Em 4 de novembro de 2022, pouco após a coalizão de extrema direita que governa Israel ganhar a eleição, escrevi uma coluna sob o seguinte título: “O Estado de Israel que conhecíamos se foi”. O objetivo era acender um alerta sobre a magnitude do radicalismo dessa coalizão. Muita gente discordou. Acredito que os acontecimentos provaram que essas pessoas estavam erradas — a situação agora é ainda pior: o Estado de Israel que conhecíamos se foi e a existência do país está em perigo.
Israel enfrenta uma superpotência regional, o Irã, que conseguiu pressionar os israelenses usando seus aliados: o Hamas, o Hezbollah, os houthis e as milícias xiitas no Iraque. Neste momento, Israel não tem nenhuma solução militar nem diplomática. Pior, encara a possibilidade de uma guerra em três frentes — Gaza, Líbano e Cisjordânia — mas com uma nova e perigosa reviravolta: o Hezbollah, ao contrário do Hamas, possui mísseis de precisão no Líbano capazes de destruir grandes infraestruturas israelenses, de aeroportos a portos marítimos, universidades, bases militares e usinas de eletricidade.
Mas Israel é liderado por um primeiro-ministro, Binyamin Netanyahu, que tem de permanecer no poder para evitar ser potencialmente mandado para a cadeia por acusações de corrupção. Para tanto, ele vendeu a alma e formou governo com extremistas judeus de direita que insistem que Israel deve lutar em Gaza até matar o último hamasnik — “a vitória total” — e rejeitam qualquer parceria com a Autoridade Palestina (que aceitou os acordos de paz de Oslo) em um governo de Gaza pós-Hamas, porque querem Israel controlando todo o território entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo, incluindo Gaza.
E agora, o gabinete de guerra emergencial de Netanyahu ruiu porque não tem nenhum plano para pôr fim à guerra e retirar Israel de Gaza com segurança, e os extremistas na coalizão de governo do primeiro-ministro têm na mira seus próximos movimentos para continuar no poder. Eles já fizeram muito estrago, e o presidente Joe Biden, o lobby pró-Israel (AIPAC) e muitos congressistas não tomaram consciência da magnitude do radicalismo desse governo.
De fato, o presidente da Câmara dos Deputados, Mike Johnson, e seus colegas de traquinagens republicanos decidiram recompensar Netanyahu com a altíssima honra de falar a uma sessão conjunta do Congresso em 24 de julho. Pressionados contra as cordas, os mais graduados democratas no Senado e na Câmara concordaram com o convite, mas o objetivo não declarado do exercício republicano é dividir os democratas e fazer seus representantes mais progressistas berrarem insultos, o que alienaria eleitores judeus americanos e doadores, aproximando-os de Donald Trump.
Netanyahu sabe que tudo depende da política doméstica dos Estados Unidos, e por isso ele ter aceitado um convite para discursar em um evento desse tipo é uma expressão tão enorme de falta de lealdade a Biden — que voou até Israel para abraçá-lo dias depois de 7 de outubro — que chega a tirar o ar.
Nenhum amigo de Israel deveria participar desse circo. Israel precisa de um governo centrista e pragmático, capaz de liderar o país para uma solução a esta crise multifacetada — e aproveitar a oferta de normalização de relações com a Arábia Saudita que Biden conseguiu arquitetar. Isso só pode ocorrer por meio da remoção de Netanyahu do cargo em uma nova eleição — conforme conclamou bravamente o líder da maioria no Senado, Chuck Schumer, em março. Israel não precisa de uma festa cheia de bebida bancada pelos EUA para seu motorista bêbado.
A gente imagina se os “amigos” de Israel têm alguma noção sobre a natureza de seu governo. Este governo não é o Estado de Israel dos seus avós, e este Bibi não é o mesmo velho Bibi.
