ENVIADO ESPECIAL A SAN SALVADOR – Maria Lidia fala sobre o filho caçula, Emmanuel, até ser interrompida pelo choro. Um dia, em abril de 2022, ele saiu de casa para jogar futebol, acabou preso e desapareceu. E Maria, uma salvadorenha de 50 anos, evangélica, babá e moradora da colônia pobre de Zacamil, há dois anos perde o sono à procura de uma resposta para dar a sua neta sobre o paradeiro do pai.
Emmanuel foi preso cerca de dez dias depois do presidente Nayib Bukele instituir um regime de exceção em El Salvador para combater as pandillas – os grupos criminosos que se instituíram no país na década de 90 a partir da extorsão e controle de territórios, semelhante às milícias brasileiras. As cifras oficiais indicam que durante esse período, que completou dois anos em março, 80 mil pessoas foram presas sob a acusação de serem pandilleros sem a necessidade do governo apresentar nenhuma prova. Em um país de 6,3 milhões de habitantes, dos quais 35 mil já estavam presos, significa 1,8% da população encarcerada.
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Desde então, o cotidiano salvadorenho mudou de forma radical, sobretudo nas colônias mais pobres. Nessas áreas, as maras – outro nome dado aos grupos criminosos – cobravam dinheiro de moradores e comerciantes e ameaçavam de morte quem se recusasse a pagar e quem era de fora não podia entrar sem autorização. Homicídios também eram frequentes e se intensificavam quando grupos rivais entravam em disputa por controle territorial. Em 2015, ano em que a Mara Salvatrucha e a Barrio 18, as pandillas dominantes no país, estavam em guerra, a taxa de homicídios de El Salvador foi a mais alta do mundo, com 106 mortes por 100 mil habitantes. O regime de exceção desarmou esse poder, as colônias estão cheias de militares e pode-se entrar e sair livremente, mas em troca as famílias passaram a conviver com a prisão de parentes que alegam inocência.
O governo reconhece a prisão de inocentes. O ministro da Justiça e Segurança de Bukele, Gustavo Villatoro, a considera um custo para garantir a segurança do país. Em agosto do ano passado, cerca de sete mil presos durante o regime foram colocados em liberdade por falta de provas. Organizações em defesa dos direitos humanos e muitas famílias, no entanto, alegam que muitos seguem detidos há meses ou anos sem que haja processo legal que justifique suas prisões. Relatos de tortura também são frequentes e, segundo a organização Socorro Jurídico, 241 pessoas morreram nas cadeias nos dois anos do regime.
Em alguns casos, como o de Emmanuel, os familiares sequer sabem em que prisão se encontram. Desde que ele foi detido, Maria Lidia procura a polícia para saber onde e por que foi preso. Descobriu que é acusado de “associação com organização ilícita”, mas nada que o incrimine foi apresentado a ela. De origem pobre, Maria não tem dinheiro para pagar advogado e depende de defensores públicos, insuficientes no país para atender tantos encarcerados de uma só vez. “Dois anos são mais do que suficientes para investigar o meu filho, mas ninguém diz nada, ninguém sabe onde ele está”, disse na tarde do dia 9 de maio, véspera do Dia das Mães em El Salvador.
Emmanuel tinha 23 anos quando foi preso, o mais novo dos quatro filhos de Maria. Naquele dia, chegou do trabalho como lavador de carros e saiu para jogar futebol com os amigos em um campo da colônia Zacamil, onde a família mora. Deixou a esposa e a filha de quatro anos em casa. Pouco depois, uma viatura militar chegou na residência, informou a esposa que Emmanuel seria preso e perguntou onde ele estava. A esposa correu até a casa de Maria, também em Zacamil, para avisá-la da prisão.
Quando chegaram ao campo de futebol, os militares já haviam o levado. “E eu só consegui descobrir que ele era acusado de ser marero 15 dias depois que ele foi preso.”
