Já há algum tempo, quando se aventava a possibilidade de uma invasão da Ucrânia pela Rússia, a expectativa era de que ela se desenrolasse como uma espécie de guerra pós-moderna, definida por armas do século 21 —manipulação da mídia, desinformação para confundir os frontes, ataques cibernéticos, operações de bandeira falsa e combatentes não identificados.
Esses elementos até têm destaque no conflito. Mas são as dinâmicas tradicionais do século 20 que têm dominado: mudanças nas linhas de batalha de tanques e tropas, ataques urbanos, contendas por supremacia aérea e por rotas de abastecimento, mobilização em massa de tropas e produção de armas.
Os contornos da guerra, iniciada há quase um ano, não se assemelham tanto aos de qualquer outra futura, mas sim aos de certo tipo de conflito de décadas passadas —em que uma nação não conquista totalmente a outra.
Guerras assim se tornaram cada vez mais raras depois da 2ª Guerra, um período em geral associado a guerras civis, insurgências e invasões americanas transformadas em ocupações. Mas continuaram: entre Israel e Estados árabes, Irã e Iraque, Armênia e Azerbaijão, Índia e Paquistão, Etiópia e Eritreia. São eles que historiadores e analistas militares tendem a citar para traçar paralelos com a Guerra da Ucrânia.
“Temos grandes semelhanças com a Guerra da Coreia, por exemplo: grandes batalhas convencionais, bombardeio de infraestrutura”, diz Serguei Radtchenko, historiador da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos.
Cada guerra é única. Mas certas tendências desse subconjunto de conflitos podem ajudar a esclarecer o que impulsiona os combates semana a semana, o que tende a determinar uma vitória ou um fracasso, e como tudo costuma terminar —ou não.
Guerra na Ucrânia
Atritos modernos
“Muitas guerras convencionais se resumem ao atrito”, disse recentemente o analista Michael Kofman no podcast War on the Rocks. “O lado mais capaz de reconstruir suas estruturas ao longo do tempo é o que consegue sustentar a guerra e, em última instância, vencer.”
O conflito entre Rússia e Ucrânia se encaixa nesse modelo, o que ajuda a explicar muitas de suas reviravoltas.
Para dar um exemplo: a capacidade de cada lado de conquistar e manter territórios é determinada em grande parte por sua habilidade de pôr em campo tanques e outros veículos pesados de forma mais consistente do que seu rival. Como o poder aéreo é eficaz para destruir esses veículos, a taxa de atrito no solo é parcialmente determinada por quem controla os céus.
O argumento tem base histórica. Analistas argumentam que o Irã só encerrou sua guerra de uma década com o Iraque, nos anos 1980, quando finalmente conquistou o domínio aéreo.
Nesse sentido, o desenrolar da Guerra da Ucrânia seria em grande parte determinado pela detenção ou não, por parte da Ucrânia, de armamentos antiaéreos o suficiente para deter o envio de aeronaves pela Rússia. Essa também é uma questão de atrito —embora seja tão econômica e diplomática quanto militar.
Isso ainda ajuda a explicar por que a Ucrânia, cuja produção de armamentos mal conseguia manter o ritmo mesmo antes de a Rússia começar a bombardear suas fábricas, empenhou-se tanto em conseguir ajuda militar ocidental; por que os governos ocidentais centraram tantos esforços para atingir a economia russa; e por que as forças russas lançaram tantos ataques contra a infraestrutura civil ucraniana —o que tanto degrada a indústria e o funcionamento da rede elétrica, quanto obriga o país invadido a realocar defesas aéreas das linhas de frente para cidades distantes do campo de batalha.
Todas essas são, de alguma maneira, frentes de uma guerra de atrito. E têm paralelos com conflitos do mesmo tipo —na Guerra da Coreia, por exemplo, vários dos ataques aéreos liderados pelos EUA contra cidades norte-coreanas foram mais devastadores do que os da Rússia à Ucrânia.
Uma lição é que, à medida que cada lado fica desesperado para se equiparar ao outro, ele se esforça cada vez mais para obter apoio internacional.
