Polarização política nos EUA é o maior risco para a segurança do planeta atualmente; leia análise

Para Richard Haass, em vez de ser a âncora mais confiável em um mundo volátil, os EUA se tornaram a fonte mais profunda de instabilidade e um exemplar incerto de democracia

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Por Peter Baker

NOVA YORK, THE NEW YORK TIMES - Em todos os lugares que Richard Haass compareceu como presidente do Council on Foreign Relations, a mesma questão lhe foi indagada: o que tira seu sono? Não lhe faltaram opções de respostas ao longo dos anos — Rússia, China, Irã, Coreia do Norte, mudanças climáticas, terrorismo internacional, insegurança alimentar, a pandemia. Mas conforme se retira do cargo, depois de duas décadas dirigindo a mais renomada organização privada de análise com foco em assuntos internacionais, Haass chega a uma conclusão perturbadora. O mais grave perigo para a segurança do planeta neste momento qual é? A ameaça que lhe tira o sono? Os próprios Estados Unidos.

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“Nós mesmos”, disse ele pesarosamente outro dia.

Trata-se de um pensamento que este estrategista global jamais teria albergado até recentemente. Mas em sua mente, o desmantelamento do sistema político americano significa que, pela primeira vez em sua vida, o nível de ameaça interna superou o de ameaça externa. Em vez de ser a âncora mais confiável em um mundo volátil, afirmou Haass, os EUA se tornaram a fonte mais profunda de instabilidade e um exemplar incerto de democracia.

Richard Haass, que está deixando o cargo após duas décadas como presidente do Conselho de Relações Exteriores, nos escritórios do think tank de assuntos internacionais em Manhattan, 27 de junho de 2023 Foto: Karsten Moran/NYT

“Nossa situação política doméstica não é apenas um exemplo que os outros não desejam emular”, afirmou Haass durante entrevista na sexta-feira, seu último dia como presidente do Council on Foreign Relations. “Mas eu considero que isso também introduziu um grau de imprevisibilidade e uma falta de confiabilidade realmente venenosos — apesar da capacidade dos EUA de funcionar de maneira bem-sucedida no mundo; ou seja, isso dificulta muito para nossos amigos depender de nós.”

Os desafios domésticos fizeram um homem que passou toda a carreira como formulador de políticas e estudioso de assuntos internacionais voltar sua atenção para dentro. Haass publicou recentemente um livro intitulado “The Bill of Obligations: The Ten Habits of Good Citizens” (A Carta das Obrigações: os dez hábitos dos bons cidadãos), delineando maneiras pelas quais os americanos podem ajudar a sanar sua própria sociedade, como “Mantenha-se informado”, “Permaneça civil”, “Coloque o país em primeiro lugar” — platitudes confessas, mas de certa forma ainda frequentemente intangíveis nos dias de hoje. Além de trabalhar como consultor, Haass pretende passar grande parte do capítulo seguinte de sua vida promovendo o ensino do civismo.

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“Minha própria trajetória mudou”, observou ele em um par de entrevistas resumindo suas duas décadas à frente do Conselho. “Este novo livro não é algo que eu teria previsto escrever cinco ou dez anos atrás, mas eu realmente percebo quase uma mudança de modelo na democracia americana em operação. Agora isso virou uma preocupação de segurança nacional, é diferente.”

O veterano da política externa diz acreditar que os EUA se tornaram a mais profunda fonte de instabilidade e ameaça à sua segurança do mundo Foto: Karsten Moran/NYT

Como produto de seu cargo assim como de seu temperamento, Haass, de 71 anos, é membro proeminente de um establishment que perdeu influência na era de Donald Trump, uma voz do amplamente bipartidário consenso “realista”, que, para o bem ou para o mal, definiu a posição dos EUA no mundo ao longo da maior parte dos três quartos de século passados desde a 2.ª Guerra — um mundo de clubinhos que invariavelmente ocasiona ataques oriundos de pensamentos de grupo elitistas ou até teorias conspiratórias. Em seu ato final como presidente do Conselho, na semana passada, Haass entrevistou o secretário de Estado americano, Antony Blinken, com transmissão online — foi o 27.º secretário de Estado a comparecer diante do Conselho.

“É difícil pensar em alguém que tenha feito mais para tornar esta instituição o que ela é”, afirmou Blinken, elogiando seu anfitrião. “Eu o agradeço por isso”, respondeu Haass com um sorriso, “mas ainda assim vou lhe fazer as perguntas mais difíceis”.

Veterano de quatro governos americanos, um democrata e três republicanos, Haass também extrapolou o mundo insular dos analistas políticos de institutos aparecendo regularmente no programa “Morning Joe”, da MSNBC, onde, em termos comedidos mas inequívocos, ele lamentou a polarização política e tentou interpretar o significado da coisa toda.

