Visto de um dos mais reluzentes restaurantes de Istambul, o Bósforo parece sublime. Este estabelecimento é o refúgio preferido de figurões, empresários, semicelebridades — e financiadores do Hamas. Um homem sobre o qual os Estados Unidos impuseram sanções por financiar o grupo islamista descreve seus vários cargos de direção. “Isso é ridículo”, afirma ele a respeito da acusação de Washington. Eventualmente, porém, ele reconhece: “Agora, se você está me perguntando o que os nossos funcionários fazem com seu próprio dinheiro, como eu poderia saber?”.
O Hamas tem três fontes de poder: sua força física dentro de Gaza, o alcance de suas ideias e seus rendimentos. Desde os ataques do Hamas em 7 de outubro, Israel matou mais de 12 mil palestinos em Gaza buscando aniquilar o grupo. Mas o objetivo declarado de Israel de destruir definitivamente o Hamas requer que sua base financeira também seja desmantelada.
Muito pouco fica em Gaza. Em vez disso, os recursos são depositados no exterior, em países amigáveis. Equipado com lavadoras de dinheiro, empresas mineradoras e muito mais, estima-se que o império financeiro do Hamas renda ao grupo mais de US$ 1 bilhão anualmente. Forjadas meticulosamente para contornar sanções do Ocidente, as finanças do Hamas podem estar fora do alcance de Israel e seus aliados.
Os rendimentos do Hamas pagam por todo tipo de coisa, de salários de professores a mísseis. Cerca de US$ 360 milhões (R$ 1,7 bilhão) por ano vêm de impostos sobre importação de itens trazidos a Gaza da Cisjordânia ou do Egito. Esta é a fonte de dinheiro mais fácil de Israel estrangular. Depois de se retirar da Faixa de Gaza, em 2005, os israelenses limitaram estritamente o movimento de mercadorias e pessoas através da fronteira. Agora, impedem a entrada até dos itens mais básicos, como combustíveis e alimentos.
Uma torrente muito maior de rendimentos, porém, vem do exterior. Segundo as autoridades israelenses, esse montante fica em torno de US$ 750 milhões (R$ 3,6 bilhões) ao ano, tornando-o a maior fonte de financiamento do atual estoque de armas e combustíveis do Hamas.
Parte do dinheiro vem de governos amigos, o maior deles é o Irã. Os EUA afirmam que os aiatolás fornecem US$ 100 milhões anualmente para grupos palestinos islamistas, principalmente em ajuda militar. A missão dos financiadores do Hamas é movimentar o dinheiro sem serem mordidos pelas sanções dos EUA. Somente no mês passado, as autoridades americanas impuseram três rodadas de restrições sobre indivíduos e empresas por financiar o Hamas.
Esquivar-se de sanções americanas requer alguma engenhosidade. Milhões de dólares fluem para o Hamas através de mercados cripto. “Você ficaria surpreso com quanto da atividade do mercado é revertido para (o Hamas)”, afirma Firuze Segzin, economista da Universidade Bilkent, na Turquia.
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O Departamento de Estado dos EUA afirma que o Hamas movimentou clandestinamente mais de US$ 20 milhões (R$ 97 milhões) por meio da casa de câmbio Redin, localizada entre lojas turísticas nas profundezas do degradado bairro Fatih, em Istambul. A diplomacia americana também afirma que a Binance, o maior câmbio de criptoativos segundo volume de negociações, permite que seus usuários realizem transações com o Hamas.
Mas a maior parte do dinheiro do Hamas — pelo menos US$ 500 milhões (R$ 2,4 bilhões) ao ano, afirmam autoridades israelenses — vem de investimentos do grupo, alguns em empresas registradas em países de todo o Oriente Médio. Esses recursos são administrados pelo escritório de investimentos do Hamas, que emprega membros do grupo. Autoridades americanas afirmam que as empresas doam para entidades de caridade, que por sua vez direcionam os fundos para ao Hamas; autoridades turcas afirmam que proveitos são retirados certas vezes diretamente.
