O historiador israelense Martin van Creveld chamava os Exércitos de “cidades ambulantes”. Mantendo centenas de milhares de homens armados com os tanques de seus veículos cheios, bem alimentados e equipados é um esforço hercúleo. Mandá-los para a guerra sem considerar esses elementos pode acabar muito mal. A invasão russa à Ucrânia, iniciada em fevereiro de 2022, constitui um caso didático.
Nos primeiros dias da guerra, as tropas da Rússia rumaram para o sul a partir de Belarus com alimentos, combustível e munições insuficientes. Os comboios militares entupiram as estradas para Kiev — formando um notável congestionamento de 60 quilômetros ao norte da capital. Drones ucranianos, forças especiais e fogo de artilharia assolaram os invasores em sua morosa movimentação. Caminhões de combustível e outros veículos de logística sem blindagem foram alvos especialmente saborosos. Numa batalha ao sul de Chernihiv, afirma um general, “Eles pensaram que tinham nos cercado (…) e nós simplesmente cortamos a logística deles e pronto”, a unidade russa acabou destruída por fogo de artilharia.
Trapalhadas desse tipo revelam problemas mais profundos. Todos os Exércitos modernos usam duas estratégias de logística, explica Ronald Ti, especialista em logística militar da King’s College London: logísticas “de empuxo”, que envolvem respostas flexíveis ao consumo e aos sinais de demanda das unidades em campo, e logísticas “de pressão”, nas quais munições e equipamentos são acionados com base em taxas predeterminadas de uso.
A Rússia adota a segunda, afirma Ti, principalmente em razão do legado soviético de comando hierárquico e de uma ausência de gerenciamento moderno de cadeias de fornecimento. Isso funciona bem se o consumo é estável — o que raramente acontece, conforme evidenciaram os primeiros dias da guerra na Ucrânia.
Os Exércitos ocidentais tendem a ter taxas “de cabo a rabo” altas, com até dez operadores de apoio para cada soldado em combate. As forças russas operam com uma razão menor. Como a União Soviética no passado, a Rússia opta por transportar combustível por tubulações e outros materiais por ferrovias. Isso pode ser altamente eficiente: o Exército russo conseguiu transportar e disparar um total de 700 mil toneladas de projéteis e foguetes nos primeiros cinco meses da guerra.
Mas essa estratégia amarra o Exército a terminais ferroviários e grandes depósitos em posições próximos — o que acabou constituindo um problema para os russos. Na primavera de 2022, o fogo de artilharia russo estava consumindo o Exército ucraniano no Donbas.
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As armas russas superavam as ucranianas a uma razão de 3 para 1. Isso mudou quando a Ucrânia recebeu lançadores himars americanos e sistemas europeus capazes de disparar com precisão foguetes com mais de 70 quilômetros de alcance. Subitamente, os ucranianos conseguiram atingir depósitos de combustível e munições da Rússia mais profundamente em suas fileiras. Muitas instalações estavam erguidas desde 2014.
As explosões dos depósitos que se seguiram exauriram as armas russas de munições. E forçaram a Rússia a mudar: em vez de depósitos grandes e centralizados, as forças russas passaram a usar instalações menores e dispersas, mais longe do front. As distâncias maiores para transportar os pesados projéteis, além da escassez de caminhões, pallets e operadores de logística jogaram cascalho nas engrenagens da máquina militar russa.
Autoridades ucranianas afirmam que isso pavimentou o caminho para as ofensivas bem-sucedidas em Kherson e Kharkiv. Nico Lange, ex-autoridade de defesa da Alemanha, afirma que um soldado ucraniano atribuiu esse sucesso ao entendimento a respeito das fraquezas logísticas da Rússia: “É basicamente parecido com combater nossos Exércitos de 10 a 15 anos atrás.”
A Ucrânia não é imune a problemas desse tipo. Muitos de seus depósitos de armas foram explodidos nos anos que antecederam a guerra em supostas sabotagens russas. Outras instalações foram atacadas desde então. O Exército ucraniano também depende de ferrovias. Mas suas linhas de abastecimento provaram-se mais confiáveis, ágeis e resilientes — auxiliadas pelo fato de os ucranianos combaterem em seu próprio território.
Lange aponta que a logística de base ferroviária da Ucrânia depende das indústrias domésticas de siderurgia, que fornecem prontamente estoques de componentes e ferramentas, além de uma capacidade de reparo veloz. “Provavelmente não é nenhum exagero declarar que nenhum Estado europeu da Otan hoje seria capaz de realizações logísticas militares como as da Ucrânia durante esta guerra”, conclui ele.
