À medida que surgem novas evidências de atrocidades cometidas por terroristas do Hamas contra civis israelenses e que as Forças Armadas de Israel iniciam sua ofensiva em Gaza, surge um debate sobre os objetivos estratégicos de longo prazo do Hamas e o impacto que a dramática incursão de sábado terá sobre a política do Oriente Médio.
Embora as raízes do conflito tenham décadas de existência, até mesmo observadores experientes de política externa e estudiosos de relações internacionais ficaram surpresos com a extraordinária explosão de violência.
Após o Hamas matar mais de 1.200 israelenses, o governo do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu declarou guerra ao Hamas. As Nações Unidas também classificaram o conflito como guerra. Ao mesmo tempo, políticos israelenses e americanos, bem como outros líderes do mundo todo, caracterizaram o ataque do Hamas como terrorismo – um ataque de atores não estatais contra civis para inspirar medo.
A distinção semântica não é apenas acadêmica: com a carnificina despertando emoções no Oriente Médio e em outros lugares, novas questões sobre argumentos centenários estão concentrando a atenção no que os ataques a civis alcançam para os grupos militantes.
“Não há consenso sobre se o terrorismo funciona”, disse Max Abrahms, cientista político da Northeastern University, que realizou um dos maiores estudos até hoje sobre o impacto das táticas terroristas. Sua pesquisa concluiu que esses ataques raramente atingem os objetivos políticos do grupo. “Mas isso depende do que significa ‘funciona’”, disse Abrahms. “Se estivermos falando sobre a promoção do terror e do medo, por essa definição, a taxa de sucesso é de 100%. Mas coagir um governo a fazer concessões políticas? Muito menos.”
Também não está claro qual é a melhor maneira de combater o uso do terror por grupos extremistas. Alvejar civis é claramente ilegal de acordo com as regras de guerra, mas essas regras são estabelecidas pelos países para que eles se governem.
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O Hamas é, na melhor das hipóteses, um híbrido – um grupo militante que usa táticas terroristas e governa um território que não é um Estado-nação. Embora tenha vencido as eleições parlamentares em Gaza em 2006, tomou o poder da Autoridade Palestina em 2007 e não permitiu nenhuma votação desde então.
No entanto, quando o subsecretário geral das Nações Unidas para assuntos humanitários pediu ao Hamas, na terça-feira, que libertasse os reféns e conclamou Israel a suspender seu bloqueio de ajuda a Gaza, ele se dirigiu ao Hamas como se ele estivesse sujeito à lei internacional. “Minha mensagem para todos os lados é inequívoca: As leis da guerra devem ser respeitadas”, disse Martin Griffiths em um comunicado.
No entanto, os grupos militantes não estão sujeitos às normas do direito internacional, seja porque são superados em recursos, seja porque suas metas não são objetivos militares tradicionais, de acordo com acadêmicos que estudam as raízes e os impactos do terrorismo.
“Uma organização como o Hamas, que vem lutando há décadas e já participou de eleições, não está apenas expressando raiva”, disse Peter Krause, cientista político do Boston College que estuda a eficácia do terrorismo. “Eles tentaram boicotes, ataques, terrorismo e objetivos militares. Eles têm objetivos estratégicos, e o Hamas tem sido muito estratégico em seu uso da violência ao longo dos anos, inclusive em ocasiões em que se absteve de lançar foguetes por algum objetivo estratégico.”
As tropas de choque do Hamas – 1.500 das quais o governo israelense alega ter matado – não foram atrás de alvos militares no sábado, como o aeroporto internacional de Tel-Aviv, infraestrutura de internet, usinas de energia ou instalações governamentais e militares importantes. Em vez disso, disse Krause, o objetivo parecia ser provocar o medo e a indignação em Israel, forçar o governo a uma reação militar desproporcional e comprometer os esforços em andamento para normalizar as relações entre a Arábia Saudita e Israel.
“De forma alguma esse tumulto aumentará as chances de se conseguir um Estado palestino”, disse Abrahms. “Por outro lado, provocará Israel a tentar esmagar o Hamas, o que pode acabar fortalecendo o Hamas e aprofundando o impulso de vingança dos palestinos”.
