THE NEW YORK TIMES — Com a matança bilateral no Oriente Médio desprendendo venenos que intensificam o ódio mundialmente, permitam-me discorrer sobre o que considero três mitos que inflamam o debate:
O primeiro é que haja um lado certo e outro errado no conflito no Oriente Médio (mesmo que as pessoas discordem sobre qual é o quê).
A vida não é assim tão simples. A tragédia no Oriente Médio é este confronto ser entre o certo e o certo. O que não justifica o massacre e a selvageria do Hamas nem Israel arrasar completamente bairros inteiros em Gaza, mas algumas aspirações legítimas que merecem ser atendidas permeiam o conflito.
Os israelenses merecem ter seu país — forjado por refugiados sob a sombra do Holocausto — e construíram uma economia no setor da alta tecnologia que empodera mulheres e respeita pessoas gays ao mesmo tempo que garante aos seus cidadãos palestinos mais direitos do que a maioria dos países árabes concede às suas populações. Os tribunais, a liberdade de imprensa e a sociedade civil de Israel são modelos para a região, e existe também um padrão de dois pesos e duas medidas: críticos denunciam abusos israelenses ao mesmo tempo que frequentemente ignoram brutalidades prolongadas contra muçulmanos do Iêmen à Síria, do Sahara Ocidental a Xinjiang.
Da mesma forma, os palestinos merecem um país, liberdade e dignidade — e não deveriam se sujeitar a uma punição coletiva. Nós chegamos a um marco causticante: em apenas cinco semanas de guerra, 0,5% da população de Gaza foi morta. Para colocar em perspectiva, isso equivale a mais que a fatia da população americana morta na 2.ª Guerra — ao longo de quatro anos.
Uma grande maioria dos mortos é de mulheres e crianças, de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas, e a dimensão da ferocidade e da natureza indiscriminada de alguns ataques aéreos pode ser percebida no fato de que mais de 100 funcionários da ONU foram mortos, segundo a entidade o maior número de mortes entre seus quadros em qualquer conflito desde sua fundação. Talvez seja porque, conforme definiu um porta-voz militar anteriormente neste conflito, “a ênfase é em dano, não em precisão”.
“Todos nós somos pessoas normais, tentando viver”, disse-me pelo telefone um engenheiro em Gaza. Ele despreza o Hamas e gostaria de ver o grupo retirado do poder, mas afirma que os combatentes ficam em segurança, dentro dos túneis, enquanto ele e seus filhos são as pessoas que mais correm perigo. “Nós somos civis e pagamos o preço.”
Seja qual for o lado ao qual você mais se inclina, lembre-se de que o outro inclui seres humanos desesperados que esperam apenas que seus filhos possam viver livremente e prosperar em sua própria nação.
O segundo mito é que a resolução da questão palestina pode ser adiada indefinidamente, postergada por Israel, Estados Unidos e outros países. Era esta a estratégia do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, sua maneira de evitar um Estado palestino, que funcionou por um tempo — como uma panela de pressão, até explodir.
É difícil imaginar o contrafactual, se um Estado palestino teria ou não sido melhor para a segurança de Israel. Mas a inexistência do Estado palestino, em retrospecto, não fez de Israel um lugar seguro, e os riscos podem aumentar caso a Autoridade Palestina colapse em razão de corrução, ineficácia e falta de legitimidade.
O presidente de Israel, Isaac Herzog, afirmou que um dos combatentes do Hamas em 7 de outubro carregava instruções para lançar armas químicas, o que serve de lembrete a respeito de um risco com o qual especialistas em terrorismo têm se preocupado há anos, de grupos extremistas utilizarem agentes biológicos e químicos.
O Estado Israel tem direito de se sentir ansioso em qualquer caso, mas eu suspeito que a melhor maneira de garantir sua segurança pode ser, em vez de protelar as aspirações palestinas, honrá-las numa solução de dois Estados. Não apenas como uma concessão para os árabes, mas num reconhecimento pragmático dos próprios interesses de Israel — e do mundo.
O terceiro mito encontra-se de ambos os lados do conflito e é mais ou menos: que pena que nós tivemos de nos envolver nesse derramamento de sangue, mas as pessoas do outro lado só entendem a violência.
