China e a Rússia tem uma declarada “parceria sem limites”, que está entre as grandes preocupações dos Estados Unidos e da União Europeia. Pequim e Moscou reforçaram os laços em oposição ao eixo ocidental liderado por Washington, que virou o adversário em comum com o mundo à beira de um nova Guerra Fria. Xi Jinping e Vladimir Putin foram aproximados pela circunstâncias, mas a extensão dessa aliança ainda é motivo de dúvidas. Isso porque eles têm objetivos e estratégias diferentes, como fica claro em solo africano.
A China se apresentou no continente como uma alternativa para o desenvolvimento econômico com o megaprojeto de infraestrutura Belt and Road, ou Cinturão e Rota, que acaba de completar dez anos. Um investimento massivo, que mudou a passagem dos países africanos a exemplo do que aconteceu em Angola, onde a principal rodovia da capital Luanda é sinalizada por placas escritas em português e mandarim.
A Rússia, por sua vez, avança em uma campanha de influência no vácuo deixado pelas potências ocidentais. Com desinformação e mercenários do grupo de Wagner, Moscou dá sustentação para as ditaduras que são cada vez mais comuns no continente, que foi palco de golpes em série nos últimos anos.
“A Rússia é o agente do caos na África”, aponta o chefe do programa que estuda Eurasia no Foreign Policy Research Institute Robert Hamilton em entrevista ao Estadão. “Em nome do combate ao terrorismo, apoia golpes e contribui para instabilidade, especialmente na região do Sahel. Tenho certeza que isso não agrada Pequim porque os interesses da China no continente são principalmente econômicos”, acrescenta.
E mesmo quando o assunto é economia, as diferenças também aparecem. A Rússia, por um lado, tem um viés mais extrativista, está interessada em ouro e minerais, frequentemente usados como pagamento nos acordos que envolvem o grupo Wagner. A China, por outro, é mais desenvolvimentista, o que requer estabilidade, e pode perder a paciência com o caos russo. “Pequim já tem exercido muita paciência até aqui”, alerta Hamilton.
Os números dão a dimensão dessa diferença de abordagem. Quando o assunto é economia, a China está consolidada como maior parceiro do continente: em 2022 (dados mais recentes para comparação), as importações e exportações ultrapassaram US$ 280 bilhões de dólares. A Rússia, por outro lado, celebrou trocas comerciais de cerca de US$ 18 bilhões como um aumento da parceria.
Agora, no que diz respeito à presença militar, a situação se inverte, embora Pequim tenha aumentado significativamente a venda de armas para os países africanos. Moscou assumiu nos últimos anos a liderança em transferência de equipamentos militares no continente e tem os seus paramilitares - principalmente os mercenários do grupo de Wagner - em operação em mais de 30 países. A China, por sua vez, tem empresas privadas de segurança em 15. E também há diferenças nesse aspecto. Enquanto os russos estão em combates diretos, inclusive respondendo a acusações de violar direitos humanos, os chineses estão mais preocupados em reforçar a segurança em áreas de interesse econômico.
“O ponto em comum é o foco em diminuir a influência ocidental, mas a Rússia está mais interessada nisso e está mais disposta a causar o caos e romper padrões para alcançar esse objetivo enquanto a China pode trabalhar com governos democráticos, sem tentar desestabilizá-los”, conclui.
Durante a pesquisa para o artigo “The Dragon and the Bear in Africa: Stress-Testing Chinese-Russian Relations” (ou o Dragão e o Urso na África: um teste de resistência para relações sino-russas em tradução livre), Hamilton ouviu de especialistas africanos que russos e chineses perguntam com frequência sobre as ações um do outro no continente, ou seja: “Pequim e Moscou não se comunicam muito, vão aos africanos e perguntam o que o outro está fazendo”, afirma.
“A relação entre Rússia e África no continente é mais de coexistência”, concorda Landry Signe pesquisador sênior da Iniciativa de Crescimento Africano do Brookings Institution em entrevista ao Estadão. “A colaboração não é impossível, mas quando a China tem um projeto para outros continentes, tenta controlar todo processo, do início ao fim. Isso não impede eventuais parcerias, mas se Pequim puder fazer tudo por conta própria ou se o parceiro não tiver um valor único para agregar, eles não vão (fechar uma parceria)”, conclui.
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A parceria ‘sem limites’ - e suas limitações
As diferenças estratégicas contrastam com a alegada parceria “sem limites”, anunciada por Xi Jinping e Vladimir Putin em 4 de fevereiro de 2022, exatos 20 dias antes de a Rússia invadir a Ucrânia. O conflito reforçou esse laço, mas criou um problema político para a China. O país que tem a soberania nacional como princípio basilar se viu obrigado a apoiar, ainda que apenas na retórica, o aliado que invadiu a outro Estado.
Além que ecoar as justificativas de Vladimir Putin para a guerra, Pequim ajudou Moscou a contornar as sanções impostas por Estados Unidos e seus aliados europeus. O que alterou a relação de poder entre as potências do eixo anti-Ocidental.
