Dois anos depois de matar a tiros um homem negro desarmado na cidade de Tulsa, a policial Betty Jo Shelby, que agora atua em um condado próximo, passou a dar aulas sobre como "sobreviver a este tipo de evento" - legalmente, emocionalmente e fisicamente.
O curso ensina policiais a se prepararem para o "efeito Ferguson" - em referência à cidade no Estado do Missouri que foi o epicentro dos protestos contra a morte de negros por policiais brancos em 2014 -, que ela define como aqueles momentos em que os agentes são "vítimas de grupos anti-policiais e julgados pela opinião pública".
Betty, que é branca, foi julgada no ano passado por um tribunal de Tulsa. Ela foi absolvida da acusação de homicídio culposo - sem intenção de matar - na morte de Terence Crutcher. Mas o júri questionou seu "julgamento como policial".
Em uma carta tornada pública, o presidente dos jurados afirmou que, se fosse possível, uma opção menos letal deveria ser "seriamente levada em consideração" para que ela "fosse autorizada a retomar suas funções".
O Departamento de Polícia de Tulsa afastou Betty do trabalho nas ruas e a transferiu para uma posição administrativa, o que fez ela pedir demissão. "Ficar sentada atrás de uma mesa não é algo para mim", explicou.
"Senti que minha carreira estava acabada", disse Betty ao diário Tulsa World sobre a morte de Crutcher em 2016, que provocou protestos e renovou um debate nacional sobre racismo e policiamento.
Apesar das polêmicas, Betty diz estar pronta para levar adiante seu curso "Sobrevivendo às consequências de um incidente crítico" para a cidade de seu próprio "incidente crítico".
O presença dela nesta terça-feira, 28, no Gabinete do Xerife de Tulsa foi condenado por ativistas locais, que argumentam que ela não deveria dar conselhos à polícia - especialmente na comunidade em que ela matou Crutcher, motorista de 40 anos e pai de quatro crianças.
Marq Lewis, fundador do grupo de monitoramento We the People Oklahoma, argumenta que o curso de Betty transforma o policial em vítima - sendo que no caso dela, foi Crutcher que não sobreviveu e não teve a oportunidade de contar sua versão da história.
"É mais um indicativo de que Betty Shelby foi recompensada enquanto que os filhos de Terence Crutcher ainda estão sofrendo", afirmou Lewis. "Eles não têm ninguém que viaje pelo Estado e fale sobre suas experiências."
Em nota enviada à afiliada local da emissora ABC, Betty defendeu sua capacidade de dar o curso. "Enfrentei muitos desafios para os quais eu estava despreparada, como as ameaças que sofri de grupos de ativistas e a suspensão do meu salário", disse.
"Meu curso pode ajudar outros policiais ao compartilhar algumas das habilidades que usei para lidar com o estresse do meu incidente crítico. Policiais passam por muitas situações críticas ao longo de suas carreiras. Essas ferramentas que compartilho são apenas algumas que podem ajudá-los a passar pelo estresse de situações que eles já tiveram ou ainda terão."
Um mês depois de se desligar da polícia de Tulsa, Betty assumiu uma vaga de suplente na polícia do Condado de Rogers, a cerca de 50 km de seu antigo emprego. Ela esteve em um cargo limitado por vários meses para participar de palestras já agendadas, de acordo com um jornal local, e assumiu uma função de patrulhamento em tempo integral no final do ano passado.
Ela diz que sua experiência em Tulsa a obrigou a ser ainda mais cautelosa em sua nova função. "Você tem de estar preparado para o desconhecido", disse Betty. "E isso é ainda mais importante agora porque tenho de me perguntar se as pessoas vão me reconhecer."
O caso de Tulsa
Imagens da câmara instalada na viatura de Betty e em um helicóptero mostram que Crutcher caminhava em direção a seu veículo e aparentemente tentou pegar algo pela janela do carro. Um policial sacou uma pistola Taser e, segundos depois, Betty disparou sua arma de fogo, atingindo o pulmão do homem desarmado. Betty alega que ele ignorou ordens verbais.
O caso ocorreu no fim de 2016, perto da eleição presidencial daquele ano, e foi destaque na imprensa mundial. Ao comentar o incidente em uma igreja de Cleveland, em setembro, o então candidato republicano, Donald Trump, disse que Crutcher "aparentemente fez tudo que deveria e parecia ser um homem realmente bom".
"Esta jovem policial... Eu não sei o que ela estava pensando", disse Trump. "Não sei o que ela estava pensando", falou o republicano deliberadamente devagar para enfatizar sua opinião. "Estou muito, muito, muito impactado pelo ocorrido."
Antes de seu julgamento, em maio de 2017, Betty se defendeu em entrevista ao programa 60 Minutes. Ela disse que "a questão racial não teve nenhuma relação com minha decisão (de atirar)". A policial alegou ainda que Crutcher estava alterado e apresentava "comportamento de zumbi" - exames toxicológicos detectaram a presença de PCP e TCP, dois anestésicos com propriedades alucinógenas, no organismo da vítima.
Quando o júri declarou Betty inocente, Tiffany Crutcher - irmã de Terence - contestou: "Terence não era o agressor. Betty Shelby foi a agressora".
Ferida aberta
De acordo com Lewis, as consequências da morte de Crutcher ainda são sentidas em Tulsa, cidade com grande desigualdade racial.
Os negros de Tulsa têm quase duas vezes e meia mais chances de estarem desempregados do que os brancos, de acordo com o relatório deste ano sobre indicadores de desigualdade na cidade. Enquanto isso, os jovens negros são mais de três vezes mais propensos a serem presos do que os jovens brancos.
O diretor do grupo de monitoramento diz que o momento escolhido para a contratação do curso de Betty, coincidindo com o 65º aniversário do histórico discurso de Martin Luther King, piora ainda mais a situação.
"Isso não só está acontecendo em Tulsa, onde este caso flagrante de violência ocorreu há dois anos, mas também escolheram o mesmo dia do discurso de Luther King."
Na histórica fala, feita nos degraus do Lincoln Memorial, em Washington, Luther King disse que havia uma questão colocada aos defensores dos direitos civis: "Quando ficaremos satisfeito"
"Nunca poderemos ficar satisfeitos enquanto o negro for vítima dos indescritíveis horrores da brutalidade policial", respondeu o próprio reverendo.
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