Na busca do filho, conheceu o Movimento de Vítimas do Regime (Movir), que reúne parentes de desaparecidos nas prisões de El Salvador. A organização têm cerca de 3,1 mil participantes, a maior parte mulheres. Já o perfil dos presos são de homens jovens, moradores de zonas pobres e trabalhadores informais. Aquelas que conseguiram descobrir o que levaram o governo a incriminá-los oferecem detalhes adicionais: possuem tatuagens – os pandilleros costumam ter muitas tatuagens com alusões ao grupo que pertencem, mas há milhares de relatos de pessoas com tatuagens comuns presas –, foram delatados em denúncias anônimas feitas por pessoas com quem tinham desavenças pessoais ou possuíam antecedentes na justiça.
Mesmo os salvadorenhos que não conhecem pessoas próximas detidas sabem que detalhes como esses são suficientes para acabar em prisão. Apesar disso, o regime de exceção de Bukele é aceito pela maioria do país e o presidente tem condição de popstar, tamanha popularidade. “Ele transformou a segurança do país em um momento que a gente achava impossível”, disse o motorista de uber Carlos Daniel, em uma mostra da razão que levou Bukele a ser reeleito em fevereiro com 82% dos votos. Carlos foi um dos eleitores. “Mas não é meu melhor amigo. Tenho um filho que sai todos os dias de casa para ir a faculdade. Moramos em uma colônia pobre e ele tem uma tatuagem. Tenho medo de um dia os policiais o pararem e levarem ele preso por causa disso”, ressalvou em seguida.
Guerra civil, pandillas e militarização: o trauma da violência em El Salvador
A salvadorenha Lilian del Carmen, de 62 anos, é mãe de três filhos. O mais velho precisou sair da colônia em que morava quatro anos atrás porque se recusou a pagar a um marero que queria extorqui-lo e o ameaçou de morte. O mais novo, Roberto, de 28 anos, foi preso durante o regime de exceção acusado de ser um mara e, como Emmanuel, desapareceu no labiríntico sistema carcerário em abril de 2022. Lilian também não sabe quais provas incriminam o filho e desconfia que ele foi preso pela denúncia de um policial vizinho que tinha antipatia por ele.
Desde a instituição do regime, a delação é uma das práticas mais utilizadas para justificar a prisão de alguém. O governo criou um canal telefônico, através do número 123, para permitir chamadas anônimas e incentiva os moradores a “colaborarem no combate aos terroristas”. Trata-se de um procedimento antigo: na guerra civil do país (1979-1992), as chamadas anônimas existiam para os cidadãos denunciarem colaboradores da guerrilha. Em muitos casos, no entanto, eram utilizadas para vinganças pessoais, e o denunciado não tinha relação com guerrilheiros.
O mesmo acontece hoje, segundo documentam a Anistia Internacional e Human Rights Watch. Em San Salvador, os civis também relatam a prática.
O deslocamento forçado por ameaça de um criminoso, o desaparecimento na cadeia e a possível delação por vingança pessoal contra os filhos fazem de Lilian uma vítima de diferentes camadas da violência – fenômeno que em El Salvador, assim como em toda a América Latina, atravessa gerações e os diferentes atores sociais. “Temos que entender que os salvadorenhos são um povo traumatizado pela violência, seja do controle das gangues, do conflito armado ou da ditadura antes do conflito”, disse a pesquisadora salvadorenha Irene Cuellar, responsável da Anistia Internacional para o país.
O trauma ajuda a compreender o presente. Há 30 anos, a violência estatal e a suspeição entre salvadorenhos existia; após a guerra civil, nasceram as pandillas depois de uma onda de deportação dos EUA de criminosos migrantes; nos anos 2000, diferentes governos tentaram desmantelar os pandilleros e também utilizaram políticas de mano dura, embora num grau menor. Injustiças no sistema judicial também foram observadas nesses períodos. “Infelizmente, é uma sociedade habituada ao fato de o conceito de justiça ser algo muito etéreo e de pouca possibilidade”, acrescentou Cuellar.
