Opinião | Os americanos estão prontos para desistir da Ucrânia?

Toda essa conversa sobre um fim negociado para a guerra na Ucrânia serve principalmente para cativar os americanos

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Por Robert Kagan (The Washington Post)
Atualização:

Enquanto a guerra na Ucrânia continua a se arrastar sem nenhum término óbvio à vista para os ucranianos, autoridades estrangeiras começam a discutir e almejar um acordo negociado. Segundo colocou recentemente o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Kirby, “Um fim negociado é o desfecho mais provável aqui”. E nós sabemos o que isso significa para a Ucrânia. Conforme o presidente da República Checa, Petr Pavel, apoiador da Ucrânia de longa data, definiu sinceramente: os ucranianos “terão de ser realistas” e entender que “o desfecho mais provável da guerra será que parte do território da Ucrânia ficará temporariamente sob ocupação russa”.

A ironia de um líder checo propondo esse caminho para a Ucrânia não passa despercebida por quem conhece a história: foi exatamente esse o conselho dado aos líderes checos em 1938 pelos “realistas” daquela época. Segundo colocou George Kennan logo após o Acordo de Munique, que cedeu parte do controle sobre a ex-Checoslováquia para a Alemanha de Hitler: “A Checoslováquia é, afinal, um Estado da Europa Central. Seu destino deve, no longo prazo, estar de acordo com as forças dominantes nessa região — não contra”. Mas, continuou ele, o pacto de Munique pelo menos “deixou fisicamente intacto o coração do país (…) que teria sido indubitavelmente sacrificado se a solução tivesse sido romântica, de uma resistência desesperançada em vez da alternativa humilhante, mas verdadeiramente heróica, do realismo”.

Presidente ucraniano, Voldodmir Zelenski, cumprimenta secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, em um encontro em Kiev. Foto: Imprensa da presidência da Ucrânia via AP

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Como bem sabemos, o “coração do país” não permaneceu “fisicamente intacto”. Meses após o Acordo de Munique, o Exército alemão marchou sobre o restante da Checoslováquia e tomou todo seu território.

Hoje são os ucranianos que ouvem clamores para abandonar o caminho romântico da resistência desesperançada e perseguir o trajeto heroico do realismo. Mas, se eles o fizerem, o que impedirá a Rússia de tomar o restante da Ucrânia assim que se considerar pronta?

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Defensores de um acordo negociado com concessões territoriais por parte da Ucrânia não negam esse perigo e tentam abordá-lo de várias maneiras. Todos parecem assumir que a Ucrânia pós-guerra terá acesso pleno a armamentos, treinamentos e outras formas de assistência militar dos Estados Unidos e da Otan, assim como uma a ajuda substancial para a reconstrução. O ex-secretário de Estado americano Mike Pompeo, segundo a proposta que batizou como “Um plano de paz de Trump para a Ucrânia”, pretende prover ao país US$ 100 bilhões de um fundo especial da Otan e outros US$ 500 bilhões em empréstimos “lend-lease” dos EUA para comprar armamentos (o que, presumivelmente, como no programa original, não teriam de ser pagos por décadas ou não seriam pagos absolutamente).

Outros instam uma “assistência militar sustentada em tempos de paz” para “ajudar Kiev a criar uma dissuasão crível”. Até o senador J.D. Vance (republicano de Ohio) imagina algum tipo de garantia para a segurança da Ucrânia, para que “os russos não invadam novamente”. Ele conclama uma zona desmilitarizada “pesadamente fortificada” entre forças russas e ucranianas, capaz engendrar uma de duas coisas: o estabelecimento de algum tipo de força de paz internacional entre os Exércitos ou a construção de Forças Armadas ucranianas suficientes para repelir um ataque russo por conta própria.

A percepção comum é que os ucranianos são o maior obstáculo para um pacto desse tipo porque se recusam a abrir mão do território que perderam. Isso é um erro. Se desejarem, os EUA e a Otan podem forçar Kiev a aceitar. Apesar de sua coragem e determinação, os ucranianos não são capazes de continuar a lutar sem o apoio dos EUA e do Ocidente — e, portanto, deverão eventualmente aceitar os termos ditados pelos ocidentais, da mesma forma que os checos em 1938.

