As universidades públicas da Flórida, diferentemente da maioria, exigem uma pontuação nos vestibulares SAT ou ACT para a admissão de novos alunos. Os republicanos desse estado buscam eliminar os programas de diversidade e igualdade dessas instituições, enfraquecer a proteção oferecida aos professores contratados e limitar o ensino de conceitos como “teoria crítica da raça” e “teoria radical do gênero”.
Em comparação, as universidades públicas da Califórnia ignoram a pontuação no vestibular e defendem a importância da diversidade. O estado democrata exige que elas ofereçam medicamentos ligados ao aborto por meio dos centros estudantis. Os professores contratados exercem imensa influência na Universidade da Califórnia. Ali, os estudos de gênero não estão sob ameaça.
Com suas visões concorrentes, os dois importantes estados destacam um cisma cada vez mais visível entre democratas e republicanos no ensino superior: a guerra cultural está dividindo as universidades em campos polarizados. Isso envolve quem pode frequentar a universidade, se os estudantes se sentem bem-vindos nos campi e quem decide o que é ensinado ali.
Se, como resultado, mais estudantes em potencial forem atraídos para universidades que considerem seguir uma linha política mais próxima da sua própria, isso poderia gerar um ciclo vicioso de divisão, de acordo com os analistas. “É uma dinâmica que vai aprofundar a polarização”, disse David Strauss, consultor de ensino superior em Baltimore. “Para mim, isso representa um perigo.”
A divisão foi reforçada nos anos mais recentes. Quase todas as universidades fecharam seus campi no início de 2020 em resposta à pandemia do coronavírus. Mas aquelas situadas em estados republicanos foram mais rápidas na reabertura dos alojamentos e salas de aula. Nos estados democratas, a agilidade ficou com a exigência de vacinação para estudantes e funcionários, e a exigência de máscaras durou mais.
Muitos estados republicanos impuseram restrições ou proibições ao aborto depois que a Suprema Corte derrubou no ano passado o direito federal ao aborto. Essas proibições, por sua vez, podem influenciar as preferências dos futuros estudantes em relação à matrícula em universidades desses estados. Mas a Califórnia aprovou uma lei em 2019 — a primeira do tipo nos Estados Unidos — exigindo que os campi da Universidade da Califórnia e da Universidade do Estado da Califórnia tornem disponíveis pílulas do aborto nos seus centros de saúde. Massachusetts aprovou uma lei semelhante no ano passado. A democrata Kathy Hochul, governadora de Nova York, disse que deseja adotar a mesma medida.
Alguns reitores de universidades chegaram até a se posicionar em relação ao controle de armas ou os direitos dos alunos que são imigrantes sem documentos.
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Os campi e as cidades universitárias, que costumam se inclinar à esquerda, são facilmente retratados como ambientes alienados ou “elitistas”. E conforme o eleitorado com ensino superior foi abandonando o Partido Republicano nas eleições recentes, os conservadores passaram a suspeitar de manifestações estudantis contra palestrantes de direita e iniciativas de ensino promovendo a justiça social ou racial. A reação ganhou força depois que o assassinato de George Floyd em 2020 levou manifestantes às ruas de todo o país e fez muitas universidades declararem o compromisso de combater o racismo.
Funcionários do ensino superior frequentemente têm dificuldade em lidar com essas batalhas da guerra cultural, que podem afetar o salário que recebem por lei e sua capacidade de recrutar estudantes de outros estados.
“Espera-se agora do corpo docente e das lideranças dos campi que caminhem por uma corda bamba muito estreita”, disse Mildred García, presidente da Associação Americana de Universidades e Faculdades Estaduais. “Essa restrição está se tornando cada vez mais difícil e cara. Quem contraria as preferências políticas da maioria local corre o risco de receber atenção indesejada ou mesmo um corte nos recursos.”
Mérito e admissões
Em todo o país, a maioria das universidades e faculdades mais procuradas adotou nos anos mais recentes o modelo “sem vestibular”, ao menos temporariamente, deixando de exigir determinada pontuação nos exames SAT ou ACT, mas sem ignorar a pontuação enviada pelos candidatos. A tendência, acelerada pela pandemia, estimulou críticos para quem os exames favorecem os estudantes mais ricos. Eles já contam com muitas vantagens e podem pagar por cursos preparatórios.
Mas as universidades públicas da Califórnia deram um passo além, acabando com a exigência de exames. Isso significa que essa pontuação não é mais levada em consideração nas inscrições de novos alunos. Um número pequeno mas cada vez maior de universidades de outras regiões, com as universidades Washington State e Northern Illinois, seguiram o mesmo modelo.