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Ao contrário de qualquer gabinete israelense, o atual governo inscreveu o objetivo de anexar a Cisjordânia em seu acordo de coalizão, portanto não surpreende ele ter passado seu primeiro ano tentando aniquilar a capacidade da Suprema Corte israelense de colocar qualquer contrapeso sobre seus poderes. Bibi também cedeu controle sobre a polícia e importantes cargos no Ministério da Defesa para os supremacistas judeus de sua coalizão poderem aprofundar o controle dos colonos sobre a Cisjordânia. Eles procederam imediatamente com a adição de unidades habitacionais em assentamentos no centro desse território ocupado por números recorde de colonos para tentar bloquear qualquer Estado palestino por lá.
Essa coalizão dos infernos dedica-se agora a garantir que os jovens ultraortodoxos não sirvam ao Exército nesta guerra da mesma forma que jovens seculares de ambos os sexos, exaustos após oito meses de combates. O tenente-general Herzi Halevi, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas de Israel, disse aos soldados em Gaza no fim de semana recente que “existe agora uma clara necessidade” de alistar os ultraortodoxos para evitar outra convocação de “muitos milhares” de reservistas menos religiosos.
O relativamente pequeno corpo de oficiais militares de Israel foi tão reduzido que não consigo imaginar como ele seria capaz de sustentar uma guerra no Líbano.
Some isso tudo e você verá um ato inconsequente de exagero econômico, militar e moral — comprometendo sete milhões de judeus a controlar perpetuamente mais de sete milhões de palestinos (incluindo dois milhões de árabes israelenses) entre o rio e o mar.
Isso seria loucura num tempo de paz. Em tempo de guerra — num conflito de baixa intensidade em três frentes capaz de se tornar um confronto de grande intensidade a qualquer momento — isso é insano. Israel está cada vez mais sozinho. Por que qualquer aliado gostaria de ser parceiro dessa agenda?
E é por isso que eu concordo com cada palavra que o ex-primeiro Ehud Barak escreveu no Haaretz quinta-feira passada: Israel enfrenta “a crise mais séria e perigosa na história do país. Ela começou em 7 de outubro, com a pior falha na história de Israel. E continuou com uma guerra que, apesar da coragem e do sacrifício de soldados e oficiais, parece ter sido a guerra mais malsucedida em sua história, devido à paralisia estratégica na liderança do país”.
Israel, acrescentou Barak, ex-chefe do Estado-Maior, “arrisca uma guerra em várias frentes que poderia incluir o Irã e seus aliados. E tudo isso está acontecendo enquanto o golpe no Judiciário continua nos bastidores, com seu objetivo de estabelecer uma ditadura religiosa, racista, ultranacionalista, messiânica e incivilizada”.
Barak alertou que, se for permitido ao atual governo permanecer no poder, Israel não apenas ficará preso em Gaza — com o Hamas ainda capaz de lutar e sem nenhum parceiro árabe para ajudar Israel a sair — mas quase certamente enfrentará “uma guerra total com o Hezbollah no norte, uma terceira intifada na Cisjordânia, conflitos com os houthis no Iêmen e com milícias iraquianas nas Colinas do Golã e, evidentemente, um conflito com o próprio Irã”.
Todos os americanos deveriam se preocupar com isso, uma receita para os EUA serem arrastados para uma guerra no Oriente Médio para ajudar Israel — e um sonho tornado realidade para a Rússia, a China e o Irã.
De fato, o secretário de Estado americano, Antony Blinken, que fez oito viagens a Israel desde 7 de outubro, não deveria fazer outra enquanto Israel e o Hamas não concordarem com um plano claro para o fim da guerra. Ele estaria rebaixando sua posição e o poder dos EUA. Chegou a hora de um ultimato. Biden deveria estar dizendo a Israel que o país deveria aceitar as demandas críticas do Hamas: terminar a guerra agora, completamente, e retirar-se de Gaza em troca da libertação dos reféns israelenses. Israel não pode pensar com clareza enquanto o Hamas mantém seus cidadãos cativos.
