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Populismo de presidente de El Salvador flerta com a repressão

Nayib Bukele controla gangues com violência, comete abusos, mas é amado pelos salvadorenhos por ‘combater a violência’

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Por Natalie Kitroeff
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - Quatro semanas haviam se passado desde que o sapateiro desaparecera da localidade em que vivia, após ser algemado e arrastado pela polícia de El Salvador. A família de Heber Peña, de 29 anos, juntou recibos de serviços e assinaturas de clientes para provar que ele ganha a vida honestamente. Os parentes temem que ele esteja preso numa penitenciária superlotada, sob a acusação de ser membro de uma gangue.

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Apesar disso, a família do sapateiro ainda nota benefícios da repressão policial que o levou à prisão – e admira o responsável por ela. “Fora isso, tudo que o presidente tem feito é formidável”, disse o irmão de Heber, Caleb.

Heber Peña é um dos mais de 18 mil salvadorenhos presos recentemente, após um pico nos assassinatos em março levar o governo do presidente, Nayib Bukele, a declarar estado de emergência, suspendendo liberdades civis garantidas pela Constituição e permitindo que menores de até 12 anos sejam julgados como adultos por adesão a gangues.

Grupos de defesa dos direitos humanos denunciaram as medidas como violações de liberdades fundamentais. O secretário de Estado americano, Antony Blinken, pediu ao governo salvadorenho que “cumpra os devidos processos e proteja as liberdades civis”.

Mas a maioria da população não reclama. O país está cansado do derramamento de sangue sem fim, das gangues e da ausência de lei que levaram tantos salvadorenhos a viajar mais de 1.600 quilômetros até a fronteira dos EUA.

Presidente de El Salvador, Nayib Bukele, se reúne com líderes do governo chinês em Pequim  Foto: Noel Celis/Pool via Reuters

Alívio com a repressão

Grande parte dos salvadorenhos se sente aliviada com a repressão, mesmo que Bukele também esteja abalando a frágil democracia que seu país construiu com dificuldade nas últimas três décadas.

O fim de uma guerra civil brutal, em 1992, ungiu ao poder uma nova força de desordem em El Salvador: gangues assumiram o controle depois que os EUA deportaram centenas de salvadorenhos – muitos deles haviam construído redes criminosas em Los Angeles.

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As gangues alimentaram um ciclo de derramamento de sangue que aprofundou a frustração com um sistema político incapaz de produzir uma paz duradoura. Agora, muitos apoiam Bukele, um jovem líder com inclinação autoritária, que deu ao povo, pelo menos temporariamente, a inalcançável estabilidade.

Bukele, de 40 anos, tornou-se um dos líderes mais populares do mundo. Seus apoiadores afirmam que isso se deve ao acentuado declínio na violência das gangues desde que ele assumiu, em 2019, assim como por sua gestão da pandemia, um período em que ele ajudou muita gente fornecendo alimentos.


Policiais salvadorenhos buscam membros de gangues no interior do país Foto: Daniele Volpe/The New York Times

Trégua secreta

Analistas e autoridades do governo americano acreditam que a violência só diminuiu em razão de uma trégua secreta estabelecida entre gangues e governo, o que Bukele nega ter ocorrido. Mas os críticos estão cada vez mais apreensivos com os esforços do presidente para subverter as frágeis instituições e concentrar cada vez mais poder em suas mãos.

Seu partido removeu sumariamente cinco ministros da Suprema Corte e demitiu um procurador-geral que investigava o governo, ao mesmo tempo em que ataca meios de comunicação e grupos de defesa de direitos humanos.

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Mas a maioria dos salvadorenhos não parece se sentir reprimida – ou não se importa com isso. A satisfação com a democracia está no maior nível em mais de uma década, mostrou uma pesquisa da Universidade Vanderbilt, realizada em agosto. Outra sondagem CID-Gallup, publicada na semana passada, constatou que 91% dos entrevistados aprovam as medidas de segurança do governo.

“Para muita gente em El Salvador, democracia significa a capacidade do sistema político de solucionar suas necessidades”, afirmou José Miguel Cruz, especialista da Universidade Internacional da Flórida. “Segundo esse critério, os salvadorenhos consideram a democracia sua melhor opção.”

Temores a respeito de prisões arbitrárias espalharam-se pelo país. Mas muitos continuam convencidos de que é perfeitamente legítimo o governo adotar medidas extremas para esmagar as gangues que os atormentam.

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A autoridade das gangues

Na realidade, muito antes de Bukele declarar estado de emergência, liberdades básicas já eram bastante limitadas na maior parte do país. A única diferença é que, no passado, não era o governo que dava as ordens. Eram as gangues.

Em muitas das cidades e vilarejos mais pobres de El Salvador, as gangues são a autoridade absoluta. Elas decidem quem pode entrar e em que momento, quais empreendedores podem abrir negócios e quanto imposto eles devem, quem fica vivo e por quanto tempo.

