Paraguai convoca embaixador e suspende negociação de Itaipu para apurar espionagem da Abin

Governo Peña envia ao Itamaraty pedido formal de explicações detalhadas sobre operação de inteligência que mirava tratativas sobre a hidrelétrica, entre junho de 2022 e março de 2023

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Foto do author Felipe Frazão
Atualização:

BRASÍLIA - O governo do Paraguai convocou para esclarecimentos o embaixador do Brasil em Assunção, José Antonio Marcondes de Carvalho, nesta terça-feira, 1, após o site UOL publicar uma reportagem sobre um caso de espionagem da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) contra autoridades paraguaias.

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O gesto é uma forma de demonstração de repúdio diplomático. O governo Santiago Peña também suspendeu as negociações relativas ao Anexo C do Tratado de Itaipu, que estabelece as normas para uso e venda do excedente de energia gerada pela usina hidrelétrica binacional, até que “tudo seja esclarecido”.

O embaixador Marcondes de Carvalho foi convocado a comparecer nesta tarde à chancelaria paraguaia. Ele recebeu do vice-chanceler, Víctor Verdún, uma cobrança formal de explicações detalhadas, por meio de nota oficial. O governo Lula reconhece o caso de espionagem, mas diz que ele ocorreu durante o governo de Jair Bolsonaro e foi interrompido após a atual diretoria da Abin tomar posse, em março de 2023.

O embaixador José Marcondes de Carvalho recebe cobranças do vice-ministro paraguaio Víctor Verdún por caso de espionagem da Abin Foto: Ministério das Relações Exteriores do Paraguai

O governo Santiago Peña convocou uma coletiva de imprensa na residência oficial do presidente para falar da suspensão das negociações.

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O governo Peña também chamou de volta para consultas o embaixador paraguaio em Brasília, Juan Ángel Delgadillo, e abriu uma investigação sobre possíveis vulnerabilidades e eventos de intrusão no período que o governo brasileiro admitiu ter feito a operação.

Os ministros paraguaios das Relações Exteriores, Rubén Ramírez Lezcano, de Tecnologias da Informação e Comunicação, Gustvo Villate, e da Indústria e Comércio, Javier Giménez García de Zuñiga, coordenaram a reação.

“A intromissão em assuntos internos, por um país em outro, é uma violação do direito internacional”, afirmou Lezcano.

O ministro anunciou a suspensão das negociações relacionadas ao tratado de Itaipu até receber esclarecimentos satisfatórios. Ele disse que a espionagem “afeta profundamente a relação entre parceiros”.

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O presidente do Paraguai, Santiago Peña, ordenou a suspensão de negociações relacionadas à venda de energia de Itaipu e cobrou detalhes de espionagem ao Brasil Foto: Governo do Paraguai

Lezcano disse que o caso é visto com “absoluta seriedade” pelo lado paraguaio e relatou as quatro medidas adotadas.

“O que está claro é que houve uma ordem formal para levar adiante atividades de inteligência. Isso afeta a relação entre parceiros e obriga a restituir um elemento fundamental: a confiança”, afirmou o ministro. “Não estamos considerando que esses eventos ocorreram entre o governo anterior do Brasil e o governo anterior da República do Paraguai. Consideramos que se trata de uma ação de um país contra outro e, portanto, estamos tomando todas as medidas necessárias para salvaguardar os mais altos interesses da República do Paraguai.”

Villate disse que os fatos ocorreram no governo do ex-presidente Mario Abdo Benítez, sem registro de violações desde agosto de 2023, quando Peña tomou posse. Segundo ele, o Paraguai toma medidas de segurança necessárias, e a atual gestão não recebeu do ex-presidente notícia de possível hackeamento.

Javier Giménez afirmou que as negociações ficarão suspensas por tempo indefinido até que a confiança entre os países seja restaurada. Ele afirmou que o país ainda não sabe se e-mails foram interceptados, se telefones de ministros e altas autoridades foram grampeados ou se houve monitoramento.

