Para Brasil sair do Tribunal Penal Internacional, como quer Lula, é preciso mudar a Constituição

Ainda que Lula patrocine uma tentativa de abandonar o TPI pela via legislativa, não há consenso entre juristas se seria possível sair da Corte de Haia via PEC

PUBLICIDADE

Foto do author Daniel Gateno

As recentes declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre oTribunal Penal Internacional (TPI) abriram um debate no governo sobre uma possível saída do país do Estatuto de Roma, que rege as relações entre os Estados-parte e a Corte. Na quarta-feira, o Ministro da Justiça, Flávio Dino, disse que o Executivo poderia rever a adesão do Brasil ao tratado. Especialistas em direito constitucional consultados pelo Estadão alertam que um rompimento com o TPI, se colocado em curso, não seria de competência do Executivo. Além disso, é impossível abandonar a Corte sem alterar a Constituição Federal e um longo debate jurídico e político sobre o tema.

PUBLICIDADE

Ainda que Lula patrocine uma tentativa de abandonar o TPI pela via legislativa, não há consenso entre juristas se seria possível sair da Corte de Haia com uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Isso acontece porque o Estatuto de Roma, aprovado no Brasil em 2002, foi incluído no Artigo 5º da Constituição, e é considerado uma cláusula pétrea da Carta Magna, ou seja, não pode ser alterado por PEC.

Para o professor de direito constitucional da FGV-SP, Oscar Vilhena Vieira, Lula não pode sozinho decidir abandonar o TPI. “Para renunciar ao tratado, o presidente precisaria de autorização do Congresso, com procedimento e quórum de emenda (à Constituição). Lula não pode por si só romper o compromisso do Estado brasileiro“, avalia o jurista. “Mas mesmo que o Congresso autorize o presidente a modificar, o STF teria que avaliar se a emenda é constitucional.”

“O Brasil sempre foi apoiador do tribunal, não esperava isso do governo Lula. Se fosse o governo Bolsonaro eu teria acreditado mais facilmente

Sylvia Steiner, ex-juíza brasileira do TPI

Ainda de acordo com Vilhena Vieira, a PEC teria poucas chances de ser validada pelo Supremo, já que, em sua visão, uma saída do TPI, violaria outro artigo da Constituição, o 4º. “O artigo 4ºdetermina que no campo internacional o Brasil deve se pautar pela prevalência dos direitos humanos e o Tribunal é uma instância de defesa dos direitos humanos”, pondera Vieira. “No plano internacional, apontaria uma mudança radical da postura brasileira, em contraposição a tradição de sua diplomacia em tempos democráticos”, acrescenta.

Publicidade

Uma PEC precisa do apoio de 3/5 da Câmara e do Senado em dois turnos para ser aprovada. Não é uma negociação política simples e geralmente é reservada a temas de grande interesse do governo, como foi o caso recente, por exemplo, do arcabouço fiscal.

Sylvia Steiner, ex-juíza do TPI e única brasileira a ter integrado o colegiado, diz que a mudança proposta por Lula é inviável, já que o artigo 5º inteiro (ele tem 79 parágrafos) não seria passível de mudança. “Lula teria que convocar uma Constituinte e fazer uma nova Constituição para sair do TPI”, aponta Steiner. “Esta medida é muito desproporcional, então não vai acontecer.”

Para a ex-juíza do TPI, é difícil entender as motivações que um governo que se diz progressista tem para sair da Corte. “O Brasil sempre foi apoiador do tribunal, não esperava isso do governo Lula. Se fosse o governo Bolsonaro eu teria acreditado mais facilmente. As declarações do ministro da Justiça, Flavio Dino, foram preocupantes porque ele foi juiz federal, deveria saber que a possibilidade de sair do TPI é remota.”

O afago a Putin

A discussão em torno do TPI começou após as declarações de Lula durante a cúpula do G-20, em que o presidente brasileiro defendeu a presença do presidente da Rússia, Vladimir Putin, que tem um mandado de prisão emitido pelo TPI, na próxima reunião do bloco, que será realizada no Rio de Janeiro em novembro do ano que vem e disse que, uma vez no Brasil, Putin não seria preso por uma questão de soberania.

Publicidade

“O que eu posso dizer é que, se eu sou o presidente do Brasil e ele for para o Brasil, não há por que ele ser preso”, afirmou em entrevista ao canal indiano Firstpost em Nova Délhi.

Quando questionado sobre o mandado emitido pelo TPI contra Putin por crimes de guerra por causa de seu suposto envolvimento em sequestros e deportação de crianças de partes da Ucrânia ocupadas pela Rússia durante a guerra, Lula afirmou que “ninguém vai desrespeitar o Brasil, porque tentar prender ele no Brasil é desrespeitar o Brasil.”