Eu ouço isso de amigos que apoiam a guerra em Gaza e me consideram bem intencionado mas mal informado, um indivíduo ingênuo incapaz de compreender a triste realidade de que a única maneira de manter o Estado de Israel seguro é pulverizar Gaza e extirpar o Hamas sob qualquer custo humano.
O Hamas realmente só entende a violência e tem sido brutal tanto com israelenses quanto com palestinos — mas o Hamas e os palestinos não são a mesma coisa, assim como os colonos violentos na Cisjordânia não representam todos os israelenses. Eu sou totalmente favorável a ataques cirúrgicos contra o Hamas e ficaria feliz se Israel conseguisse pôr fim ao extremismo em Gaza. Mas até aqui, eu temo que a ferocidade e a falta de precisão dos ataques de Israel tenham cumprido o objetivo do Hamas de escalar a questão palestina e mudar a dinâmica do Oriente Médio (e o Hamas é indiferente às baixas palestinas).
Nesse sentido, o Hamas pode estar vencendo.
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Em cinco semanas de guerra, eu não vejo nenhuma evidência de que as Forças Armadas de Israel tenham causado dano significativo ao Hamas, mas mataram vastos números de civis, colocaram a dificuldade dos palestinos no topo da agenda global, dissiparam a torrente inicial de simpatia por Israel, fizeram com que pessoas em todo o mundo marchassem pela Palestina, distraíram a atenção dos israelenses sequestrados e romperam qualquer possibilidade próxima de Israel normalizar as relações com a Arábia Saudita.
Meu amigo Roy Grow, especialista em relações internacionais da Faculdade Carleton, morto em 2013, costumava dizer que um objetivo crucial de organizações terroristas é fazer o adversário reagir exageradamente. Ele comparou essa estratégia ao jiu-jítsu, com as organizações terroristas usando o peso de seus oponentes para derrotá-los — e foi isso que o Hamas fez.
Ambos os lados desumanizam o outro, mas as pessoas são complexas, e nenhum lado é monolítico — e lembre-se de que guerras não tratam de populações, mas de pessoas. Pessoas como Mohammed Alshannat, doutorando em Gaza, que tem mandado mensagens desesperadas para amigos que temos em comum; ele concordou em permitir que eu as publicasse como um vislumbre da vida em Gaza.
“Houve bombardeios pesados na nossa área”, escreveu ele, em inglês, em uma das mensagens. “Nós saímos correndo para salvar nossas vidas, e eu perdi dois dos meus filhos na escuridão. Eu e minha mulher ficamos a noite inteira procurando por eles em meio a centenas de ataques aéreos. Nós sobrevivemos milagrosamente a um ataque aéreo e os encontramos desmaiados, de manhã. Por favor, rezem por nós. É impossível descrever a situação.”
“Eu vejo a morte centenas de vezes ao dia”, escreveu ele em outro momento. “Nós defecamos ao ar livre, meus filhos defecam nas calças e não há água para limpá-los.”
Se Alshannat sobreviver à guerra, o que nós, americanos, poderemos dizer para ele e seus filhos? Como explicaremos que nós fornecemos bombas para esta guerra, que nós fomos cúmplices no terror e degradação de sua família?
Se um caminho na direção da paz existir — seja em dois Estados ou em um — ele começará com todos nós movendo-nos para além dos estereótipos. Os israelenses não são o mesmo que Netanyahu, e os palestinos não são o mesmo que o Hamas.
Buscar a humanidade em cada lado significa exigir a libertação dos reféns israelenses e denunciar a desumanização que leva pessoas a retirarem pôsteres de israelenses sequestrados de espaços públicos. Significa também renunciar ao que Netanyahu chama de “vingança poderosa” e transforma bairros inteiros de Gaza em escombros com corpos enterrados.
Estou exasperado com as pessoas cujos corações sangram apenas por um lado ou que afirmam sobre as mortes do outro: “Isso é trágico, mas…”. Chega de “mas”. Se você não acredita em direitos humanos de judeus e palestinos você na realidade não acredita em direitos humanos absolutamente.
Se você chora apenas as crianças israelenses ou apenas as crianças palestinas, você tem um problema — e não nas vias lacrimais. Crianças de ambos os lados têm sido massacradas irrefletidamente, e a solução desta crise começa com o reconhecimento de um princípio tão básico que nem deveria precisar ser mencionado: todas as vidas de todas as crianças têm valor igual, e pessoas boas ocorrem em todas as nacionalidades. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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