição que teremos como absolutamente certos. Mas se conseguirmos encontrar a verdade e descobrirmos que o Instituto de Virologia de Wuhan realmente foi o epicentro de uma pandemia jamais vista num século, a revelação em si será um importante evento científico e político.
Em primeiro lugar, na medida em que os Estados Unidos estão engajados num conflito de propaganda e de poder brando com o regime de Pequim, existe uma grande diferença entre um mundo em que o regime chinês pode dizer, “Não fomos os responsáveis, mas esmagamos o vírus e o Ocidente não conseguiu, porque somos fortes e eles são decadentes, e um mundo que este foi basicamente o seu Chernobyl, salvo que sua incompetência e o acobertamento do fato levou a doença não só para as suas próprias cidades, mas também para o mundo inteiro.
Esse último cenário também lançaria um debate sobre como os Estados Unidos devem procurar implementar proteções para a pesquisa científica internacional, ou como devemos operar num mundo em que elas não podem ser razoavelmente implementadas.
Talvez esse debate afaste os contrários à China, como afirma David Frum na The Atlantic, porque a lição a extrair de um vazamento de laboratório será de que realmente precisamos “mais obrigações da China com a ordem internacional, mais padrões de segurança e saúde através das fronteiras, mais cientistas americanos nos laboratórios chineses e, concomitantemente, mais chineses nos laboratórios americanos”.
Ou talvez, em vez disso, você imporia um embargo científico e acadêmico, a cessação de financiamentos para o Instituto de Virologia de Wuhan por parte da Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos, uma tentativa de administrar os riscos tornando as fronteiras mais difíceis de serem transpostas, restrições de viagens mais rigorosas, e uma de-globalização.
De qualquer maneira, esse debate também afetará a política científica dentro do nosso país, dando vazão a argumentos similares aos que vimos observando desde a época de Chernobyl e de Three Mile Island sobre os riscos da arrogância científica e da pesquisa de ponta.
O que é especialmente verdade se houver alguma chance de o vírus fabricado na chamada pesquisa de ganho de função ser mais transmissível e letal – uma possibilidade levantada, entre outros, por um antigo jornalista científico para o seu jornal, Nicholas Wade. Mas mesmo que não, a mera existência dessa pesquisa, até agora um assunto de obscura controvérsia entre os cientistas, se tornaria uma matéria de intensa atenção e exame público.
Esse exame pode não levar a decisões sensatas, do mesmo modo que o pânico com a energia nuclear não levou à política energética e ao desvio para o ambientalismo. Para voltar à aposta com a qual começamos, a regulamentação da ciência tem de existir com base num equilíbrio entre Rees e Pinker, entre pessimismo saudável sobre os erros humanos e a ambição saudável quanto ao que o engenho humano consegue realizar.
Se a pandemia se desenvolveu a partir de um erro crasso, qualquer tipo de represália facilmente pode degenerar, com uma cruzada pela segurança nos levando cada vez mais para a estagnação tecnológica.
Mas se descobrirmos que um único laboratório e alguns cientistas são os responsáveis por uma das maiores catástrofes humanas em gerações, não é útil deixar de lado um acerto de contas. / Tradução de Terezinha Martino
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