THE NEW YORK TIMES - Diz-se frequentemente que o ponto inflamável mais perigoso do mundo é o estreito que separa Taiwan da China continental, onde a marinha e a força aérea chinesa fazem demonstrações diárias do seu poderio para tentar intimidar Taiwan, enquanto a marinha dos Estados Unidos patrulha as imediações. Tenho minhas dúvidas. Na verdade, temos ali um equilíbrio de dissuasão no momento. Comparado ao que acabo de visitar, poderíamos organizar uma regata tranquila no Estreito de Taiwan.
Passei dois dias jogando amarelinha a bordo de um helicóptero CH-47 Chinook em visita a sete bases americanas no oeste da Jordânia e leste da Síria, na companhia do principal comandante do Centcom para o Oriente Médio, general Michael Kurilla. Não há equilíbrio aqui. Em vez disso, o que temos é a outra guerra do Oriente Médio que teve início pouco depois da trágica guerra entre Israel e Hamas iniciada no dia 7 de outubro.
Esta outra guerra do Oriente Médio envolve o Irã e seus representantes (Houthis, Hezbollah e as milícias xiitas no Iraque) contra a pequena rede de bases americanas na Síria, Jordânia e Iraque estabelecidas após 2014 para destruir o Estado Islâmico (ISIS) e contra a presença naval americana no Mar Vermelho e no Golfo de Aden que mantém abertas e seguras as essenciais vias marítimas da região.
Armados pelo Irã, essas milícias xiitas no Iraque e os combatentes Houthis no Iêmen podem não parecer ameaças letais, mas que ninguém se engane. Eles aprenderam a armar, construir, adaptar e mobilizar alguns dos armamentos de precisão mais sofisticados do mundo. Esse armamento, fornecido pelo Irã, é capaz de atingir um alvo de um metro de largura a uma distância de 800 quilômetros.
Os jovens soldados e marinheiros americanos que os enfrentam ganharam experiência no videogame, mas agora se veem num jogo real, usando o cursor e o software para ativar as medidas defensivas mais sofisticadas do mundo para interceptar e afastar quase todos os drones e foguetes que os representantes do Irã atiram na sua direção.
Em resumo, talvez os americanos não saibam que estão em guerra com o Irã, mas a Guarda Revolucionária iraniana tem certeza que está em uma guerra clandestina com os EUA por meio de seus representantes.
E se algum desses representantes iranianos tiver “sorte” e produzir um evento de múltiplas baixas atacando um navio de guerra americano ou o alojamento de uma das bases americanas na Jordânia ou Síria, algo semelhante ao ataque a bomba contra o alojamento dos Marines em Beirute, 1983, o conflito entre EUA e Irã certamente sairia da clandestinidade, tornando-se uma guerra ativa na região da qual a maior parte do mundo depende para obter seu petróleo.
Pensei que seria bom avisar.
Essa outra guerra do Oriente Médio ganhou força no dia 17 de outubro, 10 dias após o ataque do Hamas contra Israel, de acordo com a explicação dos oficiais do Centcom. O Irã parece ter tomado então a decisão de intensificar as atividades de todos os seus representantes. Sob a cobertura da guerra em Gaza e cedendo ao sentimento antiamericano produzido por esta, o Irã buscou ver se conseguiria danificar significativamente a rede de instalações americanas no Iraque, no leste da Síria e no norte da Jordânia, ou quem sabe desalojar de vez as forças americanas.
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Suspeito que Teerã também tinha em mente outro objetivo: intimidar os aliados árabes dos EUA mostrando a eles o estrago que o Irã poderia infligir ao seu protetor americano.
O que sei com certeza é que este é o mais perigoso jogo de provocação em andamento hoje, em qualquer lugar, por três motivos.
O primeiro é simplesmente o volume de foguetes, drones e mísseis que os representantes do Irã mobilizaram, especialmente os Houthis no Iêmen e as milícias xiitas no Iraque. De acordo com o Centcom, desde 17 de outubro, foram disparadas centenas de ogivas transportadas por foguetes terra-mar, mísseis cruise, mísseis balísticos, drones de ataque, lanchas suicidas e veículos submarinos autônomos, tudo fornecido pelo Irã, tendo como alvo bases americanas, navios de guerra e embarcações comerciais no Mar Vermelho.
Felizmente, apesar do volume dos ataques, os EUA conseguiram destruir ou desviar a maior parte dos projéteis usando interceptores e uma crescente floresta de radares e medidas defensivas mobilizadas nas bases e nos navios de guerra americanos. Não é uma tarefa fácil; vários foguetes e drones conseguiram vencer as defesas, ferindo mais de 180 americanos até o momento, de acordo com o Centcom, e vi pessoalmente o estrago causado por eles em várias das bases que visitamos.
Essas bases americanas não são instalações luxuosas. Muitas começaram como bases improvisadas controladas pelo ISIS ou como pequenas cidades que os EUA e seus aliados curdos passaram a controlar a partir de 2014, após intensos combates contra o ISIS em uma guerra que ameaçou os governos da Síria, Iraque e Jordânia ao mesmo tempo.
