A história de Joe Biden, o 'centrista e simpático' novo presidente dos EUA

Após tragédia pessoal, Biden achava que ficaria só um mandato no Senado; ficou 36 anos até ser vice-presidente duas vezes

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Foto do author Beatriz Bulla
Por Beatriz Bulla e correspondente

Quatro meses depois de deixar a vice-presidência dos EUA, em 2017, Joe Biden se reuniu com ativistas democratas em Washington. Ao fim do encontro, a mais jovem do grupo ficou de fora da fila para tirar fotos com o recém-saído da Casa Branca

“Não gosto muito disso”, disse a fundadora da ONG Run for Something, Amanda Litman. Um colega acenou chamando Biden mesmo assim. Sem graça e sem alternativa, ela se aproximou para um clique. “Minha avó ficaria furiosa se eu não tirasse uma foto com você”, disse Amanda, um sinal de que ela mesma não nutria grande afeição pelo político. “Avó? Vamos ligar para ela!”, respondeu Biden, na noite em que a capital americana estava em polvorosa com a notícia de que o novo presidente, Donald Trump, havia demitido o chefe do FBI.

Biden achava que ficaria só um mandato no Senado; ficou 36 anos até ser vice-presidente duas vezes Foto: Erin Schaff/NYT

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Em pé, Biden ouviu pelo telefone a avó da ativista contar com pesar que uma das filhas estava com um câncer em estágio avançado. Ele parou de sorrir. “Pais nunca deveriam enterrar um filho. É um pesadelo”, disse, antes de descrever seu próprio drama pessoal e relembrar suas noites ao lado da cama de hospital de Beau, seu filho mais velho, que morreu aos 46 anos em decorrência de um tumor no cérebro. 

Os dois conversaram por 20 minutos. Ainda ao telefone, o democrata pegou o caderninho que sempre carrega e escreveu seu número de celular. Entregou a folha de papel a Amanda e pediu que avó e neta entrassem em contato, se ele pudesse ajudar. No mesmo ano, ao saber da morte da tia de Amanda, Biden escreveu duas cartas. Uma à avó e outra ao viúvo, com quem nunca tinha trocado uma palavra.

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A história de Joe Biden

Com uma vida marcada por tragédias pessoais e superações, os episódios de empatia de Biden, que agora volta à Casa Branca como presidente dos Estados Unidos, se acumulam na imprensa e nas redes sociais, com cartas, fotos e vídeos de americanos que contaram com o apoio do ex-vice-presidente. A sensibilidade e proximidade com o eleitorado viraram um forte ativo em uma campanha feita no curso de uma pandemia que matou 230 mil americanos.

A estreia de Biden em Washington foi marcada por uma fatalidade que norteou sua vida política. Eleito um dos senadores mais jovens, ele tomou posse aos 30 anos, em 1973, dentro de um quarto de hospital. Seus filhos Beau e Hunter aparecem crianças na cama, se recuperando de um acidente de carro que matou a primeira mulher de Biden, Neilia, e a filha mais nova do casal, Naomi. A tragédia ocorreu 18 de dezembro de 1972, um mês após Biden ser eleito, quando a família voltava de compras de Natal.

“Ele não ia para a cerimônia de posse, disse que não abandonaria as crianças”, contou Francis Valeo, principal assessor do então presidente do Senado, Mike Mansfield, em entrevista do arquivo do Senado. Mansfield permitiu que ele fizesse o juramento dentro do hospital. 

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Em um curto discurso para parentes e amigos, Biden disse que não estava seguro de que permaneceria no Senado até o fim do mandato. Ficou 36 anos, interrompidos apenas quando assumiu a vice-presidência no governo Obama

Valerie e Jimmy, irmãos de Biden, cuidaram das crianças enquanto o senador estava em Washington. O entra e sai na casa era frequente, com amigos se revezando na companhia a Hunter e Beau. Ao longo de toda a carreira em Washington, ele continuou a morar em Delaware. O trajeto de 1h30 era feito de trem, o que lhe rendeu o apelido de Amtrak Joe, em referência à estatal ferroviária americana. 

