PUBLICIDADE

Será o fim da paz através do comércio? Leia a coluna de Paul Krugman

Pedra angular da política ocidental após a 2ª Guerra, a paz pelo comércio é uma doutrina que tem perdido muita força ultimamente, por vários motivos

PUBLICIDADE

Por Paul Krugman (The New York Times)

No início do século 20, o autor britânico Norman Angell publicou um livro famoso intitulado “A Grande Ilusão”, que declarava que o progresso econômico e o crescente comércio mundial haviam tornado a guerra obsoleta.

PUBLICIDADE

As nações, argumentou ele, não podiam mais enriquecer por meio da conquista: os trabalhadores industriais não podiam ser explorados como os camponeses, e mesmo as pequenas nações podiam prosperar importando matérias-primas e vendendo seus produtos nos mercados mundiais. Além disso, a guerra entre nações economicamente interdependentes seria imensamente custosa até mesmo para os vencedores.

Angell não estava prevendo o fim imediato da guerra, o que era bom para sua credibilidade, já que a carnificina da 1ª Guerra estava chegando. Ele esperava, no entanto, persuadir os políticos a abandonar seus sonhos de glória militar. E uma implicação de sua lógica era que laços econômicos mais estreitos entre as nações poderiam promover a paz.

Vista de contêineres empilhados no porto de Vostochny, na baía de Nakhodka, na Rússia, em 4 de dezembro de 2022 Foto: Tatiana Meel/Reuters

De fato, a ideia de paz por meio do comércio se tornaria a pedra angular da política ocidental após a 2ª Guerra.

Em minha coluna mais recente, falei sobre o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, que rege o comércio mundial desde 1948. Esse sistema comercial deve sua origem em grande parte a Cordell Hull, secretário de Estado de Franklin Roosevelt, que via o comércio mundial como um força para a paz, bem como para a prosperidade.

O caminho para a União Europeia começou com a criação da Comunidade do Carvão e do Aço. Um de seus objetivos era criar tanta interdependência entre a França e a Alemanha que uma futura guerra europeia seria impossível.

Mas agora, os Estados Unidos, que em grande parte criaram o sistema de comércio mundial, estão impondo novas restrições ao comércio em nome da segurança nacional e afirmando sem rodeios que têm o direito de fazê-lo sempre que quiserem.

Publicidade

A guerra da Rússia na Ucrânia afetou a economia mundial, especialmente no comércio de grãos  Foto: Murad Seze/Reuters

Quando o governo Trump fez isso, podíamos considerar uma aberração: Donald Trump e aqueles ao seu redor eram mercantilistas grosseiros sem noção das razões históricas por trás das regras comerciais existentes. Mas você não pode dizer isso sobre os funcionários de Biden, que entendem tanto de economia quanto de história.

Então este é o fim da paz através do comércio? Não exatamente — mas é uma doutrina que tem perdido muita força ultimamente, por vários motivos.

Primeiro, a ideia de que o comércio promove a paz pode ser verdadeira apenas para as democracias. Os Estados Unidos invadiram o México em 1916 em uma tentativa malsucedida de capturar Pancho Villa; tal coisa seria difícil de conceber hoje em dia, com as fábricas mexicanas como partes integrantes do sistema de manufatura americano. Mas estamos igualmente certos de que a integração igualmente profunda de Taiwan no sistema de manufatura da China exclui qualquer possibilidade de invasão?

E, infelizmente, o autoritarismo vem crescendo em muitos países ao redor do mundo há um bom tempo. Isso ocorre em parte porque algumas democracias frágeis entraram em colapso, em parte porque algumas autocracias – especialmente a China – se abriram economicamente, embora não politicamente, e em parte porque algumas dessas autocracias (de novo, especialmente a China) experimentaram um rápido crescimento econômico.

PUBLICIDADE

E quanto à ideia de que a crescente integração com a economia mundial seria em si uma força para a democratização? Essa ideia foi um pilar fundamental da diplomacia econômica em algumas nações ocidentais, notadamente a Alemanha, que apostou fortemente na doutrina de Wandel durch Handel — a transformação por meio do comércio.

Mas mesmo uma olhada na Rússia de Vladimir Putin ou na China de Xi Jinping mostra que essa doutrina falhou: a China começou a se abrir para o comércio internacional há mais de 40 anos, a Rússia há 30 anos, mas nenhum dos dois mostra sinais de se tornar uma democracia ou mesmo uma nação com forte estado de direito.

Na verdade, a interdependência internacional pode ter tornado mais provável a guerra em curso na Ucrânia. Obviamente, não é bobagem sugerir que Putin esperava que a Europa aceitasse a conquista de Kiev por causa de sua dependência do gás natural russo.

Publicidade

Não é bobagem sugerir que Putin esperava que a Europa aceitasse a conquista de Kiev por causa de sua dependência do gás natural russo Foto: INA FASSBENDER/AFP

Mais uma vez, não estou sugerindo que a ideia de paz por meio do comércio esteja completamente errada. A guerra no coração da Europa tornou-se difícil de imaginar graças à integração econômica (embora não na periferia europeia); guerras para garantir o acesso a matérias-primas parecem muito menos prováveis do que antes. Mas o sonho de uma “paz comercial” definitivamente perdeu muito de sua força.

Isso importa muito. Vivemos em um mundo de mercados muito abertos, mas isso não precisava acontecer e não precisa persistir. Não chegamos aqui por causa de uma lógica econômica inexorável: a globalização pode e tem recuado por longos períodos quando perde apoio político.

Tampouco chegamos aqui porque os economistas persuadiram os políticos de que o livre comércio é bom. Em vez disso, a atual ordem mundial reflete em grande parte considerações estratégicas: os líderes, especialmente nos Estados Unidos, acreditavam que um comércio mais ou menos livre tornaria o mundo mais receptivo aos nossos valores políticos e mais seguro para nós como nação.

Mas, agora, mesmo formuladores de políticas internacionalistas, como funcionários do governo Biden, não têm certeza disso. E esta é uma mudança muito grande.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.