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Negociações interrompidas

Em 21 de fevereiro, a secretária-geral das Relações Exteriores, Maria Laura da Rocha, viajou a Assunção e acertou um prazo para a assinatura do novo texto desse anexo do tratado. A previsão era concluí-lo até 30 de maio.

A reunião ocorreu entre as Altas Partes do Tratado, os ministérios das Relações Exteriores dos dois países. O presidente Peña participou.

Em 16 abril do ano passado, os países assinaram um acordo para estabelecimento da nova tarifa de energia - o “Entendimento entre Brasil e Paraguai sobre Diretrizes Relacionadas à Energia de Itaipu Binacional”-, cujos termos deveriam ser seguidos.

Em 2023, o pagamento das obras de construção da usina foi quitado, e o tratado previa que o Anexo C fosse revisto - ou mesmo mantido. Após 50 anos, a dívida total de US$ 63,5 bilhões foi totalmente paga, e o acordo previa que, em 13 de agosto de 2023, venceriam as condições financeiras da comercialização da energia.

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No ano passado, a tarifa de energia foi estabelecida - após divergências entre baixar ou subir o custo - em US$ 19,28/kW com valor fixado até 2026.Depois, deverá cair para representar apenas os custos de operação - algo entre US$ 10 e US$ 12.

Os recursos da usina desempenham papel importante no orçamento do país vizinho, e os paraguaios sempre reclamaram que o Brasil tinha exclusividade na compra via Itaipu e pagava pouco pelo excedente, sinalizando interesse em mais flexibilidade para negociar a energia. O acordo do ano passado prevê que o Paraguai contrate toda sua necessidade energética a partir de 2027 e possa vender o excedente no mercado livre brasileiro.

O chanceler do Paraguai, Rúben Ramírez Lezcano, cobra explicações do Brasil por espionagem da Abin Foto: Governo do Paraguai

Entenda o caso

A reportagem do UOL afirma ter tido acesso ao depoimento de um agente de inteligência que contou à Polícia Federal como montou servidores externos virtuais no Chile e no Panamá para promover ataques e extrair dados de autoridades paraguaias, ligadas ao Congresso e à Presidência.

O objetivo era subsidiar a decisão no Brasil sobre a negociações relativas à tarifa de energia da Itaipu Binacional e ao Anexo C do tratado, que passou por revisão após 50 anos para estabelecer as condições de uso da energia e a venda do excedente paraguaio ao País. Segundo o UOL, o agente disse ter obtido dados de cerca de cinco pessoas, como logins e senhas.

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Outro lado

Em nota divulgada nesta segunda-feira, dia 31, o Itamaraty reconheceu que a operação ocorreu e foi interrompida quando a direção da Abin nomeada por Lula tomou conhecimento do caso.

“A citada operação foi autorizada pelo governo anterior, em junho de 2022, e tornada sem efeito pelo diretor interino da Abin em 27 de março de 2023, tão logo a atual gestão tomou conhecimento do fato”, disse o Ministério das Relações Exteriores. “O atual diretor-geral da Abin encontrava-se, naquele momento, em processo de aprovação de seu nome no Senado Federal, e somente assumiu o cargo em 29 de maio de 2023.”

O Itamaraty também negou que o presidente Lula tenha dado aval à operação.

“O governo do presidente Lula desmente categoricamente qualquer envolvimento em ação de inteligência, noticiada hoje, contra o Paraguai, país membro do Mercosul com o qual o Brasil mantém relações históricas e uma estreita parceria”, disse o MRE. “O governo do presidente Lula reitera seu compromisso com o respeito e o diálogo transparente como elementos fundamentais nas relações diplomáticas com o Paraguai e com todos seus parceiros na região e no mundo.”

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O Estadão solicitou à Abin manifestação do diretor-geral, Luiz Fernando Corrêa, e do ex-diretor-adjunto Victor Felismino Carneiro, interino na chefia durante parte do período da operação (junho de 2022 e março de 2023). A reportagem será atualizada caso eles se pronunciem.