A vida de Joe Biden marcada por tragédias

Em 1977, ele se casou com Jill Tracy Jacobs, professora, com quem teve a terceira filha, Ashley. Segundo assessores que trabalharam com Biden na Casa Branca, as reuniões, independentemente da gravidade, eram sempre interrompidas se Biden recebesse uma ligação de Jill. 

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Joseph Robinette Biden Jr. nasceu em Scranton, na Pensilvânia, no Meio-Oeste industrial. Ele se mudou ainda criança para Delaware, quando seu pai perdeu o emprego. Foi como representante do Estado que fez toda sua vida pública. O apelido de “Joe Classe Média” foi atraente na campanha democrata de 2008 para romper a resistência a Obama entre o operariado branco.

A experiência como presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado também contou a favor. No governo, Biden foi um leal vice-presidente. Era sempre o último a sair do Salão Oval. Obama pedia que ele dissesse exatamente o que pensava, mesmo discordando. Nem seria necessário pedir. Em troca, ele deu ao vice funções relevantes, como a condução de parte da política externa e o trato com alguns presidentes de outros países, além da articulações no Senado. 

Biden vai à igreja todos os fins de semana. Agora, tornou-se o segundo presidente católico dos EUA. No segundo mandato de Obama, ele precisou telefonar para a então presidente do Chile, Michelle Bachelet, em um feriado católico. Por longos minutos, relatou um assessor que acompanhou a ligação, Biden se desculpou por incomodar em um dia sagrado, sem deixar a chilena falar. “Joe”, interrompeu a presidente, “eu não sou religiosa, vá em frente”. 

Joe Biden foi vice-presidente durante mandato de Obama Foto: Emmanuel Dunand/AFP

“Acho que Biden conhece um pouco mais sobre pobreza e ansiedades econômicas, em parte porque ele vem de Wilmington, que é uma cidade industrial onde os salários não são altos e há desemprego”, disse Valeo, na mesma entrevista que lembrou de como Biden chegou ao Senado: crítico e desconfiado.

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Joe Biden, centrista e simpático

Ele era identificado com a esquerda do partido ao chegar a Washington e foi um dos primeiros a trabalhar por legislação que enfrentasse as mudanças climáticas, em 1986. Ao longo da carreira, no entanto, ele acabou se tornando o maior expoente do centrismo democrata e um exímio articulador político. 

Biden tinha 25 anos quando Martin Luther King foi assassinado. Os protestos após a morte do ícone dos direitos civis foram intensos. Recém-formado em Direito, ele decidiu ser defensor público inspirado pelo clima das ruas. Em Promises to Keep, biografia de 2007, ele diz que seus clientes eram “negros pobres” de Wilmington, uma cidade em que 60% da população é negra, quase cinco vezes a taxa nacional. 

O democrata não é um intelectual brilhante, nem tem a uma retórica inspiradora, como Obama. Seu capital político está na articulação e na empatia. Ao longo da carreira, ele teve discursos oscilantes e atrapalhados, o que fez Donald Trump questionar sua aptidão mental.

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Parte de suas gafes são porque o democrata fala mesmo o que pensa. Mas as dificuldades de retórica são fruto da gagueira. É raro notar que ele é gago antes de saber do distúrbio. São poucas as vezes que Biden repete sílabas, mas frequentemente ele tem dificuldade com a fluidez do raciocínio. Ele prolonga o final das palavras e, por vezes, interrompe abruptamente a frase – uma estratégia, segundo especialistas, para evitar um momento de gagueira tradicional em público. 

Quando chegou ao Senado, aos 30 anos, Biden era impetuoso e mais progressista do que seu partido. Hoje, aos 77, torna-se o mais velho a assumir a Casa Branca. Desta vez, graças à moderação. A única coisa que não mudou em quatro décadas de vida pública, para o desespero dos assessores, é que ele continua distribuindo por aí seu número de telefone em pedacinhos de papel.