Mas o que dizer de Vladimir Putin? Pouco parece ter se pensado a respeito do presidente russo aceitar ou não o tipo de acordo de paz que os defensores da negociação propuseram. Imagine como esse pacto seria percebido por Moscou: antes da guerra, a Rússia encarava uma Ucrânia relativamente fraca e dividida politicamente tentando, com pouco sucesso, forjar relações mais próximas com uma Europa hesitante e os EUA ambivalentes. No fim de 2021, a Ucrânia tinha pouco mais de 200 mil soldados na ativa, enquanto a Rússia tinha mais de 900 mil.

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Autoridades, como ministro da Defesa da Ucrânia, Rustem Umerov, presidente ucraniano Volodmir Zelenski e o secretário de Defesa dos EUA Lloyd Austin em encontro do Conselho Otan-Ucrânia. Foto: Olivier Matthys, Pool Photo via AP

Três anos depois, a guerra transformou tanto a Ucrânia quanto o equilíbrio militar na Europa Central e do Leste. Hoje, a Ucrânia possui mais de 900 mil soldados na ativa e centenas de milhares de reservistas treinados e com experiência em batalha. O Exército ucraniano ficou, de fato, maior do que as forças britânicas, alemãs e polonesas combinadas. E de acordo com as propostas de Pompeo e outros, o Exército ucraniano continuará desse tamanho, auxiliado por um fluxo constante de bilhões de dólares e ajuda militar. Neste verão (Hemisfério Norte), a Otan estabeleceu um centro de comando permanente em Wiesbaden, na Alemanha, com 700 militares, para coordenar o treinamento e o “desenvolvimento a longo prazo” das Forças Armadas ucranianas, com objetivo de incrementar a interoperacionalidade entre as forças ucranianas e da Otan e administrar a distribuição e a manutenção das vastas quantidades de equipamentos militares que são — e continuarão a ser — enviadas para a Ucrânia. Presumivelmente, os aliados dos EUA e da Otan planejam continuar a fornecer informações de inteligência e aconselhamento sobre alvos, da mesma forma que têm feito cada vez mais desde o início da guerra.

Essa Ucrânia pós-guerra e bem armada, além disso, será uma vizinha intensamente hostil. Os ucranianos não esquecerão tão cedo das mortes, da destruição e das torturas impingidas pela Rússia durante a guerra. Haverá torrentes poderosas de revanchismo à medida que os ucranianos se lamentarem pelo território perdido e almejarem sua eventual devolução, especialmente dado que, segundo Pompeo, os EUA e grande parte da comunidade internacional não reconhecerão oficialmente as conquistas da Rússia e, em vez disso, nas palavras de Pavel, as considerarão “temporárias”. De fato, segundo um dos principais defensores de uma paz negociada, o objetivo de qualquer acordo será garantir que as Forças Armadas ucranianas tenham capacidade de “manter sob ameaça qualquer região ocupada pela Rússia” e até mesmo “atacar o próprio território russo”.

Então, em troca de adquirir o Donbas, a Crimeia e alguns outros territórios significativamente estratégicos (muitos deles não controlados por Kiev nem mesmo antes da guerra), Putin terá ao lado uma Ucrânia furiosa, poderosa e revanchista, pesadamente armada e treinada pelo Ocidente e cada vez mais integrada à Otan, com ou sem adesão formal à aliança.

Muitos americanos e europeus ficariam contentes com esse desfecho — mesmo que os ucranianos não se alegrem — e alguns chegariam a qualificá-lo como uma “genuína vitória estratégica”. Para Putin, contudo, será difícil mascarar a magnitude desse fracasso estratégico. Sua guerra não somente terá criado esse monstro ao lado, mas também levado Finlândia e Suécia à Otan. A Rússia terá de incrementar suas defesas ao longo de toda a extensão de sua fronteira ocidental, com requerimentos especiais nos limites com a Ucrânia. Após três anos de guerra, mais de 600 mil baixas e um sofrimento econômico generalizado, Putin terá sido bem-sucedido apenas pelo fortalecimento do círculo de contenção em torno da Rússia, feito forças hostis se aproximar das fronteiras russas e aumentado substancialmente os requerimentos até de tempos de paz. Putin quer considerar a si mesmo um Pedro, o Grande do século 21, mas com esse desfecho ficará mais parecido com o Nicolau II do século 20, que levou a Rússia para guerra com seu Exército fraturado, desmembrou o Império Russo e, de forma incidental, acarretou o fim do czarismo e o assassinato e ocaso da tricentenária dinastia Romanov.