Na realidade, o Estado brasileiro seria obrigado a entregar o líder russo à Corte de Haia. Ao Estadão, o ex-ministro do Supremo Celso de Mello lembra que o Estatuto de Roma está formalmente incorporado ao ordenamento interno do Estado brasileiro desde a sua promulgação pelo Decreto no 4.388, de 25/09/2002. “Impende observar, ainda, que se impõe, ao Brasil, em sua condição de Estado Parte do Estatuto de Roma, a “Obrigação geral de cooperar” com o Tribunal Penal Internacional”, diz Celso de Mello.

Lula durante a reunião do Brics (à esquerda) com Putin participando via videoconferência: russo não foi à África do Sul para não ser preso Foto: PHILL MAGAKOE / AFP

Após a polêmica provocada declarações, o presidente brasileiro recuou de blindar Putin. O presidente também disse que o tribunal funciona somente com países “bagrinhos”, referência aos menos desenvolvidos e que nem sabia da existência do TPI. Ele deixou em aberto uma eventual retirada do Brasil do Estatuto de Roma.

“Eu não sei se a Justiça brasileira vai prender. Quem decide é a Justiça, não é o governo nem o parlamento. Quem toma a decisão é a Justiça e temos que ver se vai acontecer alguma coisa”, disse o presidente, em entrevista coletiva antes de decolar de volta ao Brasil. “Se o Putin decidir ir ao Brasil, quem toma a decisão se vai prendê-lo ou não é a Justiça, não é o governo, nem o Congresso.”

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, discursa em Brasília  Foto: Andre Borges/ EFE

PUBLICIDADE

Países signatários

O chamado Tribunal de Haia foi estabelecido pelo Estatuto de Roma, em 1998 e entrou em vigor em 2002. Sua missão é investigar, processar e julgar indivíduos por violações que dizem respeito à comunidade internacional, mais especificamente genocídios, crimes contra humanidade, de guerra e de agressão. Esse último caracterizado pelo uso da força de um Estado contra a integridade territorial de outro país.

O TPI conta com 123 países signatários com destaque para França, Reino Unido, Alemanha, Austrália e Japão. A África do Sul também é signatária do TPI, motivo pelo qual Putin não compareceu de forma presencial à cúpula do Brics, que foi realizada em Johannesburgo, em agosto.

Países como Estados Unidos, Rússia e China não fazem parte da Corte. “A não adesão de países autoritários era esperada. O grande ausente entre as democracias são os Estados Unidos, que patrocinaram a sua construção, mas se negaram a aderir ao Tribunal, como aliás se negam a ratificar inúmeros tratados de direitos humanos. É uma posição reprovável”, aponta Vieira, professor de direito constitucional da FGV-SP.

A Ucrânia também não assina o Estatuto de Roma. Mesmo assim, Kiev permitiu que o TPI atuasse em seu território, abrindo portas para que o mandado de prisão contra Vladimir Putin fosse expedido.

Publicidade

A entrada do Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia, Holanda  Foto: Jerry Lampen/ Reuters

A importância do TPI

Steiner aponta que apesar do tribunal não ter países importantes como signatários, a representatividade do TPI é inegável. “Estamos do lado certo da história, Lula falou que não havia países do Conselho de Segurança da ONU no TPI, mas França e Reino Unido estão lá. Nós estamos juntos com toda a Europa, América Latina, Canadá, Japão. O TPI é um avanço civilizatório e o Brasil faz muito bem de ser signatário.”

Para o professor da FGV, apesar de críticas ao TPI, a Corte segue sendo importante. “Embora o TPI seja desbalanceado, a Corte tem gerado constrangimento a alguns criminosos, ainda que não tenha sido capaz de punir figuras como Putin.”, pondera. “O processo de consolidação de uma Justiça universal de proteção dos direitos humanos é lento. O Brasil se colocou ao lado do processo. Não me parece coerente politicamente, nem válido juridicamente, buscar agora se contrapor a esse processo”, completa o especialista.

Discurso x ação

Publicidade

Para a Diretora do Programa de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, Laura Trajber Waisbich, a possível saída do Brasil do TPI foi mais repercutida a nível doméstico do que internacional. “Por enquanto estamos falando do nível discursivo, que é diferente do Brasil tomar alguma ação para tirar o País do TPI”, acrescenta a analista.

“A proteção internacional dos direitos humanos está sendo questionada, mas menos pelo conteúdo direitos humanos e mais por uma visão que é política sobre como esse órgão deveria funcionar e seus limites dentro de um cenário geopolítico complexo”, destaca a especialista.

Waisbich avalia que a participação brasileira na Corte é importante para proteger os próprios brasileiros de seus governantes. “O órgão não diz respeito apenas à Rússia, o TPI protege brasileiros de eventuais crimes contra a humanidade cometidos por governantes brasileiros, independente de qual governo.”

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.