Com a guerra já superando a marca dos dois meses, os países ocidentais vêm aumentando a quantidade e a capacidade de envio de armas para a Ucrânia. Se no começo Estados Unidos e Europa relutaram em enviar armamentos pesados, agora as nações estão mais dispostas a oferecer ajuda robusta, apesar das ameaças da Rússia. O sucesso ucraniano em conter o avanço das tropas russas, juntamente com a opinião pública, surgem como principais motivações para a mudança de atitude recente.
Marcando uma mudança de postura desde o início da guerra, mais de 40 países se reuniram na Alemanha na terça-feira, dia 26, para discutir o envio de mais armas para a Ucrânia. Um dia depois, os EUA apresentaram um pacote de US$ 33 bilhões (R$165 bilhões) em ajuda adicional. Na última terça-feira, 3, o premiê britânico, Boris Johnson, foi o primeiro líder a discursar no parlamento ucraniano, onde prometeu aumentar a ajuda militar ao país para mais de US$ 600 milhões (R$ 3 bilhões).
As nações ocidentais agora falam sobre a possibilidade de enviar tanques e caças ao menos para países vizinhos à Ucrânia, além de já terem enviado obuses e morteiros aos ucranianos, armas mais complexas e de maior poder de destruição.
“Há um crescente apoio político e público ao armamento da Ucrânia, em parte impulsionado por um desejo genuíno de combater a agressão russa, mas também sustentado por uma campanha de solidariedade global muito eficaz liderada pelo próprio presidente ucraniano Zelenski, que por sua vez é reforçada pelo fato de que a resistência à agressão russa desafiou as expectativas e testou o poder dos militares russos”, afirma Cesar Jaramillo, diretor executivo do instituto canadense Project Ploughshares, que trabalha com prevenção a guerra e violência armada.
Os reveses russos, como a perda de um importante navio de guerra e o afastamento de Kiev, servem de combustível tanto para que líderes se sintam confortáveis para enviar armas pesadas, quanto para que a população e a indústria bélica das nações façam pressão por mais envios.
“Com o avanço do tempo é possível que a inteligência ocidental tenha entendido que a Rússia está perdendo fôlego e não é capaz de fazer guerra em mais frentes além de Donbas”, afirma Mariana Kalil, professora da Escola Superior de Guerra. “Talvez isso faça com que o Ocidente e até as ex-repúblicas soviéticas, enviem armas mais letais para a Ucrânia.”
Início tímido
Os envios de ajuda militar à Ucrânia começaram logo após o início da concentração de tropas russas na fronteira, mas os países se limitaram a equipamentos não-letais, como capacetes, coletes à prova de balas, treinamento militar e ajuda financeira para hospitais. Conforme a situação escalava, países como Reino Unido, EUA, Polônia, Lituânia, Canadá, Estônia, Holanda, Eslovênia e Letônia anunciaram o envio dos primeiros sistemas antimísseis, fuzis, munições e armamentos de curto alcance.
Após a invasão em 24 de fevereiro, os EUA anunciaram o alcance do primeiro bilhão de dólares em ajuda militar para a Ucrânia, juntamente com mais equipamentos de proteção, mísseis antiaéreos Stinger e antitanques Javelin. Ao mesmo tempo, a Alemanha rompeu com uma política que mantinha desde a Segunda Guerra Mundial ao aprovar o envio de armas letais e permitir que parceiros fizessem o mesmo.
Embora os primeiros dias da guerra tenham sido de anúncios consecutivos de ajuda militar, os envios se mantinham em equipamentos de proteção e armas consideradas leves, como os mísseis antiaéreo e antitanque, que viraram o símbolo da resistência ucraniana. Muito longe ainda dos armamentos pesados, como tanques e caças tão desejados pelo presidente ucraniano, Volodmir Zelenski.
Mas nos últimos dias, os países decidiram romper com essa resistência. EUA e Estônia já anunciaram o envio de obuses, República Checa e Polônia já enviaram morteiros, Alemanha anunciou o envio “imediato” dos tecnológicos tanques Gepard Flakpanzer e está sendo discutida a logística de enviar caças.
Há algumas semanas, o Pentágono sugeriu que a Ucrânia já teria recebido caças de parceiros. Enquanto isso, países como França e Holanda, além da União Europeia, não fornecem informações sobre o tipo de armamento já enviado, a fim de evitar que a Rússia veja como ato de agressão.
Guerra longa
“Quando o conflito começou, a Otan tinha um tipo de compromisso suave”, explica Jordan Cohen, analista de política em defesa e política externa do think tank americano Cato Institute. “Os países enviaram armas e elas estavam funcionando. Os mísseis Stinger e Javelin conseguiram impedir a Rússia de conquistar territórios apesar de sua superioridade aérea”.
Mas, segundo ele, nenhum desses países esperava que a guerra fosse durar tanto tempo, nem que a Ucrânia seria tão bem sucedida em conter o avanço russo. “E então o tempo passa e eventualmente você está no meio dessa armadilha na qual você já enviou armas e você não quer fazer disso um desperdício. Então você vai continuar enviando mais e mais até atingir seu objetivo.”
Este objetivo, segundo analistas, é conter as investidas russas agora e no futuro. “O envio de armamento está ligado a duas questões: a contenção e a dissuasão”, explica Mariana Kalil. “Estão tentando conter a Rússia na região do leste e do sul, e ao mesmo tempo dissuadir a Rússia de eventualmente buscar mais territórios, não só na Ucrânia como no entorno regional.”