Quando o favorecido é o agressor, isso pode prolongar a guerra —foi o caso da tentativa do Iraque de invadir o Irã, que teve apoio dos EUA e da Arábia Saudita. Também pode ajudar a decidir o resultado da peleja, como nos conflitos derivados da dissolução da Iugoslávia. Ou, em última instância, levar a uma remodelagem da geopolítica de forma mais ampla: as alianças estabelecidas na Guerra da Coreia, em que o Norte ganhou o apoio soviético e chinês contra o Sul apoiado pelos EUA, seguem em vigor 70 anos depois.
Guerra de muitas décadas
“A Guerra do Yom Kippur vem à mente”, diz Radtchenko sobre a invasão russa, referindo-se ao conflito ocorrido no Oriente Médio em 1973.
Na época, a coalizão árabe que atacou Israel buscou expulsar o inimigo dos territórios que ele havia conquistado em combates anteriores e restabelecer o domínio regional —assim como Moscou está tentando puxar a Ucrânia de volta para a sua órbita e, de forma mais ampla, reconstituir parte do seu poder da era soviética na Europa.
No discurso em que anunciou a invasão, Vladimir Putin chegou a descrevê-la como uma tentativa de reverter a independência da Ucrânia, que chamou de um “erro histórico” em meio ao colapso da União Soviética 30 anos antes.
Isso também tem paralelos com as repetidas guerras surgidas a partir da declaração de independência de Israel em 1948, em um território que os Estados árabes consideravam ser da Palestina por direito. A mais recente ocorreu em 2006, ou seja, a área está em conflito há 58 anos. Vários desses países só formalizaram a paz com Israel nos últimos anos, e com outros as tensões permanecem em fogo baixo.
Esse padrão se mantém em muitos conflitos desde a 2ª Guerra. Embora combates diretos possam ser pouco frequentes, com o que Radtchenko chama de “fases ativas” durando só alguns meses, os períodos de calmaria normalmente exigem um envolvimento internacional profundo para serem mantidos. As tropas americanas estão aquarteladas na Coreia do Sul há mais de 70 anos, por exemplo.
É impossível prever se este será o futuro de Rússia e Ucrânia —embora ele talvez já seja seu estado atual. Os sete anos anteriores à invasão foram marcados por combates menores, com forte diplomacia ocidental e apoio à Ucrânia com o objetivo de evitar um embate maior.
Esse padrão mostra que um lado raramente derrota o outro completamente, em especial com Estados estrangeiros prontos para intervir. E oferece outra lição: a mudança política raramente fornece o tipo de avanço que observadores esperam que um dia leve Moscou a recuar. A invasão soviética do Afeganistão, que durou uma década, só se aprofundou com a ascensão do líder reformista Mikhail Gorbatchov.
Novas guerras, velhos padrões
O fato de a Guerra da Ucrânia parecer se encaixar em um padrão antigo em vez de apontar para uma nova direção pode oferecer ensinamentos mais gerais. “Armas estratégicas não substituíram e não substituirão Exércitos”, escreveu a analista canadense Stephanie Carvin em um ensaio que circulou entre especialistas.
Só forças convencionais podem tomar e manter territórios, formando deste modo a unidade central da guerra. Novas tecnologias, como drones ou comunicações via satélite, não alteraram essa dinâmica —nem novos métodos como ataques cibernéticos ou manipulação de mídia. “Não há dúvida de que as formas de travar guerras evoluíram desde a época de Clausewitz”, diz Radtchenko, referindo-se ao general prussiano do século 18 a quem se atribui a teoria militar moderna.
Mas, muitas e muitas vezes, o que a princípio “poderia ser chamado de uma revolução militar na verdade representa mudanças consideravelmente lentas”, completa o historiador.
Da mesma forma, Carvin escreveu que “armas podem ajudar a levar a um cessar-fogo, mas não a estabelecer uma paz duradoura”. Apesar das muitas tentativas de grandes e pequenas potências militares de desenvolver métodos bélicos suficientemente eficazes para impor seus objetivos políticos a seus adversários, nenhuma encontrou uma forma de contornar o árduo trabalho de negociar uma paz aceitável para ambos os lados.
Uma lição dos últimos 80 anos de guerras talvez seja que, se os Estados forem incapazes de chegar a um acordo —o que talvez seja o caso da Rússia em relação à Ucrânia, uma vez que ela considera intolerável a própria independência dos ucranianos—, mesmo lutar até a exaustão mútua pode não trazer a paz.
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