Na Argentina da inflação galopante, pobreza e fome disparam e devem piorar até eleição

Mais de 40% da população se encontra abaixo da linha da pobreza, sendo que entre as crianças esta taxa salta para mais de 56%, segundo dados oficiais

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Foto do author Carolina Marins

A disparada da inflação e a crise econômica que vive a Argentina nos últimos anos jogou 40,1% dos argentinos na pobreza, segundo dados divulgados nesta quarta-feira, 27, pela agência governamental de estatísticas, Indec. Desses, cerca de 9,3% passam fome. Os números representam um aumento frente aos 39,2% do segundo semestre de 2022 e 36,5% do primeiro semestre do mesmo ano, consolidando uma tendência de alta. Esses dados, porém, ainda não refletem os impactos da grande desvalorização do peso promovida pelo governo em agosto logo após o resultado das primárias eleitorais.

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Ao todo, cerca de 11,8 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza e mais de 2 milhões não conseguem ter o mínimo da cesta básica para sobreviver, em uma população de mais de 29 milhões. A média de renda das famílias foi de 124.071 pesos argentinos (R$ 1.789 no câmbio oficial, mas cerca de R$ 800 no paralelo, mais utilizado), enquanto o valor da cesta básica foi em média 199.593 pesos (R$ 2.878 no oficial, mais de R$ 1.300 no paralelo).

A pobreza cresce apesar da queda no desemprego, que está abaixo de 7% este ano, sinalizando que a causa reside na corrosão do poder de compra dos argentinos, cujos salários não acompanham os aumentos dos preços. O reflexo se vê na tradicional Plaza de Mayo, ponto turístico e de protestos, onde cada vez mais barracas surgem de pessoas buscando abrigo e comida.

Casal dorme nas ruas de Buenos Aires em 27 de setembro de 2023, dia que o Indec publicou os novos dados de pobreza Foto: Luis Robayo/AFP

Lionel Pais, 37 anos, contou à agência Associated Press que precisou se mudar para um abrigo em Buenos Aires há três semanas, logo depois de o governo ter desvalorizado o peso argentino em quase 20%, provocando outro aumento descontrolado nos preços. “Esses aumentos repentinos que ocorreram, a situação econômica do país, não me permitem cobrir minhas despesas básicas”, afirma.

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Sebastián Boned, 26 anos, ligou para a linha direta de assistência para pessoas em situação de rua quando seu salário como recepcionista de hotel já não lhe permitia mais cobrir o aluguel em uma pensão. “É um lugar tranquilo”, disse ele sobre o abrigo. Mas seu tempo está correndo, já que os abrigos garantem moradia por apenas três meses. Durante esse período, os moradores recebem orientações sobre como encontrar trabalho e solicitar um subsídio para ajudá-los com o aluguel.

“A maioria deles diz que o seu salário não cobre as suas necessidades”, disse Mercedes Vucassovich, assistente social que dirige o Centro de Inclusão Social Bepo Ghezzi, no bairro Parque Patricios, em Buenos Aires, que viu sua demanda por moradia crescer.

Lionel Pais pendura suas roupas lavadas em um varal do abrigo do Centro de Inclusão Social Bepo Ghezzi, em Buenos Aires, em 21 de setembro Foto: Natacha Pisarenko/AP

Pobreza infantil

Onde esta pobreza mais se fez sentir foi entre as crianças de 0 a 14 anos, cuja taxa foi de 56,2%, acima dos 50,9% do semestre anterior. Entidades que trabalham com pobreza infantil, no entanto, alertam que o índice oficial ainda fica abaixo da realidade, já que não avalia o que se chama de “pobreza multidimensional”, que leva em consideração não só a renda, mas também a falta de acesso a saúde, educação e saneamento. Nesta lógica, o número de crianças em estado de pobreza passa de 60%.

Em Morón, um subúrbio a oeste da capital, María de los Ángeles García e Adrián Viñas Coronel, juntamente com os seus cinco filhos, com idades entre os 3 meses e 13 anos, alugam uma moradia improvisada num bairro de baixos rendimentos, depois de passarem seis meses nas ruas. Com um endereço, eles podem matricular seus filhos em uma escola pública.