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Conforme costuma ocorrer, a política externa dos EUA para a Ucrânia tem sido motivada por coisas que os americanos não desejam. Eles não querem acabar numa guerra com a Rússia e não querem gastar centenas de bilhões de dólares anualmente numa guerra aparentemente impossível de vencer; mas também não querem assumir a culpa e a vergonha de deixar a Ucrânia perder, com todos os horrores humanitários e problemas estratégicos que isso implicaria. Apesar de toda sua pretensão de “realismo”, Pompeo e outros defensores de concessões territoriais negociadas prometem um desfecho que soluciona, convenientemente, os problemas dos EUA — mas de ninguém mais. Os EUA são capazes de impor sua vontade sobre uma Ucrânia desesperadamente dependente, mas por que Putin deveria concordar com isso? Os defensores de negociações de paz com a Rússia simplesmente assumem que Putin aceitará o desfecho que serve melhor às necessidades americanas.

E não é dessa forma que negociações funcionam — nem como essas conversas sucederiam. Seria diferente se EUA, Otan e Ucrânia estivessem em posição de ditar os termos para Putin — como poderia ser o caso se o governo Biden tivesse dado a Kiev tudo o que os ucranianos precisavam nos primeiro meses da guerra e ainda poderia ser o caso se Washington desse as permissões e os armamentos que a Ucrânia precisa neste momento. Mas isso não ocorreu, e EUA, Otan e Ucrânia não alcançaram essa posição. Se a Rússia não estiver comprovadamente perdendo a guerra quando as negociações começarem, as conversas serão entre iguais, e seu desfecho refletirá o estado real da situação militar. Portanto, o acordo não será justo; não determinará nenhum preço pela agressão de Putin. Seus termos terão de ser equitativos para todas as partes. Putin também tem necessidades, e a principal delas é precisamente evitar a situação de pós-guerra descrita acima.

Nesse caso, portanto, os temas principais de qualquer negociação, além de definir uma nova fronteira de facto para a Ucrânia, serão relativos ao tamanho das Forças Armadas ucranianas e à natureza da sua relação com os EUA e a Otan. A ajuda militar direta de governo a governo, os treinamentos e o compartilhamento de inteligência ao longo da guerra não foram neutros, o que por sua vez torna os EUA e seus aliados entes beligerantes de facto. Putin desejará limites rígidos sobre a ajuda fornecida à Ucrânia por potências estrangeiras, particularmente pelos EUA, assumindo-se que ele tolere algum tipo de ajuda. E também deverá exigir que o tamanho do Exército ucraniano seja reduzido aos níveis anteriores à guerra, ou aproximadamente, para que Kiev não siga com a capacidade de “atacar a própria Rússia”. Por que Putin exigiria menos? Por reconhecer a injustiça de suas próprias ações?

Há dois motivos para Putin poder vir a aquiescer com o tipo de acordo delineado por Pompeo e outras pessoas. Um é ele não ter nenhuma intenção de atender suas determinações por assumir que os EUA e a Otan não deixarão, na realidade, de continuar armando e protegendo a Ucrânia independentemente do acordo que se seguir. Para Putin, a aposta não é ruim: dado o grau de dificuldades para os EUA e outros países ocidentais autorizarem ajuda militar de forma confiável durante a guerra, certamente é possível que o público ocidental não se entusiasme muito com os gastos de centenas de bilhões de dólares com a defesa da Ucrânia em tempos de paz.

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Mas também haveria riscos para Putin. Quando a guerra parar, o acerto de contas dentro da Rússia vai começar. Uma guerra que custou tanto, ganhou tão pouco e deixou a Rússia objetivamente pior estrategicamente dificilmente redundará em saúde política para seu autor. Mesmo que não enfrente um descontentamento sério no pós-guerra, Putin poderia ter mais dificuldades em exigir sacrifícios e impor sua disciplina férrea sobre uma Rússia pós-guerra do que enfrenta na Rússia em guerra travando o que ele caracteriza como uma luta existencial contra o Ocidente. Putin poderia decidir que é mais seguro continuar no rumo atual — e continuar a guerra — a não ser que esse caminho leve ao colapso de suas Forças Armadas.