Fica a lição de que logística é algo importante demais para ficar a cargo dos generais. Cerca de 30 voos por dia aterrissam em Rzeszow, no leste da Polônia, levando ajuda militar para a Ucrânia, que é transportada posteriormente por terra até depósitos espalhados pelo país, onde unidades militares recolhem o equipamento para levar até as linhas de frente. Isso tem envolvido um esforço entre o Estado, o setor privado e a sociedade civil, afirma um ministro ucraniano próximo ao processo.
Cerca de 90% dos gastos são cobertos pelo setor privado, afirma ele, com empresas agrícolas, empresas de energia, postos de combustíveis e bancos dando financiamento e cedendo veículos. A colaboração próxima com a Polônia significa que a burocracia fronteiriça para a passagem dos carregamentos de armas leva poucos minutos — um grau de movimento militar transfronteiriço sem fricção que causaria inveja a muitos membros da Otan.
O problema é manter as armas funcionando depois que elas chegam. Steven Anderson, um general americano aposentado que coordenou logística no Iraque, afirma que a “taxa de prontidão operacional” do equipamento americano no país médio-oriental era de 95%. Qualquer índice menor que 90% faria um comandante ser retirado da função. Na Ucrânia, dados estimados sugerem que essa taxa está em 50%, afirma ele. “Metade do que nós demos para ele quebrou em algum momento, e eles estão lutando bravamente.”
Durante grande parte da guerra, peças de artilharia exauridas na Ucrânia têm sido mandadas para conserto no Leste Europeu. Desde o outono, a capacidade de reparo aumentou em Krivii Rih, uma cidade industrial próxima ao front sul. Mas sua capacidade é limitada. Anderson queixa-se em razão de menos de 4% da ajuda americana ter sido alocada para apoio e manutenção.
Entenda
Urgência por improviso
Resta improvisar. A urgência por peças de reposição é presente em todas as guerras. Durante a Guerra das Malvinas, o Reino Unido vasculhou museus de aviação do mundo inteiro atrás de sondas de reabastecimento para bombardeiros Vulcan.
O desafio ucraniano é extremo: Kiev opera provavelmente o arsenal de sistemas de artilharia e blindados mais diverso jamais reunido numa mesma força. Cada sistema requer tipos distintos de munição e peças de reposição, além de habilidades variadas para sua operação. E todos esses sistemas estão funcionando além da capacidade esperada por seus fabricantes. Kits de reparo destinados a usos moderados provaram-se completamente inadequados para o inferno do fogo de artilharia incessante.
Isso tem forçado a Ucrânia a descobrir novas formas de sustentar seu esforço de guerra. Voluntários ucranianos estão fabricando em impressoras 3D peças de reposição em localidades mais próximas ao front.
Descentralização é crucial para esta estratégia. As unidades com frequência vão atrás dos componentes de que precisam por conta própria em vez de solicitá-los ao comando geral de logística. “Eles simplesmente vão até a garagem”, afirmou uma fonte familiarizada com a cadeia de fornecimento clandestina, “e dizem: ‘Precisamos de tal peça, vocês conseguem fabricar?’.” Separadamente, a 18.ª Brigada Aerotransportada dos EUA está usando algoritmos para estimar a vida útil dos obuses ucranianos, em que momento os equipamentos precisarão de peças de reposição e quando mais munições devem ser enviadas para o front.
Os EUA acostumaram-se a sustentar guerras a milhares de quilômetros de distância, com poucas ameaças a navios, aeronaves e caminhões carregados de equipamentos a caminho de portos, aeroportos e depósitos. Esses dias acabaram. “Décadas de jogos de guerra, análises e evidências empíricas sugerem que atacar as redes logísticas (dos americanos) é a maneira mais eficaz de combater os EUA”, conclui em um artigo o ex-estrategista do Pentágono Chris Dougherty. Ataques chineses contra logística “paralisaram” as forças americanas em jogos de guerra, afirma ele.
Dougherty insiste que o Pentágono deve realocar financiamento de forças de combate para logística. Os Exércitos precisam posicionar mais estoques em pontos avançados e “viver da terra” adquirindo combustível, óleo lubrificante, alimentos e peças de reposição localmente. Os soldados devem combater por conta própria durante semanas com apoio mínimo, acrescenta ele. A logística teve por muito tempo um “status de coadjuvante”, afirma ele, apesar de seu “papel de protagonista” na história militar. A Ucrânia demonstra esse fenômeno novamente. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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