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O seu único rendimento fixo é de cerca de 90.000 pesos (R$ 1.297) por mês em assistência social, dos quais têm de destinar 25% para aluguel. “Temos que trabalhar o dia todo na rua porque não temos comida suficiente nem fraldas para as crianças”, disse García, 31 anos.

María de los Ángeles García e seu marido Adrián Vinas, seguram seus filhos Byron e Jonas, em Buenos Aires, em 25 de setembro Foto: Natacha Pisarenko/AP

Na tentativa de amenizar o impacto da pobreza infantil, a Argentina possui programas de transferências de renda como a “Asignación Universal por Hijo”, uma espécie de bolsa família, e o cartão alimentação. Mas os valores recebidos vem sendo engolidos pela inflação interanual de 124%.

“Essas transferências são importantes porque senão teríamos níveis de fome de quase 30%, mas claramente não são suficientes para garantir uma alimentação adequada às crianças”, apontou Ianina Tuñon, especialista em infância no Observatório da Dívida Social Argentina, da Universidade Católica Argentina, em entrevista ao Estadão em abril sobre pobreza infantil.

García e sua família recebem ajuda por meio da ONG Corazon Azul, que fornece lanches, assistência médica e doações de bens para pessoas vulneráveis da região. Entre eles está Alejandro Heredia, 53 anos, que dorme em trens e coleta latas para vender para reciclagem. “Quando você pensa que está em uma situação ruim, sempre fica pior do que já estava”, disse ele. “Estamos assim há 40 anos e houve vários governos.”

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Alejandro Heredia, 53, posa para um foto em Buenos Aires Foto: Natacha Pisarenko/AP

Futuro empobrecido

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Esses números, porém, ainda não consideram os acontecimentos após as primárias, vencidas pelo candidato libertário, Javier Milei. Logo após as PASO (Primárias, Abertas, Simultâneas e Obrigatórias), o ministro da Economia e candidato presidencial pela chapa governista, Sergio Massa, provocou uma desvalorização de 20% no peso, gerando instabilidade nos preços e escassez de produtos. A medida era um pedido antigo do FMI para liberar mais dinheiro ao país endividado.

Além disso, o mês de agosto registrou pela primeira vez em 30 anos uma inflação de dois dígitos (12,4%). Toda essa situação, somada à escassez de insumos importados que ameaçam a cadeira produtiva do país, levam analistas a projetaram um futuro ainda mais empobrecido.

Durante grande parte do século XX, a Argentina apresentou uma dinâmica de mobilidade social que deu origem a uma grande classe média e fez com que o país se destacasse na região. Mas os bons tempos descarrilaram e a pobreza manteve-se firmemente acima dos 25% nas últimas duas décadas.

Consumidora passa ao lado de uma placa que diz: 'compre hoje, mais barato que amanhã', em Buenos Aires Foto: Agustin Marcarian/Reuters

Depois da crise de 2001, em que o índice de pobreza bateu 57%, o número apresentou queda, flutuando entre os 40% e 20%. Em 2019, durante o governo de Mauricio Macri, os números voltaram a subir com o início da recessão, saltando 10 pontos percentuais para 34,2% naquele ano. Durante a pandemia, nos anos iniciais do governo de Alberto Fernández, este dado chegou a ultrapassar os 42%, mas vinha em queda nos anos posteriores com a recuperação após a covid-19.

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Nas últimas semanas, Sergio Massa revelou uma série de medidas para tentar sobreviver até as eleições gerais de 22 de outubro. Mais recentemente, ele disse que aqueles que não estão formalmente empregados e que ainda não recebem qualquer forma de assistência social receberão 94 mil pesos (R$ 1.355) divididos em dois pagamentos mensais, em outubro e novembro.

As medidas ocorrem no momento em que Massa disputa um possível segundo lugar para o próximo turno de novembro. Segundo analistas, Milei deve ser o nome certo para o segundo turno, enquanto Massa disputa com a candidata macrista Patricia Bullrich a última vaga. Em um cenário de Milei contra Massa, pesquisas indicam uma vitória sossegada do libertário. COM AP

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