Desfazer esses fluxos de recursos é complicado para as agências reguladoras do Ocidente. Uma dessas empresas construiu o Afra Mall, o primeiro shopping center do Sudão, enquanto outra tem minas nas proximidades de Cartum, a capital sudanesa. Uma terceira construiu arranha-céus em Sharjah, nos Emirados Árabes Unidos (EAU). Muitas dessas empresas gabam-se de seus acordos comerciais, mas negam qualquer afiliação com o Hamas.
As torrentes de financiamento que ainda fluem para Gaza podem ser estancadas? Depende dos países que elas percorrem. Desde 1989, quando Israel prendeu a cúpula do Hamas em Gaza e na Cisjordânia, os banqueiros do grupo vivem no exterior. Ao longo do tempo, contudo, mudanças geopolíticas os forçaram a continuar se movendo. O Hamas abandonou seu primeiro hub financeiro, Amã, a capital da Jordânia, sob pressão dos EUA.
Hoje, ainda que os políticos do Hamas prefiram Doha, a capital do Catar, e suas empresas se espalhem entre Argélia, Sudão e EAU, seus financiadores vivem em Istambul. Zaher Jabarin, acusado por Israel de administrar as finanças do Hamas (o que ele nega), vive na cidade turca, assim como vários outros indivíduos sob sanções dos EUA por financiar a organização. Ávido para obter influência regional apoiando a causa palestina, o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, lhes oferece abrigo. Israel afirma que o governo turco distribui passaportes (o que Ancara nega) e permite ao Hamas manter um escritório na Turquia.
Enquanto isso, o sistema bancário turco ajuda o Hamas a contornar sanções dos EUA conduzindo complexas transações em todo o mundo. O florescente e pouco regulado mercado cripto facilita ainda mais as coisas. Muitos dos maiores bancos turcos, incluindo o Kuveyt Turk, foram acusados por Israel e EUA de guardar dinheiro do Hamas sabendo a quem pertencem os recursos.
Alguns sussurram que Erdogan aprova silenciosamente. Em 2021, o Grupo de Ação Financeira Internacional, uma agência de auditoria do G-7, colocou a Turquia na “lista cinza” de países que fazem pouco para congelar ativos de terroristas.
Ninguém se beneficia mais que os empresários do Hamas. A aprovação tácita do governo turco “abre portas e facilita as coisas nos negócios”, afirma um dos operadores financeiros do grupo. A Trend GYO, uma firma listada em Istambul que foi colocada sob sanções dos EUA por direcionar recursos para o Hamas, ganhou um contrato oficial para construir a Universidade do Comércio de Istambul. Empresas de construção, que figuram pesadamente no portfólio do Hamas, são capazes de tragar discretamente quantias enormes e receber grandes empréstimos. Tudo isso possibilita às autoridades turcas alegar que não estão enchendo os bolsos do Hamas diretamente.
Até aqui, o Hamas parece blindado financeiramente. Israel não conseguiu infligir muito dano sobre suas rendas ou economias; os bancos turcos não têm colaborado. As numerosas sanções dos EUA são menos eficazes quando seus alvos conseguem guardar dinheiro fora de seu sistema bancário. E o Hamas camufla bem suas empresas. “Todas vez que achamos que encontramos algum peixe grande, elas mudam de nome”, queixa-se uma ex-autoridade do Departamento do Tesouro.
Na verdade, o mais provável é que as finanças do Hamas melhorem. Conforme Israel intensificar seus ataques contra Gaza, países com populações palestinas podem facilitar ainda mais as vidas dos banqueiros do Hamas. Por meses, circularam rumores de que alguns servidores civis do ministério da Economia de Erdogan coordenam atividades com o escritório financeiro do Hamas.
Para Israel, o prospecto de um Hamas mais rico apesar da guerra seria um revés amargo. Com sua riqueza e suas raízes financeiras intactas, o Hamas — ou uma organização similar — poderá ressurgir e voltar a florescer da destruição. Enquanto os cidadãos de Gaza foram mergulhados na tragédia, o dinheiro do Hamas fica guardado em segurança no exterior — e seus financiadores podem comer lagosta de frente para o Bósforo. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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