A decisão de atacar civis e fazer reféns, por mais insensível que tenha sido, provavelmente foi planejada para levar Israel a retaliar com tanta força que o mundo se volte contra os israelenses, disse Krause. O Hamas também quer ser visto como o porta-estandarte da resistência palestina em todo o mundo árabe.
Embora alguns líderes tenham pedido a Israel que demonstre moderação em sua resposta aos ataques, há poucos precedentes para dar a outra face diante de um ataque a civis. O governo Biden praticamente deu luz verde a Israel para retaliar o Hamas, prometendo seu apoio público incondicional à guerra de Netanyahu.
“Uma pessoa não seria um ser humano se não visse um ataque terrorista como esse como algo que provoca uma resposta forte”, disse Krause.
Essa resposta pode fazer o jogo do Hamas. Como concluiu o professor de direito de Harvard, Alan Dershowitz, em seu livro de 2002, Why Terrorism Works (Por que o terrorismo funciona), as táticas terroristas geralmente resultam em ganhos de publicidade, liberdade para os companheiros presos e legitimidade para as causas dos terroristas.
A comunidade internacional há muito tempo responde ao terrorismo “recompensando e legitimando-o de forma consistente, em vez de puni-lo e condená-lo”, escreveu Dershowitz.
Na Europa, nas décadas de 1960 e 1970, algumas vozes da esquerda argumentaram que responder ao terror com violência apenas alimentaria a crença dos radicais de que o derramamento de sangue funciona. No entanto, a opinião pública muitas vezes influenciava esses governos a revidar com força, seja contra o grupo Baader-Meinhof da Alemanha ou o Exército Republicano Irlandês da Irlanda do Norte.
Outros países têm um histórico de responder ao terrorismo com represálias severas, como a longa história da Rússia de reprimir brutalmente movimentos separatistas e a repressão do Sri Lanka aos Tigres Tamil, cuja luta de décadas por um Estado independente foi pioneira em atentados suicidas e no uso de mulheres e crianças em combate.
Os ataques de 11 de setembro foram planejados para provocar nos Estados Unidos uma retaliação avassaladora, que o líder da al-Qaeda, Osama bin Laden, imaginou que faria voltar a simpatia do mundo para a causa islâmica. Washington respondeu com guerras no Iraque e no Afeganistão, que acabaram se mostrando altamente impopulares e minaram a posição americana em grande parte do mundo, mas o movimento de Bin Laden não obteve apoio significativo.
“É importante levar em consideração as emoções”, disse Krause, “mas um cálculo frio diria que só porque o outro lado quer que você contra-ataque, não significa que você não deva fazê-lo”.
Quase nunca um grupo terrorista consegue mudar a política atacando civis, disse Abrahms. “Muitas vezes, os grupos prejudicados têm a percepção errônea de que quanto mais radicalmente agirem, maior será a influência que terão sobre o governo contra o qual estão lutando”, disse ele.
O estudo de Abrahms sobre o terrorismo global sugere que, quando os ataques são realizados contra alvos militares, o país alvo às vezes faz concessões políticas.
“Nesse caso, Israel e o Hamas tinham regras do jogo: cada lado estava preparado para tolerar uma certa quantidade de violência. Mas agora, o Hamas violou completamente todas as regras”, disse Abrahms. “Isso mudou o jogo. A destruição do Hamas não era anteriormente o objetivo de Israel. Agora pode ser.”
O Hamas pode conseguir conquistar alguns de seus objetivos, disseram os especialistas em terrorismo, usando os ataques para aumentar o apoio dos palestinos em Gaza e na Cisjordânia. A invasão também pode ter o efeito de dissuadir os estados árabes de prosseguir com a normalização diplomática com Israel.
Enquanto isso, Israel agora terá que avaliar quanto progresso pode fazer em relação ao seu objetivo de enfraquecer o Hamas, ao mesmo tempo em que liberta os reféns e reconstrói um senso de dissuasão e segurança abalado.
“Não sei se eles conseguirão atingir todos esses objetivos”, disse Krause.
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