Do palco no Rockefeller Plaza, em Nova York, Haass partiu, como na maioria das manhãs, em direção à sede do Conselho, 20 quarteirões ao norte, no Upper East Side. Seu escritório relativamente modesto, no quarto andar, é exatamente como alguém imaginaria um atulhado local de trabalho do presidente do Council on Foreign Relations, com estantes repletas literalmente de milhares de livros, dezenas de globos terrestres e pilhas de papel espalhados por toda parte e fotos com parentes, presidentes e colegas com que ele trabalhou em governos passados e graus honorários de várias universidades pendurados nas paredes.

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O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, participa de uma conversa sobre a abordagem da administração Biden-Harris à política externa no Conselho de Relações Exteriores com seu presidente Richard Haass Foto: Timothy A. Clary/AFP

Será difícil imaginar o Conselho sem ele. O presidente que serviu por mais tempo a instituição de mais de um século se orgulha por ter preservado o lugar dela no firmamento ao mesmo tempo que aumentou o número e a diversidade de seus membros inaugurando um escritório expandido em Washington, colocando foco em educação e mantendo a abordagem bipartidária, apesar de não aceitar o trumpismo America First. Ele será sucedido por Michael Froman, que foi representante de comércio dos EUA durante o governo de Barack Obama.

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Nascido no Brooklyn e criado em Long Island, Haass estudou na Faculdade Oberlin, onde realizou um documentário sobre a resposta dos estudantes ao massacre na Universidade Estadual de Kent. Depois de se formar, em 1973, ele ganhou bolsa de pós-graduação Rhodes. Posteriormente, Haass trabalhou para o senador Claiborne Pell, democrata de Rhode Island, no Capitólio, onde conheceu, em 1974, um jovem senador chamado Joe Biden.

Em seguida, Haass trabalhou no Pentágono sob o ex-presidente Jimmy Carter, no Departamento de Estado sob o ex-presidente Ronald Reagan e no Conselho de Segurança Nacional sob o ex-presidente George H.W. Bush. Sob o presidente George W. Bush, Haass serviu como diretor de planejamento de políticas do Departamento de Estado, mas acabou deixando o cargo em 2003, desencantado com a Guerra do Iraque, que posteriormente ele qualificou como “uma escolha implementada precariamente”.

Quando jovem, Haass se opôs à Guerra do Vietnã e considerou a si mesmo progressista. Mas então passou a se inspirar com os escritos de Alexander Solzhenitsyn, a ascensão de Margaret Thatcher e a visão Reagan-Bush de liderança dos EUA no exterior e limites ao governo domesticamente. Haass foi republicano por mais de 40 anos, apesar de certas vezes ter votado em democratas. Mas em 2020 ele renunciou ao partido capturado por Trump e, depois do ataque ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, declarou-se desfiliado publicamente.

Ao longo do século recente, os EUA passaram por outros períodos de divisão e discórdia: as leis de Jim Crow, o macarthismo, a Guerra do Vietnã, a luta por direitos civis, o escândalo de Watergate. Os assassinatos, os protestos e a guerra com frequência trazem 1968 à mente como um ano singularmente infeliz para a nação. Mas Haass considera o atual momento ainda pior. “Aquilo não ameaçou o sistema, sua tessitura”, afirmou ele. “Por isso considero hoje mais significativo.”

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Richard Haass, que está deixando o cargo após duas décadas como presidente do Conselho de Relações Exteriores Foto: Karsten Moran/NYT

Haass, que concordou em encontrar-se com Trump em 2015 para aconselhá-lo sobre assuntos internacionais, da mesma maneira que faria com qualquer outro candidato presidencial, admitiu que julgou erroneamente o bombástico empreendedor imobiliário.

“Equivoquei-me completamente ao assumir que o peso da função o moderaria ou o normalizaria, seja qual for a palavra que queiramos usar — que ele seria mais respeitoso em relação a tradições e legados”, afirmou Haass. “Eu estava errado. Ele apenas se tornou mais radical. Ele dobrou a aposta.”

A dúvida que resta é se os EUA mudaram definitivamente. “Eu deveria ganhar 1 níquel”, afirmou ele, “para cada indivíduo não americano, cada líder estrangeiro que me disse: ‘Eu não sei mais o que é norma e o que é exceção. O governo Biden é um retorno aos EUA com que eu podia contar achando que sempre fossem estar lá e Trump será uma intermitência na história? Ou a exceção é Biden e Trump e o trumpismo são os novos EUA?”.

Depois de desvendar nações estrangeiras ao longo da maior parte dos últimos 50 anos, Haass agora está pronto para desvendar seu próprio país. Deixando o analista de política internacional de lado neste momento, ele afirmou que pretende expandir a mensagem de seu livro e ajudar a recolocar o foco dos EUA em seus valores fundamentais consubstanciados na Declaração de Independência, conforme o 250.º aniversário do documento, daqui a três anos, se aproxima.

Apesar de todas as suas preocupações, Haass insiste que não é pessimista. “Quando circulo por aí falando sobre esse tópico, eu vejo que as pessoas sabem que algo está errado com a democracia americana”, afirmou ele. “Sabem que a nossa democracia está saindo dos trilhos. E apesar de podermos não concordar necessariamente sobre a maneira de consertá-la, existe uma abertura verdadeira para o debate.” /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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