Por isso, qualquer crítica a um regime que livrou os salvadorenhos do controle das maras é vista como uma ofensa por quem o defende, ainda que haja injustiças. “Mas há que quebrar o silêncio”, disse Lilian no início da entrevista e por um instante se calou, com os olhos mirando o chão. “Não defendo os mareros, quero que as pessoas entendam isso. E também não defendo o regime, porque se o regime fosse bom não estaria prendendo inocentes”, prosseguiu, com o olhar firme de volta.
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La Tregua y El regime: os acordos com as pandillas e a ambiguidade de Bukele
Nos anos 2010, outro fato político também têm relevância na cronologia da violência salvadorenha. O país era governado pela Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), partido no qual Bukele começou na política e que firmou um acordo entre a Mara Salvatrucha e a Barrio 18 para cessar os conflitos territoriais em troca de transferências de líderes criminosos de prisões de segurança máxima para cadeias comuns, onde recuperaram o controle e a comunicação com os membros em liberdade. O acordo ficou conhecido como La Tregua e fez a taxa de homicídios do país despencar de 70,7 em 2011 para 41,8 em 2012.
La Tregua durou até 2015. Durante os três anos em vigor, Nayib Bukele era um político iniciante, prefeito da pequena cidade de Nuevo Cuscatlán e, a partir de 2015, da capital San Salvador. Nesse ano, replicou a tática de seus líderes efemelenistas e fez acordos pela primeira vez com as maras para entrar em algumas áreas da cidade, conforme revelou a agência jornalística El Faro com base em áudios, atas e documentos judiciais. Ao se tornar presidente em 2019 com a promessa de reduzir a violência, já expulso do FMLN e então no partido de direita Gana, fez o mesmo.
As evidências do acordo do governo Bukele foram apresentados no final de 2023 pela promotoria dos Estados Unidos, no processo contra 13 líderes da Mara Salvatrucha. O acordo vigorou entre 2019 a 2021, período em que os homicídios no país caíram pela metade em troca da garantia da não-extradição dos líderes para os EUA, e foram quebrados em 2022 por razões ainda desconhecidas. A quebra irrompeu os assassinatos e em um só dia El Salvador teve 62 mortes.
No dia seguinte, 27 de março, o presidente decretou o regime de exceção e adotou o discurso de guerra aos pandilleros, sem nunca ter reconhecido a relação que tinha estabelecido com estes.
Esse fato e o período de exceção expõem a ambiguidade de Bukele e de El Salvador. A taxa de homicídio continuou em queda durante o regime e chegou ao mínimo histórico em 2023, mas as estatísticas não são verificáveis porque o governo impôs sigilo de informações a qualquer informação pública. Ademais, não se sabe se a queda resulta por completo da militarização e do encarceramento em massa, como propaga o governo, ou se existem outros fatores desconhecidos.
As ambiguidades prosseguem: milhares de pessoas estão presas, mas dentre eles não estão os principais líderes da Mara Salvatrucha e a Barrio 18. O governo afirma que não há mais pandilleros nas ruas, mas o regime de exceção é renovado a cada 30 dias em nome da guerra contra os criminosos.
E não se sabe, dentre outras circunstâncias, se as mortes ocorridas nas prisões, registradas em muitos casos como paradas cardiorrespiratórias, entram nas estatísticas oficiais. Não se sabe se, entre as mortes, estão os filhos desaparecidos Maria Lidia e Lilian del Carmen. “E por isso eu não paro de falar, não paro de pensar em meu filho. Porque eu não sei se ele está vivo, mas não consigo pensar que está morto”, declarou Maria Lidia, enquanto a fala saia apressada, atropelada pelas palavras, sem deixar espaço para o silêncio. “Porque quando eu me calo, sinto uma depressão.”
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