Nunca estivemos tão perto da destruição da humanidade, segundo o relógio do Juízo final, que desde o ano passado diz que faltam 90 segundos para a meia-noite. Ao mesmo tempo que o mundo bate recordes em quantidade de conflitos ativos, os países que possuem armas nucleares disparam uma nova corrida armamentista ao atualizar seus arsenais e deixá-los pronto para uso imediato.
Estados Unidos, Rússia, China, Paquistão, Índia, Reino Unido, Israel, França e Coreia do Norte vêm aumentando o número de ogivas nucleares implantadas, segundo monitoramento da Federação de Cientistas Americanos (FAS).
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Por “implantadas” se entende como as ogivas já instaladas em mísseis ou prontamente disponíveis em instalações militares para serem utilizadas rapidamente. Diferente das ogivas armazenadas, que requerem tempo para serem preparadas e colocadas para uso.
Ao contrário das implantadas, as ogivas armazenadas têm caído devido ao desmantelamento dos arsenais de EUA e Rússia da época da Guerra Fria. “Se você olhar os números totais de ogivas, eles estão caindo, o que dá a impressão de que as coisas estão indo bem, e não estão”, alerta Matt Korda, diretor associado do Projeto de Informação Nuclear na FAS.
“O número de armas nucleares em estoques militares, que são aquelas armas que podem ser usadas em um conflito, estão aumentando e não estamos vendo isso acontecer apenas com os suspeitos de sempre, como China e Coreia do Norte, mas também, com o Reino Unido, Índia e Paquistão. Estamos vendo isso acontecer em toda parte com a maioria dos países detentores de armas nucleares.”
Ao todo, os nove países possuem 12.121 ogivas, das quais 9.585 estão em estoques militares e dessas, 3.904 estão implantadas em mísseis e bombardeiros. Cerca de 2.100 ogivas dos EUA, Rússia, Reino Unido e França estão em alerta máximo e podem ser utilizadas em um curto espaço de tempo.
“Conforme os anos passam, provavelmente vamos ver esses estoques continuar a crescer e estamos vendo que os países estão reagindo às coisas que outros países estão fazendo e é quase como se todos estivessem presos em um tipo de corrida armamentista multipolar”, observa Korda, que já atuou no Centro de Controle de Armas, Desarmamento e Não Proliferação na sede da Otan.
Esses números são estimativas feitas pela FAS com base em levantamento de notícias, documentos oficiais e imagens de satélite, já que a maioria desses países não divulga informações sobre seus arsenais nucleares alegando segurança nacional. Apesar do acordo New Start entre as duas maiores potências nucleares, EUA e Rússia deixaram de compartilhar dados sobre suas ogivas implantadas.
Os números de hoje ainda são bastante distantes das mais de 70 mil ogivas que haviam no mundo durante o ápice da Guerra Fria em 1986, uma redução drástica que pode ser atribuída aos acordos de controle de armas do pós-guerra.
Hoje o mundo retornou à quantidade de ogivas que existiam em 1950, na esteira da corrida entre EUA e Rússia para desenvolver suas primeiras bombas. Porém, a comparação entre os dois períodos seria “o mesmo que comparar maçãs com laranjas”, argumentam os pesquisadores da FAS em seu último relatório sobre o status nuclear mundial, já que “as forças de hoje são muito mais capazes.”
Um mundo em conflito
Essa corrida armamentista nuclear acontece em um momento em que a diplomacia perdeu espaço para novos conflitos e guerras cada vez mais destrutivas. Em 2023, o número de conflitos envolvendo forças de Estado atingiu o recorde de 59 contra 55 do ano anterior, segundo o Programa de Coleta de Dados de Conflitos da Universidade de Uppsala, na Suécia.
Por outro lado, o número de mortes em combates no mundo caiu no ano passado, com 154 mil registros contra os mais de 310 mil de 2022, ano mais letal desde o genocídio de Ruanda. Essa queda é atribuída ao fim do conflito na Etiópia, até então considerada a “pior guerra do mundo” em termos de letalidade.
Nestes dois anos, duas novas guerras surgiram envolvendo dois países nucleares: a guerra na Ucrânia, em que Moscou possui as armas, e o conflito em Gaza, com Israel sendo a nação nuclearizada embora esconda essas informações.
Justamente na guerra da Ucrânia que a perspectiva de um conflito com armas nucleares ressurgiu, já que Vladimir Putin constantemente ameaça utilizar seus armamentos táticos. No momento mais tenso da guerra até agora, Moscou realizou exercícios com armas nucleares táticas na fronteira da Ucrânia.
“Não vemos armas nucleares desempenharem um papel tão proeminente nas relações internacionais desde a Guerra Fria’, afirmou Wilfred Wan, Diretor do Programa de Armas de Destruição em Massa em relatório do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri) publicado em junho.
“É difícil acreditar que apenas dois anos se passaram desde que os líderes dos cinco maiores Estados armados nuclearmente reafirmaram conjuntamente que ‘uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser travada’”, completa.
