THE WASHINGTON POST - Forças do Taleban estão há meses empreendendo um conflito obscuro — e ocasional — contra combatentes opositores com base no Vale Panjshir. A poucas horas de carro rumo ao norte de Cabul, a província é um antigo reduto antitaleban e segue sendo o único bolsão significativo de resistência contra o grupo desde a queda de Cabul, em agosto.
O Washington Post realizou uma rara visita a montanhas e vilarejos onde os combates transcorrem, registrando um vislumbre de um conflito que o Taleban tenta esconder como pode.
Autoridades do Taleban negam categoricamente que ocorra qualquer violência na região, mesmo que milhares de seus combatentes sejam vistos por todo o vale. “Está tudo bem por aqui”, insistiu Nasrullah Malikzada, o diretor regional de informação do Taleban no Panjshir. “Não há nenhum tipo de combate.”
Mas moradores afirmam que ataques contra posições do Taleban ocorrem regularmente, que dezenas de pessoas foram mortas e que civis foram aprisionados indiscriminadamente. Esses moradores falaram sob condição de anonimato ou se identificaram apenas por um nome, por medo de represálias.
Os combates no Panjshir dificilmente representarão alguma ameaça iminente para o controle do Taleban sobre a província ou sobre o país, mas a violenta resistência por aqui mancha narrativas cruciais que alimentam a busca por legitimidade do grupo: de que o controle do Taleban trouxe paz ao Afeganistão e seus combatentes são capazes de manter a segurança no país.
Quando o Taleban ocupou Cabul no verão de 2021 e o Exército afegão derreteu, um pequeno contingente de combatentes no Panjshir resistiu por semanas. O Taleban anunciou ter tomado controle total do vale em setembro, mas porta-vozes do Front de Resistência Nacional afirmam que seu movimento jamais se rendeu.
O Afeganistão sob o Taleban
O Panjshir tem um longo histórico de resistência: foi uma província que os combatentes do Taleban nunca conseguiram pacificar depois que tomaram Cabul pela primeira vez, em 1996. O atual movimento antitaleban é liderado por Ahmad Massoud — filho do lendário líder da resistência Ahmed Shah Massoud, que foi assassinado pela Al-Qaeda dois dias antes dos ataques de 11 de setembro de 2001 contra os Estados Unidos — e pelo ex-vice-presidente afegão Amrullah Saleh. Ambos fugiram do Afeganistão no fim de 2021, mas continuam a dirigir operações do exílio, e acredita-se que eles comandam milhares de combatentes.
Um comandante de aproximadamente 100 combatentes no Panjshir afirmou que a oposição se equipa principalmente com armas transportadas para o Afeganistão através das fronteiras do país com o Uzbequistão e o Tajiquistão. Mas as munições, incluindo de armamentos pesados, como lançadores de foguetes, não são suficientes.
“Temos apoio de vários países, mas precisamos de mais”, afirmou ele, falando sob a condição de anonimato por razões de segurança.
Líderes do Taleban têm buscado abafar as notícias do Panjshir restringindo o acesso ao vale e negando absolutamente a existência de qualquer distúrbio quando confrontados com relatos de combates.
“É claro que ninguém sabe o que está acontecendo aqui”, afirmou ao Post um comerciante de 62 anos chamado Gulzar, na recente visita da reportagem ao vale. “Ninguém tem autorização para entrar aqui; nem sei como vocês conseguiram entrar aqui”, afirmou ele, observando atentamente o movimento de picapes e blindados circulando pela colina repletos de combatentes do Taleban.
Fuga para as montanhas
O Post obteve autorização de acesso ao vale de líderes do Taleban em Cabul e no Panjshir, que afirmaram desejar que meios de comunicação registrem a segurança e a estabilidade na região. Depois de uma visita guiada à capital da província, a equipe do Post foi autorizada a viajar desacompanhada para vilarejos e entrevistar civis. Essas interações ofereceram um breve olhar sobre uma luta opaca.
Gulzar afirmou que a onda mais recente de combates atingiu seu vilarejo. “Eu estava aqui na minha loja quando escutei os tiros”, afirmou ele, apontando para o pomar que separa seu comércio da residência de sua família, na colina oposta. Ele reuniu seus parentes imediatamente, e todos fugiram para as montanhas.
Os combates duraram mais de 24 horas, antes que os combatentes antitaleban ficassem sem munição e se rendessem. Gulzar afirmou ter visto dezenas de homens entregarem suas armas antes de serem levados. Outros dois moradores do vilarejo confirmaram o relato.
Malikzada, a autoridade o Ministério da Informação do Taleban, qualificou o combate que Gulzar descreveu como “propaganda de forças estrangeiras”, afirmando que o relato é “completamente falso”. Ele também negou que o acesso ao Panjshir seja restrito, apesar de admitir que recentemente impediu pelo menos um meio de imprensa internacional de visitar o vale, por considerar que a empresa de comunicação impedida publica repetidamente reportagens cheias de “mentiras”.