Kalil ressalta que há uma questão logística para que os países ocidentais relutassem em enviar armamento pesado: os ucranianos não saberiam utilizar. Por definição, armas pesadas são aquelas que exigem mais de um soldado para manusear, são de baixa mobilidade, estão associadas a sistemas de armas e têm alto poder de destruição.
Os ucranianos possuem experiência com esse tipo de armamento de origem soviética, mas não os ocidentais. Por isso que os primeiros envios de armas letais foram majoritariamente de mísseis Stinger e Javelin, além de armas de munição, porque “são muito fáceis de aprender a utilizar”, segundo Cohen.
Já com armamento pesado, faria mais sentido que países vizinhos, ex-membros do Pacto de Varsóvia, fizessem o envio para que a Ucrânia pudesse utilizar imediatamente. Não à toa, a República Checa foi uma das primeiras nações a anunciar o envio de “armas não leves”.
Com base nesta mesma lógica, a Polônia ofereceu enviar seus jatos MiG-29, de fabricação russa e que os pilotos ucranianos têm familiaridade, em troca de receber dos Estados Unidos os seus caças F-16. Mas os EUA rejeitaram a proposta.
A Eslováquia fez uma oferta semelhante com seu sistema de defesa antiaéreo S-300, capaz de abater mísseis balísticos e de cruzeiro, em troca do sistema de defesa aérea Patriot da Alemanha. A proposta foi aceita e o primeiro sistema chegou à Ucrânia em 8 de abril. Os equipamentos de defesa aérea eram um pedido constante por parte do governo ucraniano.
O peso da opinião pública
E conforme a guerra se alonga, é mais provável que o Ocidente envie suas próprias armas pesadas. “Se a guerra se alongar, e eu acho que vai no Donbas e no sul, é possível que o ocidente veja que há tempo para treinar esses militares ucraniano e então enviar os seus próprios caças”, pontua Mariana Kalil.
A última rodada de envio de ajuda militar ocorreu logo após a Rússia anunciar uma mudança em sua estratégia de guerra e concentrar sua ofensiva no leste e no sul. Além disso, as imagens de centenas de corpos deixados para trás após a retirada das tropas russas dos arredores de Kiev e maternidades bombardeadas no sul alimentam a exigência interna por ações para ajudar os ucranianos.
“Existe durante a guerra o efeito da mídia”, afirma Kalil. “A imprensa começa a enfatizar os escândalos humanitários e isso tende a levar a opinião pública a apoiar intervenções militares. Como sabemos que não haverá intervenção militar por parte do ocidente, então a opinião pública passa a apoiar o envio de armas”.
“Muita violência desencadeia ódio”, concorda Jordan Cohen, “e eu acho que é isso que está acontecendo. As pessoas estão vendo essas imagens horríveis, então elas criticam Putin, mas também fazem com que os líderes se sintam pressionados a continuar lutando”.
À indignação internacional ainda se soma com a campanha midiática do presidente ucraniano por mais resposta ocidental. “Zelenski apelou diretamente aos parlamentares e chefes de estado dos principais membros da Otan, e sua mensagem ressoou na opinião pública ocidental”, afiima Jaramillo.
O que acontece com essas armas depois?
A grande questão, para Jordan Cohen agora, é o que acontecerá com esse armamento enviado no médio e longo prazo. Uma vez feita a entrega, os países não são mais capazes de controlar o destino desses equipamentos. Especialmente na Ucrânia, onde Zelenski pediu para que todos peguem em armas, e onde há relatos de voluntários e mercenários combatendo.
“Agora as coisas talvez estejam controladas porque todo mundo não gosta da Rússia, mas daqui a dois ou três anos, se a guerra ainda estiver acontecendo, o que acontece se certos ucranianos quiserem o fim da guerra e outros não? Você tem uma guerra civil”, aponta Cohen.
Experiências passadas dão pistas de quão incontrolável é rastrear o envio de armas. Armamentos ocidentais já alimentaram o arsenal do autointitulado Estado Islâmico na Síria e no Iraque. Mais recentemente, um relatório do Pentágono revelado pela CNN americana mostrou que aproximadamente US$ 7 bilhões em equipamentos militares que os EUA transferiram para o governo do Afeganistão caiu nas mãos do Taleban.
“Vários dos países que atualmente fornecem armas para a Ucrânia são partes do Tratado Internacional de Comércio de Armas, que os obriga a realizar uma avaliação de risco antes de autorizar a transferência de armas para considerar, entre outros, o risco de violações de direitos humanos ou desvio para usuários não intencionais”, explica Jaramillo, acrescentando que a simpatia pela Ucrânia não os isenta deste rigor.
De qualquer forma, esses envios deixarão mudanças profundas na indústria bélica ucraniana, aponta Mariana Kalil. Nesse sentido, a Rússia sai perdendo e a Ucrânia obtém um arsenal militar ocidental sem nem fazer parte oficialmente da Otan. “A gente tende a ver uma mudança na base industrial de defesa ucraniana que era majoritariamente russa e passa a ser grande parte ocidental. Isso vai gerar uma ligação forte entre a Ucrânia e o ocidente militarmente falando. E era isso que o Putin não queria”.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.