Na semana passada, escrevi que as forças ucranianas estavam tomando a iniciativa e Vladimir Putin estava perdendo sua “guerra por opção”. Mal sabia eu quão verdadeiro isso seria. Quando escrevi aquela coluna, o foco da atenção foi a ofensiva ucraniana no sul, na direção de Kherson. Esse ataque está obtendo avanços apenas graduais, mas, na semana passada, a Ucrânia lançou uma ofensiva surpresa na região de Kharkiv que conquistou um progresso relâmpago no nordeste.
A internet está repleta de imagens de civis ucranianos em júbilo sendo libertados do jugo da ocupação russa. As forças ucranianas afirmam ter libertado ao todo mais de 1,6 mil quilômetros quadrados de território (uma área maior que a ocupada pelas cidades de Los Angeles e Nova York combinadas), e a ofensiva ainda não acabou. Especialmente significativas foram as libertações de uma ferrovia crucial e polos logísticos como a cidade ucraniana de Izium, que eram usados para dar apoio às operações russas na região do Donbas, no leste ucraniano.
Trata-se da maior vitória da Ucrânia desde que suas forças defenderam com sucesso Kiev nos primeiros dias da guerra. Os planos de Putin de uma guerra de três dias resultaram em um árduo confronto de quase sete meses. Como a Ucrânia foi tão bem-sucedida em superar seu vizinho maior? Eu vejo quatro fatores em operação.
Primeiro, a ajuda do Ocidente tem sido vital. A decisão do presidente Joe Biden, em junho, de fornecer à Ucrânia os Sistemas de Foguetes Artilharia de Alta Mobilidade (Himars) foi um ponto de inflexão. Esses foguetes de longo alcance permitiram aos ucranianos atingir depósitos de munição e posições de comando dos russos. A decisão mais recente dos Estados Unidos de enviar Mísseis Antirradiação de Alta Velocidade (Harm) permitiu aos ucranianos atingir radares russos de defesa antiaérea, o que conferiu aos drones e à Força Aérea da Ucrânia maior liberdade para dar apoio à ofensiva terrestre. Enquanto isso, armamentos antiaéreos como os blindados Gepard, de fabricação alemã, têm permitido às forças ucranianas conter as aeronaves russas. Washington também tem compartilhado com os ucranianos informações de inteligência cruciais.
Mas lembrem-se: as forças afegãs também receberam toneladas de equipamento militar do Ocidente e isso não evitou seu colapso no verão do ano passado — o que decorreu em grande medida do fato de sua luta ser em nome de um regime impopular e corrupto.
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Uma diferença crucial na Ucrânia — e o segundo fato que explica seu extraordinário sucesso — é a unidade do povo ucraniano no apoio ao governo de Volodmir Zelenski. A decisão do presidente ucraniano de ficar em Kiev nos primeiros dias da guerra, sob um risco considerável à sua vida, assegurou sua posição no panteão dos grandes líderes em tempos de guerra. Mas isso é maior que Zelenski: os ucranianos estão lutando para defender sua democracia e seu direito à autodeterminação.
Putin, o Açougueiro de Bucha, tentou romper a determinação da Ucrânia a resistir com seus ataques bárbaros contra civis, mas, assim como no bombardeio de Hitler contra Londres, suas táticas saíram pela culatra ao unir suas vítimas contra ele. Se os ucranianos ainda precisassem de alguma motivação para continuar lutando, as terríveis atrocidades que as forças russas cometem onde quer que vão seriam mais que suficientes.
O terceiro fator que explica o sucesso da Ucrânia é a engenhosidade, a habilidade e o espírito de luta de suas Forças Armadas. Elas foram reaparelhadas desde 2014 e transformadas em uma corporação que, assim como forças ocidentais, dá poder para comandantes de patentes mais baixas tomarem decisões independentes, em contraste com a centralização da autoridade entre as fileiras russas. O que os ucranianos fizeram — transformando seu Exército para incorporar vastas quantidades de armamentos estrangeiros com que seus soldados não estavam familiarizados ao mesmo tempo que realizam pesadas operações de combate — é comparável a reconstruir um avião em pleno voo. Suas habilidades táticas se destacaram repetidamente na semana passada. Ao anunciar sua ofensiva em Kherson, os ucranianos induziram os russos a mobilizar tropas do leste para o sul, abrindo um flanco no leste para o ataque surpresa.
O quarto e último fator que explica o rumo inesperado da guerra é a corrupção e estupidez do regime de Putin. Comandantes russos desperdiçaram as vantagens materiais que possuíam em razão de uma liderança incompetente agravada por falta de informação. Em seu ataque original contra Kiev, os russos demonstraram incapacidade de conduzir operações ágeis de ofensiva. Agora os ucranianos estão mostrando como é que se faz.
A única coisa em que os russos têm sido eficazes é em concentrar fogo de artilharia para pulverizar tudo que estiver em seu caminho, mas os himars neutralizaram a vantagem da artilharia russa ao interromper seu suprimento de projéteis. Essa brutalidade expôs todas as deficiências dos invasores. Na semana passada os russos foram pegos outra vez de surpresa: eles não haviam imaginado uma ofensiva em Kharkiv. As forças russas dificilmente se recuperarão, porque seu contingente é pequeno demais e tem sido sobrecarregado demais desde o início da guerra, e elas sofreram baixas pesadas ao longo desses mais de seis meses.
Evidentemente, não deveríamos pender de um extremo ao outro. Já se presumiu amplamente que a guerra acabaria com uma rápida vitória da Rússia e, quando isso não ocorreu, previu-se que o conflito resultaria em um impasse. Mas, conforme escrevi em 29 de junho, “ainda que a guerra no leste pareça um beco sem saída, um impasse militar pode ser rompido com rapidez chocante”. Agora isso aconteceu, e é uma alegria ver os ucranianos avançando.
Mas não deveríamos supor que a Ucrânia agora simplesmente avançará sem oposição rumo à vitória. As forças russas poderiam entrar em colapso, mas as forças ucranianas também poderiam ficar sobrecarregadas ou Putin poderia finalmente ordenar uma mobilização total — ou até o uso de armas nucleares táticas. A guerra, para o bem e para o mal, é algo inerentemente imprevisível. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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