A outra razão para Putin poder vir a aceitar um acordo nesses termos é a seguinte: ele acreditar que seu Exército está prestes a ruir. Putin pode ter temido isso no início da guerra, mas não teme isso hoje, e há pouco motivo para acreditar que ele temerá isso daqui a seis meses ou um ano. Nós poderíamos ter sorte, mas poucos esperam que o atual programa de ajuda vire a maré tão substancialmente — e por esse motivo o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, acaba de passar em Washington pedindo mais armamentos e menos restrições para usá-los. Em suma, Putin tem bastante razão para acreditar que a Ucrânia e seus financiadores ocidentais ruirão antes do que seu Exército. O medo e a relutância bastante públicos do governo Biden em dar à Ucrânia mais armas de longo alcance sem restrições sobre o uso associados ao evidente desejo de Donald Trump de se livrar de uma vez por todas da Ucrânia só podem fortalecer em Putin a percepção de que o Ocidente, não a Rússia, está sem fôlego.

Quem quer que vença a próxima eleição presidencial americana, portanto, deverá encarar um Putin intransigente e aferrando-se às suas exigências atuais, que significariam o fim da soberania ucraniana. Putin não deixou, por exemplo, de exigir a “desnazificação” da Ucrânia, que, segundo ele, significa a mudança do governo em Kiev; nem parou de insistir em controlar territórios que as forças russas não conquistaram. Os defensores das negociações sugerem que isso é apenas uma jogada de abertura e que ele será compelido a abrir concessões. Mas compelido por quê?

O governo Biden promete apenas mais do mesmo que já tem feito, o que obviamente não é suficiente. Historiadores poderão concluir que o governo Biden perdeu esta guerra nos primeiros 12 ou 18 meses, já que se recusou continuamente a fornecer à Ucrânia armas que teriam feito a diferença quando as forças russas estavam desarticuladas. Se uma mudança de curso substancial não ocorrer logo, as chances da Ucrânia poderão se extinguir, assim como qualquer perspectiva de algum acordo com Putin que não resulte na rendição de Kiev.

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Os apoiadores de Trump consideram que o mero retorno de seu líder para a presidência será suficiente para assustar Putin e convencê-lo de desistir de seus interesses na Ucrânia. Este é o significado de realismo nos círculos republicanos de política externa atualmente. Mas o oposto se aproxima mais da realidade. Imagine o que seria necessário para o plano de Pompeo ter alguma chance de sucesso. Putin teria de acreditar que Trump está preparado não apenas a dar continuidade mas também de dobrar a aposta sobre uma política que Trump e seus apoiadores criticam há mais de dois anos. De acordo com Pompeo, o primeiro movimento de um segundo governo Trump seria escalar tanto a quantidade quanto a qualidade do apoio militar e econômico. Trump teria então de passar seus primeiros na Casa Branca pressionando o Congresso para aprovar um gasto significativo em um novo pacote de armamentos.

Donald Trump e Zelenski em encontro na Trump Tower em setembro. Foto: Julia Demaree Nikhinson/AP

Em teoria, Trump poderia ter estômago para ignorar as ameaças de escalada de Putin que têm apavorado o governo Biden, só que Trump parece assim tão assustado. Trump também faz alertas sobre uma 3.ª Guerra Mundial. E também não parece provável que Trump queira passar seu primeiro ano de volta à Casa Branca envolvendo-se mais profundamente com a Ucrânia e provocando uma crise com a Rússia — muito menos se seu objetivo é sair. Portanto Putin deverá expor o blefe de Trump — e nesse ponto realmente não restará alternativa que não seja aumentar o envolvimento americano na guerra ou recuar e aceitar uma Ucrânia verdadeiramente “neutra” e, assim sendo, indefensável. Qual caminho você acha que Trump escolherá?

O rumo atual, em suma, dificilmente levará a um pacto estável e certamente não ocasionará o tipo de acordo de paz que os defensores das negociações nos garantem ser possível. Não é uma daquelas situações em que todos saem ganhando. Se algo dramático não mudar, esta guerra, assim como a maioria das guerras, será vencida ou perdida no campo de batalha. Nós não seremos resgatados por nenhum plano de paz. Os americanos precisam decidir logo se estão preparados para deixar a Ucrânia perder./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Opinião por Robert Kagan
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