“Nessas comunidades, as pessoas já viviam sob estado de emergência”, afirmou Edwin Segura, chefe da editoria investigativa do jornal salvadorenho La Prensa Gráfica. “As pessoas dizem: ‘Bem, se saio do controle autoritário e homicida da gangue para o controle autoritário do Estado, acho melhor’.”

Heber nasceu e viveu em um vilarejo ao norte da capital San Salvador chamado “Distrito Itália”, que ganhou esse nome depois que o país europeu doou fundos para a construção de uma comunidade para pessoas deslocadas por um grande terremoto, em 1986.

O poder da Mara Salvatrucha

Distrito Itália se tornou reduto da Mara Salvatrucha, ou MS-13, que até o estado de emergência controlava todos os aspectos da vida local. Moradores, policiais e ex-policiais afirmam que a gangue cobrava impostos de muitos estabelecimentos comerciais e de qualquer empresa de fora que quisesse entregar produtos na localidade. As gangues se intrometiam até em brigas entre cônjuges ou vizinhos, impondo um tipo próprio de policiamento e justiça.

“Se você briga com um vizinho, você fala com as pessoas que cuidam desses lugares, não com a polícia”, afirmou um homem chamado Rogelio, cujo nome completo não será revelado para protegê-lo de represálias.

Certa vez, contou ele, um grupo de membros de gangue o espancou, pois ele havia pronunciado uma palavra que eles não gostaram. Poucos dias atrás, enquanto Rogelio assistia, eles mataram a tiros seu melhor amigo, porque ele pareceu “quieto demais” para eles. “Se eu fosse o governo, se tivesse poder para isso, desapareceria com eles”, afirmou Rogelio, referindo-se aos membros de gangues. “Eles não merecem viver.”

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No ano passado, o Departamento de Tesouro americano impôs sanções contra autoridades do governo Bukele, por elas terem concedido “incentivos financeiros” e privilégios na prisão para líderes das gangues, em troca de menos matanças.

Qualquer acordo nesse sentido pareceu rompido em março, quando um fim de semana repleto de assassinatos quebrou o ambiente de tranquilidade, e agora Bukele parece estar de novo em guerra total contra as gangues.

Desde que o Parlamento salvadorenho aprovou em primeira votação o estado de emergência, soldados foram estacionados na entrada do Distrito Itália, inspecionando todos os veículos e ordenando que moradores tirem a roupa para mostrar se possuem tatuagens que possam indicar ligações com gangues.

Muitos moradores afirmam que se sentem mais seguros agora, incluindo Rogelio, para quem as pessoas que criticam o tratamento que Bukele está dando às gangues não têm ideia do que significa ser subjugado por elas cotidianamente.

Autoritarismo 2.0

Bukele fez questão de transmitir sua repressão contra as gangues nas redes sociais, gabando-se por ter negado banho de sol a detentos e racionado sua comida. No Twitter, ele postou vídeos de agentes carcerários fazendo homens tatuados deitarem-se no chão e de detentos recebendo porções pequenas de comida.

Essas demonstrações públicas de crueldade parecem destinadas a ganhar pontos na política. Uma pesquisa de 2017 constatou que mais de um terço dos salvadorenhos aprova o uso de tortura e assassinatos extrajudiciais para combater as gangues. “Certamente, é uma imagem catártica ver membros de gangues submetidos, deitados no chão, depois de vê-los plenos de poder, humilhando e aterrorizando as pessoas”, disse Segura.

O próprio Bukele reconhece que o governo jogou inocentes na cadeia, mas sustenta que essas prisões representam uma minúscula porcentagem do total. Marvin Reyes, que dirige um sindicato de policiais, afirmou que os agentes foram orientados por seus superiores a atender “uma cota diária de prisões”. Um porta-voz do gabinete de segurança do presidente rejeitou comentar a declaração.

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”Muitos membros de gangues desapareceram do mapa – fugindo para as montanhas ou se escondendo em locais seguros. Então, a polícia teve de atender a demanda por detenções em massa prendendo qualquer um que lhe pareça suspeito”, afirmou Reyes.

Como quase todos os habitantes do Distrito Itália, os parentes de Heber, o sapateiro, sonham com uma vida mais pacífica. Mas, da mesma maneira que muitos outros moradores, eles insistem que o jovem preso não tinha nenhuma relação com as gangues. Quando a polícia bateu à porta de seu estabelecimento, em março, ele fabricava um par de sapatos pretos.

”Ele estava trabalhando bem aqui”, afirmou seu pai, Víctor Manuel Peña, apontando para uma pilha de sandálias inacabadas do lado de fora da residência de dois cômodos que ele compartilha com Heber. “Que líder de gangue vive num barraco feito de chapas de metal?”

Quando sua mulher morreu de câncer, anos atrás, Víctor Manuel, de 70 anos, assumiu a responsabilidade de cozinhar para a família. Agora, ele tem pesadelos em que seu filho passa fome na prisão. Ele votou em Bukele, assim como toda sua família. “Víamos que ele estava interessado em melhorar o país. Nunca imaginamos que ele cometeria erros como este./ TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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