Hoje, elas são formadas por alojamentos pré-fabricados cercados e separados por centenas de paredes de concreto importadas dos EUA para limitar o estrago das eventuais ogivas que as atingirem. O sinal wifi precário permite que os soldados mantenham contato com a família e acompanhem os esportes. Cozinhas espartanas servem enroladinhos de salsicha, nuggets de frango e afins, e em algumas das “melhores” instalações, podemos encontrar até uma seleção de frutas frescas do dia, mas, para um visitante de 70 anos andando por aí com um capacete e um colete a prova de balas de 25 quilos, é incrível como pode ser gostoso um enroladinho de salsicha em uma cozinha do exército no deserto da Síria.
Mas, como essas bases foram pensadas para impedir a reconstituição das linhas de suprimentos do ISIS e de sua massa crítica, elas nunca tiveram como objetivo dissuadir ou atacar os vastos arsenais de foguetes modernos dos representantes do Irã.
E, por isso, no dia 28 de janeiro, um drone de ataque iraniano carregando uma ogiva de 10 quilos lançado por uma coalizão de milícias xiitas apoiadas pelo Irã chamada Resistência Islâmica no Iraque, atingiu uma instalação americana no nordeste da Jordânia, a Torre 22.
Visitei a Torre 22 com a equipe do general Kurilla na semana passada. A explosão matou três soldados americanos, que estavam descansando, e deixou 47 feridos. Felizmente, os alojamentos modulares dali eram separados por paredes de concreto. Um soldado que estava no alojamento vizinho ao atingido nos contou que estava conversando por telefone com a mulher quando o drone atacou; protegido por uma espessa barreira de cimento, ele ficou abalado, mas não se feriu. Assistindo tudo ao vivo, a mulher pensou que ele tivesse morrido quando desapareceu em meio à fumaça, mas ele conseguiu falar com ela três horas mais tarde para avisar que estava bem.
Fiquei surpreso em saber o quanto os iranianos incentivaram seus representantes a serem agressivos, o que me leva ao segundo e extremamente perigoso aspecto dessa guerra.
Foi o que o general Kurilla descreveu secamente como “conversa” dissuasiva que o Centcom teve com o Irã após o ataque à Torre 22, para deixar claro para Teerã que eles estavam brincando com fogo.
No dia 2 de fevereiro, os EUA lançaram ataques aéreos contra toda a rede de representantes iranianos no Iraque e na Síria, e no dia seguinte os alvos foram instalações dos Houthis no Iêmen, com mais de 100 alvos atingidos, usando uma combinação de bombardeiros de longo alcance B-1 mobilizados a partir de bases no Texas, e mísseis Cruise e bombardeiros leves lançados do grupo naval do porta-aviões Eisenhower no Mar Vermelho. Parece que 40 pessoas morreram nos ataques retaliatórios dos EUA.
A operação foi então encerrada no dia 7 de fevereiro quando os EUA decidiram demonstrar para o Irã e seus representantes o tipo de tática de precisão com informações de espionagem que os americanos são capazes de empregar, assassinando Abu Baqir al-Saedi, o comandante específico do Kataib Hezbollah que, de acordo com investigação dos EUA, foi responsável pelos ataques com drones contra bases no Iraque, na Jordânia e na Síria.
Al-Saedi foi atingido enquanto dirigia por uma rua de Bagdá, pelo mesmo tipo de míssil Hellfire disparado por drone que matou o comandante do alto escalão da Guarda Revolucionária, Qassim Suleimani, em 2020. É um projétil equipado com seis lâminas semelhantes a espadas que, depois de penetrar o veículo, fatiam tudo que houver pelo caminho como um liquidificador, motivo pelo qual o míssil foi apelidado de “faca ginsu voadora”.
Tal resposta americana claramente chamou a atenção dos iranianos, e os representantes do Irã têm observado um cessar-fogo não declarado em terra desde então, o que certamente ajudou a me tranquilizar enquanto sobrevoamos áreas sem lei do leste da Síria a bordo de helicópteros e um C-130, certa vez passando mais perto do que eu gostaria da base russo-iraniana na margem ocidental do Rio Eufrates.
Mas esse cessar-fogo informal não foi adotado pelos Houthis, que declararam que não vão parar de atirar contra navios internacionais, a marinha americana ou Israel até haver, no mínimo, um cessar-fogo em Gaza. No fim de semana passado, o cargueiro Rubymar, de Belize, atingido por um míssil balístico anti-naval no dia 18 de fevereiro pelos Houthis, tornou-se o primeiro navio a afundar totalmente no Estreito de Bab el-Mandeb como resultado do ataque de um míssil Houthi. Criou-se uma enorme bagunça ecológica por causa do combustível e do fertilizante transportados pela embarcação. Obrigado por essa, Houthis.
