THE NEW YORK TIMES – Havia várias razões para pensar que o filme “Barbie” talvez tivesse dificuldades em encontrar público na China. É um filme americano lançado num momento em que os frequentadores das salas de cinema e as autorizações do governo às produções de Hollywood estão diminuindo. Foi amplamente descrito como feminista, enquanto os direitos das mulheres e representação política estão retrocedendo na China.
Mas o filme não só foi exibido no país – como tem se transformado em uma espécie de sucesso tardio, exatamente por causa de sua natureza incomum no cenário cinematográfico chinês.
“Não há muitos filmes sobre a independência das mulheres, ou que tenham algumas pinceladas de feminismo na China”, disse Mina Li, 36 anos, que recentemente foi sozinha assistir ao filme em Pequim depois de várias amigas recomendá-lo. “Por isso elas achavam que valia a pena vê-lo.”
Apesar da disponibilidade limitada – o filme, dirigido por Greta Gerwig, estava em apenas 2,4% das salas do país quando estreou –, em pouco tempo, “Barbie” passou a ser assunto de destaque nas redes sociais chinesas, chegando até mesmo a se tornar o tema mais buscado no Weibo, a versão chinesa do Twitter. A nota dele é 8,3 no site de avaliação de filmes Douban, mais alta do que a de qualquer outra produção live-action sendo exibida atualmente. Os cinemas correram para adicionar mais sessões, com o número delas quase quadruplicando na primeira semana.
Pequena febre de “Barbie”
Embora a expectativa pelo filme no país não chegue nem aos pés daquela nos Estados Unidos, onde o estoque de comes e bebes de alguns cinemas quase acabou, “Barbie” tem provocado sua própria minifebre em alguns círculos sociais chineses, com os espectadores postando fotos de si mesmos vestidos de rosa ou mostrando ingressos brilhantes como recordação.
Até quarta-feira, o filme tinha ganhado US$ 28 milhões na China – menos que o novo “Missão Impossível”, porém mais que o “Indiana Jones” mais recente. Os lucros das produções americanas vêm diminuindo de forma geral na China, em parte devido aos controles rigorosos em relação ao número de filmes estrangeiros autorizados a cada ano.
Mia Tan, universitária de Pequim, viu “Barbie” com duas amigas, vestindo trajes temáticos que incluíam uma saia cor de pêssego e blusas com detalhes em cor-de-rosa. Durante uma cena em que os bonecos Ken percebem que ser homem era sua única qualificação, ela brincou dizendo que os personagens lembravam alguns de seus colegas de faculdade.
“O filme é ótimo”, disse Mia. “Recorre a diálogos diretos e a um enredo exagerado para falar de uma realidade objetiva ao público. Sinceramente, acho que esta é a única maneira de fazer as mulheres perceberem em que tipo de ambiente estão e de fazer os homens perceberem o quanto são privilegiados.”
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A discussão sobre o empoderamento feminino que “Barbie” tem provocado é, de certa forma, um raro lampejo de esperança para as feministas chinesas. Nos últimos anos, as autoridades prenderam ativistas feministas, pressionaram as mulheres a adotar papéis tradicionais de gênero e rejeitaram processos de assédio sexual de destaque.
A mídia estatal sugeriu que o feminismo é parte de um complô ocidental para enfraquecer a China, e as empresas de mídia social bloqueiam insultos a homens, mas permitem comentários ofensivos a respeito de mulheres.
Alguns comentários nas redes sociais criticam “Barbie” por incitar o conflito entre sexos, e os espectadores têm compartilhado relatos de homens indo embora no meio do filme.
Ao mesmo tempo, a sensibilização do público para os direitos das mulheres vem crescendo. As discussões on-line sobre temas como violência contra a mulher aumentaram, apesar da censura. Embora muitos dos principais filmes da China nos últimos anos tenham sido filmes de guerra enaltecendo o país ou de ação, algumas produções dirigidas por mulheres, com temáticas como relações familiares complicadas, também conquistaram uma grande audiência.
Mudanças de expectativas
E o governo chinês tem demonstrado uma maior intenção de impedir as feministas de se organizarem e se reunirem, em vez de frear as discussões de igualdade de gênero bastante óbvias, disse Jia Tan, professora de Estudos Culturais da Universidade Chinesa de Hong Kong.
Até mesmo parte da imprensa estatal chinesa fez elogios comedidos sobre os temas do filme. Um dos veículos de comunicação disse que “Barbie” “encoraja a contemplação da situação e representação das mulheres”. Outro citou um crítico de cinema dizendo que era normal que o tema gênero provocasse discórdia, mas “Barbie”, na verdade, era sobre os perigos de se favorecer homens ou mulheres.
Em um sinal de como as expectativas das chinesas mudaram, algumas das resenhas on-line mais populares – e críticas – de “Barbie” são de mulheres dizendo que o filme não tinha ido longe o bastante. Algumas diziam que a expectativa delas era que um filme ocidental fosse mais perspicaz em relação aos direitos das mulheres do que um chinês, mas descobriram que ele ainda exaltava os padrões convencionais de beleza ou focava demais no Ken. Outras diziam terem se sentido obrigadas a dar ao filme uma nota maior do que ele merecia devido à expectativa de críticas feitas por homens.
Entenda melhor
Vicky Chan, 27 anos, trabalhadora do setor de tecnologia em Shenzhen, disse acreditar que as conversas dominantes sobre feminismo na China ainda estavam em seus estágios iniciais, concentrando-se nas diferenças superficiais entre homens e mulheres, em vez dos problemas estruturais. Segunda ela, no fim das contas, a crítica do filme ao patriarcado foi suave, afirmou – e provavelmente foi por isso que teve tamanha aprovação na China, disse Vicky. (Ela deu duas estrelas para o filme no Douban.)
“Barbie” e o feminismo na China
Alguma cautela persistente com o feminismo e suas implicações ficou evidente numa sessão recente de “Barbie” em Pequim, na qual vários espectadores – homens e mulheres – disseram a uma repórter terem visto o filme promover direitos iguais, não os direitos das mulheres. Os opositores do feminismo na China acusam o movimento de colocar as mulheres acima dos homens.
As legendas chinesas para “Barbie” traduziram “feminismo” como “nu xing zhu yi”, ou literalmente “mulherismo”, em vez de “nu quan zhu yi”, ou “direitos das mulheres”. Embora ambos costumem ser traduzidos como “feminismo”, o segundo é visto como mais politicamente carregado.
Wang Pengfei, universitário da província de Jiangsu, também fez essa distinção. Ele gostou tanto de “Barbie”, que queria levar a mãe para vê-lo, pois achava que ela iria apreciar o discurso central do filme a respeito dos padrões injustos impostos às mulheres.
No entanto, ele também disse ter ficado assustado com o que chamou de retórica feminista extrema, com as mulheres declarando não precisarem de homens. Wang gostou do filme porque ele não tinha ido tão longe quanto alguns outros filmes, afirmou.
“Se as mulheres chinesas vão realmente se tornar independentes, não será por causa de truques de cinema”, disse ele.
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