Israel conseguir pôr fim à guerra em Gaza pode ocasionar um acordo com o Hezbollah mediado pelos EUA para acalmar a guerra na fronteira norte — que tem sido terrível para civis de ambos os lados. O que, por sua vez, pode possibilitar a israelenses e libaneses que vivem na região fronteiriça voltar para as suas casas, assim como permitir ao Exército israelense recuperar-se de um combate exaustivo e repor seus estoques. Isso poderia fazer cessar a erosão na economia de Israel tanto quanto em sua moral global e permitir ao país fazer algo que deveria ter feito em 8 de outubro: parar para pensar, pensar duas vezes, conceber estratégias e não fazer exatamente tudo o que o Irã e o Hamas quis que Israel fizesse — ou seja, partir para cima com tudo, da mesma forma que os EUA após os atentado de 11 de setembro de 2001 — afundando-se em uma guerra infinita sem nenhum plano nem parceiro para a manhã seguinte. E então, como argumentou Barak, Israel deve organizar novas eleições.
Sim, sim, eu consigo ouvir as críticas dos falcões da guerra agora mesmo: “Friedman, você deixaria o líder do Hamas, Yahya Sinwar, sair de seu túnel e cantar vitória?”.
Sim, eu deixaria. De fato, eu gostaria de poder estar na coletiva de imprensa em Gaza quando ele fizer a declaração e lhe fazer a primeira pergunta:
“Sr. Sinwar, o senhor alega que estamos diante de uma grande vitória para o Hamas: uma retirada total de Israel e um cessar-fogo estável. Eu só quero saber o seguinte: O que existia até 6 de outubro entre vocês e Israel, antes de seu ataque surpresa? Ah, permita-me responder: Israel totalmente fora de Gaza e um cessar-fogo estável. Se o senhor não se importar, eu gostaria de ficar por aqui uns dias para vê-lo explicar aos palestinos de Gaza por que o senhor começou uma guerra de oito meses — causando a destruição de aproximadamente 70% das residências de Gaza e deixando, segundo sua própria conta, cerca de 37 mil palestinos mortos, muitos deles mulheres e crianças — para deixar Gaza exatamente no ponto em que Gaza estava em 6 de outubro, num cessar-fogo com Israel e sem nenhum soldado israelense por aqui. Se o Hamas alcançar outra vitória como esta, Gaza ficará permanentemente inabitável.”
E para os israelenses que perguntassem, ”Friedman, você está louco? Você deixaria Sinwar governar Gaza novamente?”, minha resposta novamente seria: sim, por agora sim. As alternativas — Israel governar Gaza ou Gaza tornar-se uma Somália — são bem piores. A ideia de Netanyahu de que alguns palestinos notáveis — não pertencentes ao Hamas nem à Autoridade Palestina — governarão o território para Israel é uma fantasia.
Os únicos indivíduos capazes de derrotar o Hamas são os palestinos de Gaza. Eles também precisam de uma liderança melhor, e, se a encontrarem, nós devemos ajudá-los a reconstruir. Mas, até lá, Israel seria louco se quisesse permanecer em Gaza e ser responsável por sua reconstrução. Tal honra deve ser concedida a Sinwar.
Acredito que na manhã seguinte à manhã seguinte à que Sinwar emergir de seu túnel, muitos palestinos de Gaza vão querer arrebentá-lo por causa do desastre que ele lhes impôs. E caso isso não ocorrer, Sinwar, somente Sinwar será o responsável quando a água faltar na torneira, quando os materiais de construção não chegarem ou quando o sol parar de brilhar — não Israel. E se ele for estúpido ao ponto de recomeçar a guerra com Israel ou tentar contrabandear armas em vez de dar comida e habitação para o seu povo, tudo será culpa dele.
Infelizmente, se tudo o que esta guerra fizer for comprar para Israel outro longo intervalo no conflito com o Hamas, bem, talvez apenas isso seja possível. Afinal, desde o início do século 20, a história real de judeus e palestinos tem sido: guerra, intervalo, guerra, intervalo, guerra, intervalo, guerra, intervalo, guerra, intervalo. E a grande diferença está no que cada lado fez durante os intervalos.
Talvez isso mude algum dia, mas por agora Israel precisa dar o fora de Gaza e voltar logo para um intervalo. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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