Thomas Friedman: Soldados sem nome, um político sem vergonha e o líder sem alma; leia o artigo

Não consigo lembrar de outro momento em minha vida em que tenha duvidado do futuro da democracia americana e do futuro da democracia no mundo

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Por Thomas Friedman

THE NEW YORK TIMES - Estou pensando a respeito de três pessoas cujo atual comportamento poderia surtir um impacto significativo no mundo nos próximos meses e possivelmente nos próximos anos: um soldado sem nome, um político sem vergonha e um líder sem alma.

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O primeiro eu admiro, o segundo não deveria receber nada além de desprezo e o terceiro deverá ser conhecido eternamente como um criminoso de guerra.

Os soldados sem nome são os milhares de ucranianos — os que usam uniforme e os homens e mulheres civis — que estão defendendo a recente democracia de seu país contra a tentativa bárbara de Vladimir Putin de varrer a Ucrânia do mapa.

Militar ucraniana reza durante celebração da Páscoa ortodoxa na catedral de St. Volodymyr, em Kiev  Foto: Dimitar Dilkoff/AFP

Sejam soldados treinados profissionalmente ou “babushkas” usando seus smartphones para denunciar coordenadas de tanques russos que se escondem nas florestas atrás de suas fazendas, sua disposição de lutar e morrer anonimamente para preservar a liberdade e a cultura da Ucrânia é a refutação absoluta da alegação de Putin de que a Ucrânia não é um país “real”, mas em vez disso parte integrante da “da história, da cultura e do espaço espiritual” da Rússia.

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Nós não conhecemos seus nomes — não sei o nome de nenhum general ucraniano, apesar de todos os seus sucessos até agora — mas seus feitos mostraram a Putin que o país pelo qual eles lutam é muito real, muito distinto do dele e está disposto a se defender ferozmente.

Se os líderes da Ucrânia escolherem negociar um acordo de paz com a Rússia, devemos ajudar a lhes dar apoio nas negociações, mas enquanto eles escolherem lutar, devemos ajudar a armá-los. Porque eles não estão defendendo apenas a Ucrânia, estão defendendo a possibilidade de uma Europa inteira e livre — onde um país não pode simplesmente devorar outro. Isso não torna apenas a Europa um lugar melhor, torna o mundo inteiro um lugar melhor.

A segunda pessoa em quem estou pensando é Kevin McCarthy, o líder do Partido Republicano na Câmara dos Deputados — um homem que, agora sabemos, não teve coragem para manter sua própria manifestação fugaz de coragem.

Devemos à reportagem de meus colegas do Times Jonathan Martin e Alexander Burns a oportunidade de apreciar o quanto o comportamento de McCarthy representa um perfil de covardia em quatro atos:

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1.º Ato. Martin e Burns citam que McCarthy confessou a colegas republicanos seus sentimentos em relação ao ex-presidente Donald Trump imediatamente após o ataque de 6 de janeiro de 2021 contra o Capitólio. “Cansei desse sujeito”, afirmou McCarthy, que descreveu as ações de Trump no 6 de Janeiro como “deploráveis e totalmente erradas”. Trump poderia sofrer impeachment, afirmou McCarthy, então ele queria recomendar ao ex-presidente, “o sr. deveria renunciar”.

2.º Ato. Após essas revelações serem publicadas na manhã da quinta-feira passada, McCarthy emite um comunicado declarando que “a reportagem do New York Times sobre mim é totalmente falsa e equivocada”.

3.º Ato. Naquela noite, graças a uma gravação de áudio vazada que foi publicada online pelo Times e reproduzida no programa de Rachel Maddow na MSNBC, o mundo inteiro pôde escutar McCarthy falando a uma conferência da liderança republicana na Câmara, em 10 de janeiro, que seu plano era dizer a Trump que seu impeachment “será aprovado, e minha recomendação é que o sr. renuncie” — exatamente o que McCarthy negou ter afirmado horas antes.

4.º Ato. McCarthy — em vez de se desculpar com seus eleitores e com o povo americano por mentir — telefona para Trump para se explicar e convencer o ex-presidente de que deve continuar sob suas boas graças. Trump perdoa magnanimamente o puxa-saco McCarthy pelo pecado de ter falado a verdade.

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Líder da minoria na Câmara, o republicano Kevin McCarthy, chega ao Capitólio, em 26 de abril  Foto: Michael Reynolds/EFE

John Wooden, o lendário técnico do time de basquete da UCLA, gostava de afirmar que “o verdadeiro teste para o caráter de um homem é o que ele faz quando ninguém está vendo”.

A maioria dos legisladores preferiria que o mundo acreditasse que, quando tudo estava em jogo para os EUA, eles falaram a verdade e ficaram do lado da Constituição contra um presidente que tentava subvertê-la. Foi essa a posição que McCarthy expressou aos seus colegas republicanos, privadamente, que estava adotando.