“A guerra acelerou um processo na relação sino-russa que estava em andamento há uma década, que é a subordinação da Rússia à China nessa parceria. A Rússia é claramente o parceiro júnior”, afirma Robert Hamilton. E se a África revela as diferenças estratégias, a Ásia Central, argumenta o pesquisador, expõe as trajetórias de poder.
No ano passado, enquanto os líderes do G-7 se reuniam em Hiroshima, no Japão, Xi Jinping recebeu os líderes das ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central em uma cúpula paralela - e inédita. Os representantes do Casaquistão, Usbequistão, Tajiquistão, Turcomenistão e Quirguistão saíram do chamado C+C5 com um pacote de US$ 3,8 bilhões (R$ 18 bilhões) em acordos comerciais e investimentos. Além da promessa de assistência em segurança e defesa, que tradicionalmente vinha da Rússia.
Em mais um sinal do avanço na região historicamente ligada a Moscou, Pequim elevou o status da relação diplomática com o Usbequistão na semana passada. Na ocasião, Xi Jiping pediu que a construção da ferrovia China-Quirguistão-Uzbequistão comece o mais rápido possível. A obra deve abrir uma rota comercial alternativa à Rússia driblando as sanções e aumentando a influência chinesa na Ásia Central.
Para entender
“O poder a autoridade da Rússia estão colapsando de muitas maneiras na Ásia Central enquanto a China está em ascensão. Será mais uma questão que os dois terão que lidar em seu relacionamento: as trajetórias de poder diferentes. É difícil para duas potências, mesmo que sejam amigáveis, gerenciar seu relacionamento quando uma está em declínio e a outra está em ascensão”, avalia Hamilton.
E não é só na Ásia Central. A economia chinesa já é dez vezes maior que a russa e essa distância tende a aumentar, apontam as projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI).
“Essa assimetria tem gerado ressentimento na Rússia, que costumava se considerar uma superpotência”, observou o pesquisador Philipp Ivanov no artigo “Together and Apart: The Conundrum of the China-Russia Partnership” (ou Juntos e separados: o enigma da parceria sino-russa) publicado na Asia Society. “A crescente dependência da Rússia em relação à China, o contínuo declínio da economia e da reputação global da Rússia como resultado da guerra na Ucrânia, e a exploração implacável das fraquezas russas pela China podem provocar uma reação negativa que nem Xi nem Putin podem ser capazes de conter”, conclui.
A percepção entre analistas é que os presidentes mantém uma relação próxima e, politicamente, têm semelhanças além dos inimigos em comum. Ambos são líderes nacionalistas e personalistas que, de certa maneira, veem seus países como potências injustiçadas na ordem global liderada pelos Estados Unidos.
As lições de Kissinger
Entretanto, o veterano da diplomacia Henry Kissinger notou antes de morrer que essa não é uma aliança natural: “eu nunca conheci nenhum líder russo que fale bem da China. E nunca conheci nenhum líder chinês que fale bem da Rússia”. Kissinger, que estava prestes a completar 100 anos, quando deu essa declaração à The Economist sabia do que estava falando. Ele foi o arquiteto da estratégia que aproximou os EUA da China para isolar a antiga União Soviética durante a Guerra Fria.
Apenas três anos antes da visita histórica do então presidente americano Richard Nixo à China, em 1972, a fronteira sino-soviética havia sido palco de uma guerra pela pequena ilha no Ussuri. Mais recentemente, o conflito voltou à tona no fim do ano passado quando um mapa divulgado por Pequim pareceu “tomar” para si o lado russo do território que já foi motivo de disputa.
O episódio foi lembrado Philipp Ivanov ao notar que as diferenças estratégicas tem raízes históricas. “Limitadas pelo seu desejo de autonomia estratégica, pela crescente assimetria de poder e pela concorrência em esferas de interesses sobrepostas, a China e a Rússia podem ter atingido o auge da sua parceria”, conclui, mas que os benefícios da parceria ainda superem os riscos para Pequim e Moscou, pelo menos neste momento.
Na mesma linha, Robert Hamilton acredita que a chamada “parceria sem limites”, na verdade, não é “tão profunda, tão estratégica e nem tão resiliente” como Moscou e Pequim tentam fazer parecer.
Do outro lado, para Washington, entender a parceria entre China e Rússia está entre as grandes preocupação da política externa. Uma parceira, de fato, sem limites seria um desafio para os Estados Unidos e seus interesses nacionais. Isso em um contexto no qual as lições de Henry Kissinger talvez não se apliquem mais. Se no início dos anos 70, Pequim e Moscou estavam saindo de uma guerra, agora estão unidos na disputa com o Ocidente, ainda que tenham suas diferenças.
“Os americanos costumam dizer que é preciso separar a Rússia e a China, mas isso me parece uma abordagem errada”, afirma Hamilton. “Assim que inserimos os EUA, ou o Ocidente de modo geral na equação. Não os separamos. Nós os aproximamos”, conclui.
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