Uma análise das políticas em relação aos exames vestibulares em todos os EUA, realizada pelo site FairTest, mostra uma clara divisão entre republicanos e democratas correspondente às universidades que exigem testes de admissão e aquelas que os ignoram. Nos estados republicanos, as autoridades frequentemente alegam que a pontuação do vestibular é um indicador essencial de mérito.
“Me parece que, se a pessoa estuda para ser engenheiro, ela precisa saber a resposta certa”, disse o republicano Ron DeSantis, governador da Flórida, em mesa redonda realizada por vídeo no dia 13 de março. “Se nos afastarmos de um sistema com base no mérito, como isso vai nos ajudar a desenvolver as pessoas que precisamos nessas funções essenciais?”
Kim Wilcox, chanceler da Universidade da Califórnia em Riverside e antiga liderança do ensino superior no Kansas, revelou ceticismo diante da decisão da UC em 2020 de abandonar as admissões com base em exames. “Todas essas medidas são enviesadas”, disse ele, citando também as médias ponderadas das notas. “Por que abandonar uma medida enviesada e ficar com ainda menos alternativas?”
Mas, de acordo com Wilcox, ele não detectou nenhum grande problema com essa decisão desde então. “A vida continua. Tudo vai ficar bem.”
Liberdade acadêmica
Para o corpo docente, uma das principais questões é a liberdade acadêmica. Faz anos que duas tradições protegem os professores da interferência política na pesquisa e no ensino. A primeira é o sistema de contratação de docentes. Em geral, professores cuja contratação é efetivada só podem ser demitidos em resposta a uma crise financeira ou outra circunstância extraordinária. A segunda é o compromisso institucional generalizado com a liberdade acadêmica. Em tese, isso protege o imenso número de funcionários docentes — palestrantes, assistentes e professores temporários — que trabalham sem contratação efetiva e pouca ou nenhuma garantia de estabilidade no emprego.
Agora é possível que essas proteções sejam enfraquecidas nos estados de maioria republicana.
Em 2021, o sistema de ensino superior da Geórgia flexibilizou as regras para a demissão de professores efetivados. Este ano, legisladores do Texas estão avaliando uma proposta de lei que acabaria com as contratações de professores em caráter efetivo nas universidades públicas. Uma proposta de lei na Flórida conferiria ao conselho da universidade mais poder na contratação de professores efetivos e eventual revogação de seus contratos.
Os republicanos dizem querer mais equilíbrio ideológico nas universidades e menos doutrinação esquerdista dos alunos. “Não devemos permitir que os professores efetivos se escondam atrás de uma suposta ‘liberdade acadêmica’ para então envenenar a mente da nossa próxima geração”, disse o republicano Dan Patrick, vice-governador do Texas, em 2022.
A Flórida avança rapidamente nesse sentido. DeSantis reformou este ano o conselho da pequena universidade pública New College of Florida para “redefinir o foco” da universidade para o que um porta-voz do governador descreveu como “estudo acadêmico e da verdade”. E uma ampla proposta de lei na câmara dos deputados poderia abrir caminho para que as universidades abandonassem os cursos “associados à teoria crítica, incluindo, mas não se limitando a, teoria crítica da raça, estudos críticos da raça, estudos críticos étnicos, teoria feminista radical, teoria radical de gênero, teoria queer, justiça social crítica ou interseccionalidade”.
A medida na Flórida ecoa outras adotadas em outros lugares nos dois anos mais recentes que buscaram regular o ensino da teoria da raça em todos os níveis do ensino público. Este ano, os republicanos do Texas estão apresentando uma proposta de lei para proibir o ensino da teoria crítica da raça no ensino superior. Estudos de gênero e interseccionalidade — conceito que analisa a sobreposição das formas de discriminação — também costumam ser atacados.
Muitos acadêmicos em todo o país estão indignados. “Não é incrível que alguém considere os estudos de gênero tamanha ameaça?” disse Sherene H. Razack, professora que preside o departamento desta disciplina na UCLA. De acordo com ela, o curso costuma produzir cerca de 200 formandos por ano na UCLA, e o departamento recebe milhares de alunos em suas aulas.
Razack também é especialista em teoria crítica da raça, uma estrutura para a análise do racismo sistêmico. No começo, ela se divertia com os ataques políticos à sua área. Mas isso passou. “Foi algo que subestimamos muito”, disse Razack. “É impressionante, mas o fato é que funciona.”