Mas McCarthy revelou, então, seu verdadeiro caráter. Quando se deu conta de que fazer a coisa certa pelo país poderia lhe custar o apoio de Trump e seu sonho de se tornar presidente da Câmara, McCarthy mentiu a respeito de ter falado a verdade. E ainda pior, quando a mentira e o mau caráter de McCarthy foram expostos, muitos em seu partido o apoiaram de qualquer modo.

Este é o novo “macarthismo” — o Kevin McCarthismo — segundo o qual um político pode dizer o que bem entender, até mesmo mentiras a respeito de ter falado a verdade, e se dar bem.

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Linha de sucessão

Essa tendência ameaça tanto a democracia americana quanto qualquer coisa que Vladimir Putin esteja fazendo. Porque se um picareta sem vergonha e infame como McCarthy for capaz de vender sua alma para pessoas suficientes e se tornar presidente da Câmara, ele se torna o segundo na linha de sucessão presidencial, após a vice-presidente.

E isso é uma ameaça porque tudo o que McCarthy e seus colegas fizeram erode a distinção entre o nosso sistema a o sistema liderado pelo homem sem alma — Vladimir Putin, que também não hesitará em se valer de qualquer meio para se manter no poder, seja encarcerando ou supostamente envenenando seus críticos ou envenenando democracias com desinformação.

Putin, contudo, não está obcecado apenas em se manter no poder e disposto a violar qualquer norma para retê-lo. Ele está obcecado também com a perda de poder, dignidade e respeito da Rússia — que resultou da queda da União Soviética — e precisa restaurá-los.

Sua irresponsável decisão de invadir a Ucrânia foi alimentada por um desejo de impedir a expansão da Otan e da União Europeia para as proximidades das fronteiras russas. Mas ele quis fazer isso de uma maneira que mostrasse a todos como o Ocidente é fraco e dividido e provasse que a Ucrânia não é um país real, ao subjugar o lugar em uma semana. A aula havia começado, e Putin ensinaria ao Ocidente uma lição.

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Presidente Vladimir Putin em uma reunião no Kremlin, em 6 de abril  Foto: Mikhail Klimentyev, Sputnik, Kremlin Pool Photo via AP

Mas o programa de aula de Putin deu muito errado. Em vez de ensinar para o Ocidente — e para todos aqueles ucranianos que querem ser parte do Ocidente — uma lição e apagar as humilhações da Rússia, Putin foi ainda mais humilhado.

Precisamos pisar em ovos nesse sentido — não há nada mais perigoso do que um líder duplamente humilhado que possui armas nucleares.

Putin é capaz de qualquer coisa. Quando consideramos como esta guerra arrasou as economias e os Exércitos tanto da Rússia quanto da Ucrânia, o lugar de Putin na história já está garantido: Ele é o líder que destruiu dois países para salvar uma imagem — a sua própria. Mas ele fará de tudo para continuar tentando salvar sua imagem.

Então, aqui vai minha conclusão: vários anos atrás, uma biografia de Ariel Sharon foi publicada em hebraico sob o título Ele não para no farol vermelho. Trata-se de um título adequado para os nossos tempos, também. Algo que muito me irrita a respeito do estado atual do mundo é a quantidade de líderes prontos para furar o sinal vermelho de maneira desavergonhada, em plena luz do dia — e com um senso de impunidade absoluta.

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O serviço de segurança do Capitólio chegou a fechar o complexo durante a invasão e pedir para os funcionários e parlamentares usarem canais subterrâneos para transitar entre os prédios Foto: SHANNON STAPLETON


Ou seja, uma disposição de atropelar os impedimentos legais e normativos que mantiveram o mundo relativamente em paz nos 70 anos recentes, durante os quais não testemunhamos nenhuma guerra entre grandes potências e que permitiram às pessoas emergir da extrema pobreza mais rapidamente do que em qualquer outra era da história.

Sentiremos falta dessa condição se isso acabar. Para manter a paz, contudo, é necessário que ajudemos todos aqueles ucranianos sem nome que lutam pela liberdade a serem bem-sucedidos. E é necessário garantirmos que a busca de Putin para encontrar dignidade esmagando esse movimento ucraniano de liberdade fracasse.

Mas nada disso é suficiente se todos esses políticos americanos que também acham que podem atravessar o farol vermelho para conquistar ou se manter no poder forem bem-sucedidos. Desta maneira, quem seguiria nosso exemplo?

Não consigo lembrar de outro momento em minha vida em que tenha duvidado do futuro da democracia americana e do futuro da democracia no mundo. E não se engane, eles estão ligados. E não se engane; ambos podem ir bem ou mal. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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