BRASÍLIA - O presidente do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), embaixador Luiz Augusto de Castro Neves, entende que o governo brasileiro acertou ao não ingressar na Nova Rota da Seda, o megaprojeto de infraestrutura chinês usado para expandir a presença e a influência econômica e política de Pequim no mundo.
Ao Estadão, Castro Neves disse que a parceria aprofundada entre os países durante a visita de Estado do presidente Xi Jinping a Brasília não vai levar a um alinhamento do País com a China. Para Castro Neves, o Brasil preservou sua tradição de não-alinhamento global.
“A parceria estratégica entre Brasil e China, que tem sido muito profícua e positiva, não implica de forma alguma nenhum tipo de realinhamento geopolítico, nem do Brasil, nem da China. Nós não vamos mudar de time, nem eles", afirmou o embaixador.
Leia também
Ex-embaixador do Brasil em Pequim (2004-2008), ele avalia que o governo deve ter uma visão de longo prazo e estratégica nas discussões com a China, a exemplo do que faz Pequim.
Castro Neves avalia que a Nova Rota da Seda - oficialmente Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative) não traria vantagens tangíveis à relação entre os países, tendo em conta as distintas pressões da atual rivalidade China-Estados Unidos, os dois maiores parceiros comerciais do País.
“Não se faz necessário a entrada formal do Brasil na Belt and Road Initiative. Que não é um tratado, não é uma organização, não é nada, é apenas uma declaração de intenções", afirmou Castro Neves. “A adesão não acrescenta nada que já não temos feito.“
Ele lembrou que os mecanismos de diálogo estabelecidos entre os países funcionam bem e devem prezar por “agilidade” nas consultas e decisões. Referia-se, sobretudo, à Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), coordenada pelos respectivos vice-presidentes.
“Às vezes essas capas institucionais mais atrapalham do que ajudam", ponderou o embaixador, lembrando que a parceria estratégica existe desde 1993. Agora, os países elevaram essa parceria a uma “comunidade de futuro compartilhado”.
Leia também
Ameaças
Antes da decisão do governo Lula, os Estados Unidos mandaram ao Brasil funcionários de alto escalão para alertar de “riscos” e apontar problemas da Rota da Seda, como endividamento e corrupção, sob protesto da embaixada chinesa em Brasília. Pequim reclamava da interferência nas relações soberanas com o Brasil. Mas o embaixador não vê a possibilidade de retaliações concretas.
“Nada do que estamos fazendo com a China os Estados Unidos já não fizeram ou estejam fazendo”, afirmou Castro Neves. “A relação dos EUA-China, ao contrário do que era na época da Guerra Fria a relação EUA-União Soviética, não é um jogo de soma zero. Antigamente, um ganho do Ocidente era uma perda do bloco socialista. E vice-versa. Agora EUA e China têm uma enorme e profícua relação econômico-comercial bilateral. O Elon Musk tem três fábricas na China. A Apple tem 98% da produção feita na China e tem ampla cooperação. É claro que a rivalidade é ampla também. O único risco nesse negócio é um acidente de percurso.”
Plano alternativo
Para escapar de desgastes diplomáticos, o Brasil saiu-se com um jogo de palavras e adotou uma saída do meio, alternativa, em busca do equilíbrio geopolítico entre as duas principais potências do planeta.
O governo Luiz Inácio Lula da Silva elaborou e lançou um “plano de cooperação” próprio com a China para se associar à Nova Rota da Seda, sem ter de assinar um adesão formal e plena. Ou seja, o país admite participar de obras típicas da iniciativa, como construção de portos, rodovias, pontes e ferrovias, mas não quis ficar carimbado como membro da rota chinesa.
Cada um dos 151 países que decide ingressar na iniciativa de Xi Jinping na prática assina um memorando de entendimentos com a China, numa relação direta país a país. O Brasil não fez isso.
A decisão frustrou a expectativa do presidente chinês, que costuma usar as adesões como demonstração de força. Os chineses sempre pressionaram pela entrada do Brasil, desde 2013.
120 Cavaleiros
Xi Jinping não consegiu seu principal objetivo, mas recebeu gestos de aproximação clara. Integrantes do governo Lula nunca esconderam a relação preferencial com a China e querem apoio de Pequim para ampliar investimentos, comércio e diversificar a pauta, passando do foco total no agronegócio para industrialização, tecnologia, iniciativas verdes e inteligência artificial.
O líder chinês foi recebido com tapete vermelho no Palácio da Alvorada, sob o olhar de 450 soldados da guarda de honra e escoltado por 120 cavaleiros dos Dragões da Independência. Levou para Pequim o apoio do Brasil a sua tentativa de reunificação com Taiwan, que levanta temores no mundo de uma nova guerra.