Sob o governo do Taleban, informações que contrariam a linha oficial têm sido cada vez mais difíceis de verificar. O alcance dos meios de imprensa no país encolheu, a sociedade civil sofre intimidação constante, e grupos de direitos humanos se desmantelaram ou operam sob severas limitações.
No Panjshir, narrativas unilaterais competem entre si. Enquanto o Taleban afirma que tudo está calmo, porta-vozes da resistência postam quase diariamente nas redes sociais afirmações de sua luta. Os moradores aprenderam a não acreditar em nada.
“Há muita propaganda (de ambos os lados) na guerra no Panjshir”, afirmou um agricultor, no vilarejo de Dara, que já integrou a força policial afegã.
O agricultor afirmou que vê com frequência cadáveres de combatentes do Taleban sendo transportados em carrocerias de picapes depois de batalhas, apesar de achar bastante exageradas as declarações da resistência afirmando que mais de 300 guerreiros do Taleban foram mortos no mês passado.
“A província é grande. As pessoas de um vilarejo não sabem necessariamente o que está acontecendo nos outros lugares diariamente”, afirmou Ali Maisam Nazary, chefe de relações exteriores da resistência. Nazary afirmou que as informações de seu grupo são fornecidas por comandantes em campo e informantes infiltrados no Taleban.
O agricultor acredita que ambos os lados estão jogando para baixo o número de mortes de civis. Ele contou que, após um combate recente, foi a velórios de 10 pessoas que morreram no fogo cruzado apenas em seu vilarejo. Depois de conversar com amigos e parentes que vivem em outras localidades no vale, ele estimou que o número de mortos apenas naquele dia pode ter sido quatro vezes maior.
Narrativas
Tanto o Taleban quanto o Front de Resistência Nacional afirmam que nenhum civil morreu nos combates recentes.
“Talvez duas ou três pessoas tenham morrido, (mas) provavelmente de frio ou por ter despencado de alguma encosta de montanha”, afirmou Malikzada, o ministro da informação do Taleban. “Ninguém foi morto em combates.”
Os combates se intensificaram desde o fim do mês sagrado do Ramadã, em maio, de acordo com moradores entrevistados pelo Post. A primavera (Hemisfério Norte) é uma época que costuma marcar o início da temporada de combates no Afeganistão, conforme o clima fica mais ameno no norte, facilitando o deslocamento de combatentes.
Os ataques têm ficado mais brutais à medida que o número de mortes aumenta em ambos os lados, segundo Tawhidi, um ancião tribal que falou sob condição de ser identificado apenas pelo sobrenome por temer represálias. Ele afirmou ter testemunhado combatentes do Taleban praticando execuções sumárias depois de sofrer baixas em um ataque e ouviu relatos similares de moradores de outras partes do vale.
Faramaraz, que trabalha em um bazar próximo ao vilarejo de Dara, afirmou que combatentes do Taleban abandonaram o cadáver de um combatente da oposição na beira de uma estrada principal, no fim de maio.
“Eles queriam que todo mundo visse”, afirmou ele. “E não permitiram que homens carregassem o corpo para o sepultamento; fizeram com que mulheres o levassem para o cemitério.”
Malikzada reconheceu que milhares de combatentes do Taleban foram enviados para a província, incluindo algumas unidades de elite do grupo. Suas forças podem ser vistas em todos os cantos do vale, e sofisticados equipamentos militares foram posicionados na paisagem, não fosse isso, idílica, entre pomares e rios.
Muhammad Battar, ex-comandante da Unidade Vermelha do Taleban em Laghman, é atualmente um dos mais graduados oficiais de forças especiais no Panjshir. Ele afirmou que coordena atividades com unidades similares ligadas ao Ministério da Defesa e que uma força do Taleban de reposta rápida está estacionada na capital provincial.
“A situação está completamente tranquila por aqui”, afirmou ele, sentado ao lado de um buquê de flores de plástico e uma dúzia de fuzis M-16, de fabricação americana. “Saímos em patrulha, mas não conduzimos nenhuma incursão. Nosso foco principal aqui é coibir crimes.”
Mais adiante na estrada, em frente à base de Battar, dezenas de comboios do Taleban recortavam a paisagem entrando e saindo do vale, enquanto o sol começava a se esconder. Mais além, pesados veículos blindados — Humvees e MRAPs — formavam postos de controle ao longo de estradas entre os vilarejos que, segundo os moradores, testemunharam a onda mais recente de combates.
“É importante que os estrangeiros confiem em nós”, afirmou Malikzada no fim da visita guiada. “Nós não mentimos para os meios de imprensa estrangeiros. A República Islâmica do Afeganistão já provou para o povo afegão que tudo o que dizemos é verdadeiro.”
Voltando-se para a reportagem do Post, ele acrescentou: “Não há motivo para você não confiar em nós”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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