Por que a direita odeia os EUA? Leia a coluna de Paul Krugman

Direita norte-americana acredita que os EUA estão em declínio, mas a história recente do país demonstra o contrário

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Por Paul Krugman (The New York Times)
Atualização:

A democracia dos Estados Unidos está claramente em crise. É completamente possível que em menos de dois anos dissidentes encarem o poder de um governo com tendências autoritárias; se isso lhe parece hipérbole, você não está prestando atenção o suficiente.

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Mas além do campo político os EUA também estão em crise? As fundações da sociedade estão realmente erodindo? Muitos na direita aparentemente pensam que sim. Um ensaio recente de Damon Linker publicado no Times perfilou intelectuais conservadores cujos escritos, argumentou ele, ajudam a explicar de onde vem a direita trumpista. O que me chocou, lendo parte de suas obras, é o retrato pavoroso que eles pintam do estado na nossa nação.

Por exemplo, em “Regime Change” (Mudança de regime), Patrick Deneen descreve os EUA da seguinte maneira: “Cidades grandes ou pequenas anteriormente lindas em todo o país sucumbiram a um flagelo pavoroso. Taxas de natalidade em queda, números crescentes de ‘mortes por desespero’, viciados em fármacos por todos os lados e distrações eletrônicas colaboram para a prevalência de um enfado opaco e um desespero psíquico”. E ele atribui isso tudo aos efeitos malignos do progressismo.

Uma bandeira americana é hasteada em um comício no Aeroporto Regional de Valdosta, em Valdosta, Geórgia, em 5 de dezembro de 2020.  Foto: Damon Winter / NYT

Quando leio coisas assim, eu sempre me pergunto se esses indivíduos saem de casa e olham em volta. Eles têm alguma noção, a partir de memórias pessoais ou leituras, de como os EUA eram 30 ou 50 anos atrás?

É verdade que a sociedade americana mudou imensamente ao longo de pouco mais de meio século. E não apenas de maneiras positivas: a desigualdade disparou, e as mortes por desespero são um fenômeno real. (Discorrerei mais sobre isso depois.) Mas muitos críticos de direita em relação aos EUA parecem hoje fundamentados não apenas em fantasias distópicas, mas em fantasias distópicas de gerações passadas. Parece que para uma parte da mentalidade conservadora o tempo parou em 1975.

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Comecemos com essas cidades degradadas. Eu tenho idade suficiente para me lembrar que nos anos 70 e 80 a Times Square era reduto de tráfico de drogas, prostituição e criminalidade. Hoje em dia a praça ficou Disneylândia demais para o meu gosto, mas a transformação é inacreditável.

OK, é uma visão meio centrada na Big Apple, e nem todas as cidades americanas foram tão bem quanto Nova York (apesar de ser notável como muitos na direita insistem em acreditar que um dos lugares mais seguros nos EUA é um inferno urbano). Chicago, por exemplo, foi muito pior.

Mas entre 1990 e a véspera da pandemia de covid-19 houve um amplo ressurgimento do espaço urbano nos EUA, em grande medida motivado pelo retorno à vida urbana de um número significativo de americanos abastados que valorizam cada vez mais as comodidades que as cidades americanas podem oferecer e se preocupam cada vez menos com crimes violentos, cuja ocorrência despencou depois de 1990.

É verdade que parte da queda nos índices de criminalidade reverteu-se durante a pandemia, mas os números parecem ter voltado a diminuir. E os americanos estão voltando para os centros urbanos: o trabalho remoto reduziu o movimento no centro durante a semana, mas o número de visitantes nos fins de semana voltou aos níveis pré-pandêmicos.

Isso não me parece nada pavoroso.

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E o que dizer da vida em família? De fato, menos americanos casam-se hoje do que no passado. O que você pode não saber é que, desde mais ou menos 1980, houve um grande declínio no número de divórcios. A explicação mais provável, de acordo com os economistas Betsey Stevenson e Justin Wolfers, é que mais oportunidades de emprego para as mulheres ocasionaram um aumento momentâneo no número de divórcios à medida que elas desfizeram casamentos infelizes, e os divórcios diminuíram conforme os casamentos se ajustaram às novas realidades sociais. Eu cito isso para dizer que, durante os “bons e velhos tempos”, havia muitos casamentos infelizes, e parte disso ficou no passado.

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Ah, e quando falamos sobre taxas de natalidade em queda, nós devemos notar que um fator significativo para isso tem sido um enorme declínio em gestações de adolescentes, especialmente entre jovens de 15 a 17 anos. Será um indicador de degradação moral?

Mas e essas mortes por desespero? Elas são reais e em grande medida denunciam que algo vai mal na nossa sociedade. Mas ainda que ocorram em toda parte, as mortes decorrentes de abuso de drogas e álcool e suicídios têm ocorrido desproporcionalmente não em cidades grandes e progressistas, mas em regiões rurais abandonadas e isoladas pelas forças econômicas que provocaram a migração da renda e do emprego para áreas metropolitanas relativamente mais escolarizadas. Se existe um “desespero psíquico” motivando vício em substâncias, esse desespero parece ocasionado pela incapacidade de conseguir trabalho — não pelo declínio dos valores tradicionais.

Uma mudança social nunca é só boa. Eu observo como os EUA mudaram ao longo da minha vida adulta e vejo algumas coisas que não gosto, especialmente o retorno à desigualdade econômica extrema. Mas também vejo uma sociedade que oferece muito mais liberdade individual especialmente para mulheres e minorias e também para o restante de nós.

Nem todos consideram essa mudança positiva. Na verdade, alguns na direita claramente odeiam os EUA em que nós vivemos realmente: uma nação complexa e diversa; não a nação mais simples e pura de suas imaginações.

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E se você preferir uma sociedade com relações sociais mais tradicionais, mais gente praticando formas tradicionais de religião e coisas assim, é seu direito. Mas não alegue falsamente que a sociedade está colapsando porque ela não corresponde às suas preferências, nem culpe o progressismo por todo e qualquer problema social. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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