Xi voltou de Brasília sem o ingresso da principal potência da América Latina, área histórica de influência dos EUA, no projeto que é sua ponta de lança, posto em marcha há 11 anos e que já distribui mais de US$ 1 trilhão em investimentos. Além do capital chinês, um dos atrativos é o acesso a taxas de financiamento vantajosas nos bancos do país. Não houve uma rejeição por completo. É quase como se o País entrasse na Nova Rota da Seda sem dizer que entrou. Isso porque, com um jogo de palavras, os países concordaram em explorar as “sinergias” entre as estratégias de desenvolvimento prioritárias do Brasil e da China.
Do lado chinês, entrou na mesa apenas uma: a própria Nova Rota da Seda. Do lado brasileiro, são os quatro: Nova Indústria Brasil, Plano de Transformação Ecológica, novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e Programa Rotas da Integração Sul-Americana.
Esse plano de cooperação tem 10 anos de validade. Nos próximos dois meses, duas forças-tarefas vão cuidar de estabelecer as prioridades, nas áreas financeira e de desenvolvimento produtivo e sustentável.
O documento do plano registra a criação de duas forças-tarefas para estudar projetos prioritários durante dois meses. As áreas são: “cooperação financeira” e “infraestrutura, desenvolvimento de cadeias produtivas, transformação ecológica e tecnologia”.
Transparência
O acordo também mostra que o Brasil procurou contornar cláusulas de confidencialidade e amarrar algum tipo de transparência na relação. Além de registrar a necessidade de respeito às normas nacionais de cada país.
As megaobras da Nova Rota da Seda são frequentemente acusadas de opacidade e de causar impacto socio-ambiental. Nem todos os países da aliança possuem leis que garantam licenciamento ambiental, publicidade de contratos, licitação e direitos trabalhistas, por exemplo. É comum que as empresas chinesas envolvidas enviem seus próprios operários para realizar as construções, como ocorre na África.
“A confidencialidade de dados, informações e documentos trocados entre as partes e o acesso público a tais dados, informações e documentos ocorrerão nos termos e limites das respectivas legislações nacionais, observados os compromissos internacionais assumidos conjuntamente pelas duas artes aplicáveis ao tema", registra o documento.
“Os projetos a serem desenvolvidos serão definidos com base nos princípios de contribuições conjuntas e benefícios compartilhados, cooperação para transferência tecnológica e capacitação de recursos humanos, e se pautarão pelo respeito à lei, pela transparência, pela promoção da igualdade, inclusão social e sustentabilidade."
Defesa
Além da Rota da Seda, os dois países decidiram aumentar o intercâmbio em Defesa. “As partes reconheceram o potencial de cooperação existente nas áreas de defesa e da indústria de defesa, e reconhecem que deveriam intensificar contatos de alto nível e estudar novas iniciativas nessa área", diz o comunicado conjunto da visita de Estado de Xi Jinping.
Nos últimos anos, a China tem buscado mais presença na indústria de defesa e aproximou-se das empresas nacionais Imbel e, nos últimos meses, da Avibrás, com uma proposta de aquisição de 49% da compnhia estratégica, que fabrica o sistema de mísseis Astros do Exército Brasileiro e está em dificuldades financeiras. Também houve propostas de investidores da Arábia Saudita, de uma empresa da Austrália e de um investidor do próprio Brasil. O governo é contra a desnacionalização da companhia. Mas o caso ainda não foi decidido.
Além disso, o comandante do Exército Brasileiro, general Tomás Paiva, visitou a China neste ano em busca de contatos de alto nível com seu homólogo do Exército de Libertação Popular e o Ministério da Defesa chinês. Também foi à sede da Norinco. Oficiais passaram a ser convocados para intercâmbios no Brasil e participação efetiva em exercícios como a Operação Formosa, da Marinha. Há interesse em tecnologia, além da troca de conhecimentos acadêmicos entre os países.
Além de dividir o governo Lula, a ideia de adesão não encontrava uma posição comum no setor privado. O agronegócio nacional tem forte dependência das exportações à China. Outros segmentos temem uma concorrência desleal, mas há quem veja oportunidades de desenvolvimento tecnológico.
Recordes
Desde 2009, a China é o maior parceiro comercial do Brasil. Em 2023, a corrente de comércio atingiu recorde de US$ 157,5 bilhões, com exportações totalizando US$ 104,3 bilhões e superávit brasileiro de US$ 51,1 bilhões. equivalente a cerca de 52% do superávit comercial total brasileiro. Os dados são do governo federal.
Já os investimentos chineses no Brasil atingiram US$ 73,3 bilhões, entre 2007 e 2023. O setor de elétrico recebeu 45% do valor total, seguido por petróleo, com 30%, conforme estudo anual do Conselho Empresarial Brasil-China.
Nos últimos meses, o governo brasileiro se viu num impasse diplomático. Aderir ou não do megaprojeto de infraestrutura chinês. A estratégia chinesa espalha investimentos do país conectando Ásia, África, Europa, Oriente Médio e América Latina. A Nova Rota da Seda é, ao mesmo tempo, amplamente vista como uma plataforma para ampliar influência geopolítica, sobretudo junto a países do Sul Global, embora Pequim negue esse objetivo.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.