Para agravar, este ano escalou as tensões entre Israel e o Irã, país que está cada vez mais perto de desenvolver sua primeira bomba, segundo análises da Agência Internacional de Energia Atômica.
China como terceira potência nuclear
Neste contexto bélico, entra uma futura terceira potência nuclear. Os EUA aprovaram em março um novo plano de estratégia nuclear que, pela primeira vez, coloca a China em foco. Embora ainda tenha um estoque pequeno em comparação com as duas potências nucleares, Pequim vem rapidamente crescendo o seu arsenal e pode se tornar a terceira potência até a próxima década, projeta o Pentágono.
Segundo estimativas do Sipri e da FAS, a China aumentou suas ogivas de 410 em 2023 para 500 em janeiro de 2024. “Pela primeira vez, a China também pode estar implantando um pequeno número de ogivas em mísseis durante tempos de paz”, aponta o relatório do Sipri.
E continua: “Dependendo de como decidir estruturar suas forças, a China poderia potencialmente ter pelo menos tantos mísseis balísticos intercontinentais (ICBMs) quanto a Rússia ou os EUA na virada da década, embora seu estoque de ogivas nucleares ainda deva permanecer muito menor do que os estoques de qualquer um desses dois países.”
“Por décadas, a China teve essa compreensão de suas armas nucleares como sendo exclusivamente para dissuadir”, explica Matt Korda. “Basicamente eles falam que precisam do número mínimo de armas nucleares necessário para sua segurança.”
“O que provavelmente está acontecendo agora é que eles olharam ao redor e viram muitos outros países que estão fortalecendo seus próprios arsenais e disseram ‘essas 200 ogivas que costumávamos ter não são mais suficientes para o que é o mínimo que precisamos, o nosso novo limiar para o mínimo provavelmente tem que ser mais alto’”, conclui.
Esse aumento chinês, em conjunto com a “parceria sem limites” entre Pequim e Moscou, aproximação de Moscou com Teerã e com a Coreia do Norte, bem como o fim previsto do New Start em 2026 - que a Rússia paralisou o compartilhamento de informações, mas não se retirou totalmente ainda - fizeram os EUA correrem para mudar a sua doutrina, segundo jornais americanos citando documentos secretos do Pentágono.
O aumento da China também tem impactado a Índia, que possui rivalidade histórica com Pequim e vê necessidade de aumentar seu próprio arsenal. O que por si só gera a mesma resposta do Paquistão, com quem a Índia compartilha escaramuças territoriais constantes.
“O que a doutrina nuclear do Paquistão basicamente diz, na medida em que nós podemos entender, é que eles desenvolveram especificamente armas nucleares táticas para serem usadas imediatamente em uma crise”, afirma Korda.
“Enquanto a Índia pensa sobre suas armas nucleares de uma maneira muito diferente, em que elas são exclusivamente para retaliação massiva. Elas não são para combate em guerra ou uso limitado e, do ponto de vista deles, a melhor maneira de deter o uso nuclear limitado do Paquistão é uma retaliação massiva.”
Uma guerra nuclear moderna
Como seria um conflito nuclear hoje? É uma pergunta que cientistas da área fazem, já que desde a Guerra Fria essa era uma perspectiva distante. Mas com certeza não seriam disparos generalizados de grandes ogivas que levariam a imensas nuvens de cogumelos.
Depois das bombas de Hiroshima e Nagasaki e com as animosidades da Guerra Fria, o mundo entrou na doutrina da destruição mútua assegurada, que parte do princípio de que uma guerra entre duas potências nucleares causaria a destruição de ambas e deveria ser evitada, tornando as armas nucleares ativos de intimidação e dissuasão apenas.
Hoje, porém, as bombas são diferentes. Existem ogivas de menor capacidade explosiva. Enquanto na Guerra Fria se falava em bombas de megatons de força explosiva, hoje as armas podem ter menos de um kiloton ou até variar como um dial. A de Hiroshima tinha entre 15 e 20 kilotons, capaz de matar 100 mil pessoas.
Embora menores, ainda possuem grande capacidade destrutiva, afirma Korda, mas se tornam mais tentadoras de utilizar do que os poderosos megatons que jogariam a Terra no chamado inverno nuclear.
“Ter armas com este rendimento tão baixo poderia torná-las mais utilizáveis em uma crise, porque elas não são um sistema de armas que destrói cidades”, diz Korda. “Ainda vai causar muita destruição, mas talvez um tomador de decisões poderia olhar para ela e dizer ‘É só uma pequenininha’”.
“Não temos um tamanho de amostra real para inferir isso porque uma guerra nuclear nunca aconteceu antes - tivemos aqueles dois usos na 2ª Guerra, mas não tivemos uma troca nuclear - então não sabemos como um tomador de decisão vai reagir se lhe for apresentada a opção de usar uma arma nuclear muito pequena ou uma muito grande”, finaliza.
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