Na Universidade da Flórida, um porta-voz disse que o presidente da universidade Ben Sasse, ex-senador republicano pelo Nebraska, e o presidente do departamento de estudos de gênero, sexualidade e da mulher estariam indisponíveis para entrevista. Dados federais mostram que alunos do departamento receberam 29 diplomas de bacharelado e seis diplomas de mestrado em estudos da mulher em 2022.
Diversidade, igualdade e inclusão
Na tentativa de conter o preconceito e a desigualdade, muitas universidades declararam o compromisso de melhorar o ambiente para grupos marginalizados após o assassinato de Floyd. Elas lançaram iniciativas de diversidade, igualdade e inclusão, conhecidas como DEI.
Favoráveis às medidas, os progressistas afirmam que os privilégios e vieses de raça devem ser plenamente compreendidos, reconhecidos e remediados. Para os conservadores, as universidades deveriam ignorar questões de raça, caso contrário cria-se outra situação de discriminação. DeSantis, por exemplo, descreveu o DEI como uma “fraude” e deu a entender que as universidades frequentemente se afastam de um currículo “clássico”.
O Chronicle of Higher Education está acompanhando 29 propostas de lei contrarias ao DEI em 17 estados controlados por maiorias republicanas. Uma medida no Arizona proibiria as universidades públicas de exigirem de seus funcionários o envolvimento em cursos de DEI. Medidas no Iowa, Texas, Oklahoma, Ohio e na Flórida impediriam determinados tipos de gastos com DEI. Propostas de leis em diferentes estados proibiriam ou limitariam o uso de declarações de diversidade nas contratações ou admissões. Por enquanto, nenhuma das propostas acompanhadas pelo Chronicle foi aprovada.
Alguns estados rompem com os padrões partidários. Em Utah, de sólida maioria republicana, o senador estadual republicano John Johnson removeu sua proposta de lei para bloquear o financiamento ao DEI no ensino superior depois que o presidente da Universidade de Utah, Taylor R. Randall, e outros o convenceram a estudar o assunto mais a fundo.
“Pode ser que algumas dessas coisas tenham usos bastante positivos”, disse Johnson em uma sessão do legislativo em 27 de fevereiro, “e acredito que simplesmente cortar esses departamentos é uma medida drástica demais”.
Randall elogiou os legisladores de Utah pela abordagem paciente. “O estado é conservador, mas sem se precipitar”, disse ele em entrevista pelo telefone. Antes da proposta de lei ser apresentada, a universidade tinha lançado um programa de fomento de DEI, “One U Thriving”. De acordo com Randall, as universidades devem adotar muitas formas de diversidade, incluindo religiosa, socioeconômica e geográfica. “Se ampliarmos essas definições para além da raça, por exemplo, os ganhos são imensos”, disse ele.
O exemplo de Utah remonta a uma longa história de apoio bipartidário ao ensino superior no legislativo estadual. O historiador Christopher Loss, da Universidade Vanderbilt, disse que as universidades costumam “evitar o envolvimento direto nos debates políticos” porque seu público abrange uma ampla gama de visões de mundo. A Universidade da Califórnia em Berkeley, ícone do ativismo progressista desde a Guerra do Vietnã (em sua campanha de 1966 para o governo da Califórnia, Ronald Reagan prometeu “limpar a bagunça em Berkeley”), é frequentemente uma exceção.
“No ensino superior”, disse Loss, “as universidades costumam seguir mais a linha da Universidade da Carolina do Sul do que a de Berkeley”.
Mas se a Universidade da Califórnia continua sendo um exemplo do que seria a visão “democrata” para o ensino superior, o estado em si resiste ao estereótipo. Em 1996, seu eleitorado vetou a ação afirmativa no ensino superior público. Vários outros estados seguiram o modelo com proibições semelhantes, como Flórida, Arizona, Michigan e Washington. O eleitorado da Califórnia optou decisivamente por rejeitar as tentativas de reverter essa proibição em 2020.
É provável que a guerra cultural nos campi ganhe novo fôlego este ano quando a Suprema Corte decidir se as admissões levando em consideração a raça devem ser proibidas em todo o país. Espera-se que a maioria conservadora da corte decida pelo fim da ação afirmativa nas admissões, decisão que pode alterar a composição racial e étnica do corpo estudantil nas universidades mais disputadas e injetar mais volatilidade no debate entre republicanos e democratas.
Nina Caputo, professora-assistente de história na Universidade da Flórida desde 2003, disse que muitos membros do corpo docente estão “absolutamente exaustos” com os embates políticos e ataques legislativos à liberdade acadêmica. Os debates estão levantando questões fundamentais, disse ela: “Para que serve a universidade? O que ela faz?” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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