E isso nos leva ao terceiro aspecto perigoso dessa guerra clandestina. Em cada base que visitamos havia uma sala ultrassecreta à qual os jornalistas não tinham acesso, chamada de centro de integração de combate. Dentro, jovens soldados americanos (e marinheiros nas embarcações da marinha) olham fixamente para telas, tentando identificar a miríade de objetos voando em sua direção e decidir por meio de sua assinatura visual no radar se devem atacar, ignorar ou acompanhar, calculando que sua trajetória vai errar sem causar estrago. É importante manter a disciplina quando estamos disparando interceptores de US$ 200.000 contra drones iranianos de US$ 20.000, disse-me um oficial do Centcom.
Esses operadores costumam ter menos de 90 segundos para tomar uma decisão e ativar um interceptor de drones Coyote, capaz de detectar e destruir drones de ataque a curta distância, e de ser lançado de veículos terrestres, helicópteros ou embarcações.
Em outras palavras, todo dia traz a possibilidade de um evento de baixa probabilidade, mas grande consequência. E a primeira linha de defesa (e frequentemente a última) costuma ser um soldado ou marinheiro americano de 20 e poucos anos olhando para uma tela de computador, usando software para tentar decidir em segundos se é o caso de ativar medidas defensivas contra o que é disparado na sua direção.
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Em meio a tudo isso, devo acrescentar, visitamos também no nordeste da Síria o campo de detenção de Al Hol, no meio do nada, onde cerca de 43.000 pessoas, geralmente “noivas” do ISIS e seus filhos, são mantidas em barracas e alojamentos pré-fabricados sob a vigilância de guardas curdos, até que possam ser desprogramadas e devolvidas a seus países de origem. É bem estranho conversar com uma americana ou britânica que foi atraída para o culto do ISIS e saber que ela tem cinco ou seis filhos, de três ou quatro combatentes do ISIS diferentes, todos mortos pela coalizão liderada pelos EUA. A julgar pelo número de pedras arremessadas contra o nosso comboio blindado, o processo de desprogramação ainda tem chão pela frente.
Levando em consideração todos os riscos e feridas abertas aqui, vale perguntar: por que ficar? Primeiro, quero descrever uma cena antes de oferecer uma resposta.
A cena: a equipe do general Kurilla estava visitando a guarnição de Tanf, uma pequena base de suporte logístico dentro da Síria, perto da fronteira com o Iraque e a Jordânia. Kurilla aproveitou a oportunidade para apresentar uma promoção no campo de batalha, elevando a tenente um subtenente de um pelotão médico lotado ali. Estávamos em um beco, e ao nosso redor havia apenas tons de marrom: o deserto, as construções, tudo.
Primeiro, Kurilla pediu que alguém lhe trouxesse uma bandeira americana e, minutos mais tarde, dois membros do pelotão voltaram trazendo uma pequena bandeira, erguendo-a na altura dos ombros, emoldurando Kurilla e o jovem oficial sendo promovido.
“Nosso exército é único em todo o mundo”, disse Kurilla ao jovem. “Não prestamos juramento a uma pessoa ou a um rei, e sim a uma ideia, encarnada na Constituição e ligada à nossa democracia, segundo a qual todos os homens e mulheres são criados iguais. Prestamos um juramento de defesa dessa ideia.”
Kurilla então recebeu o juramento que todo soldado americano (este era um voluntário que foi seguindo carreira militar) repete ao subir de patente. Em seguida, o novo tenente vestiu um quepe com a nova insígnia e agradeceu a cada membro do pelotão.
Houve algo na cena que me chamou a atenção: os dois soldados segurando a bandeira listrada e estrelada que trazia a única cor naquela vasta planície marrom, e o juramento de lealdade a uma ideia, não a um rei, abafado pelas paredes de concreto nesta base remota em uma região que, em geral, só conheceu o oposto disso.
Durante o pós-guerra-fria, do início dos anos 1990 até a década de 2010, pensei que seria realmente possível trazer mais pluralismo e política consensual a esta região do mundo, graças aos acordos de Oslo, o tratado de paz entre Jordânia e Israel, os levantes da Primavera Árabe e a maior integração resultante da globalização.
Mas isso não aconteceu. Em vez da difusão da democracia, esta região vivenciou uma metástase de desordem e estados fracassados. Ao mesmo tempo, a grande linha divisória do mundo deixou de ser entre democracia e autocracia, e tornou-se entre ordem e desordem.
O melhor argumento para a permanência de forças americanas no leste da Síria, no Iraque e no Mar Vermelho é precisamente impedir que a desordem “de lá” — por parte do ISIS, de estados fracassados como a Síria e do desgaste de estados-nações por parte das milícias representantes do Irã — chegue “aqui”.
Não é uma missão bonita ou heroica — passar o dia inteiro usando proteção corporal em um ambiente árido e hostil, tendo como um dos poucos prazeres da vida comer enroladinhos de salsicha à vontade — mas provavelmente vale a pena. Dito isso, não devemos nos iludir em relação aos riscos, porque a guerra clandestina que estamos travando pode sair berrando das sombras a qualquer momento.
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