Opinião | Por que Benjamin Franklin não conseguiu anexar o Canadá e fazer dele a 14.ª colônia dos EUA?

Os canadenses não se animaram com os nobres objetivos dos colonos. Por que iriam querer se juntar agora?

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Por Madelaine Drohan (The Washington Post)

Por que os canadenses iriam querer se juntar a um país cujos líderes não acreditam mais em seus valores fundadores?

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Reli recentemente uma carta que o Congresso enviou aos canadenses, convidando-os a se juntar à emergente união americana. Além das ameaças veladas sobre o que aconteceria se os canadenses não aceitassem a oferta, bem como algumas críticas sobre seu status inferior, a missiva contém alguns elementos comoventes sobre o que os americanos defendiam e esperavam alcançar. Uso o pretérito porque a atual liderança política do país parece não apoiar esses ideais.

Para aqueles com a pulga atrás da orelha — carta? que carta? — ela foi escrita em 1774, quando canadenses e americanos eram colegas colonos britânicos. (Sim, alguns americanos estão de olho no Canadá há muito tempo.) A missiva foi enviada à Província de Quebec por delegados do Primeiro Congresso Continental, incluindo os Pais Fundadores George Washington, John Adams e John Jay. Na mensagem, os autores descreveram em termos lustrosos o país que buscavam construir e os valores que serviriam como sua fundação.

Eles pensavam — erroneamente, conforme sucedeu — que os canadenses daquela época, predominantemente francófonos e católicos, não tinham outra opção a não ser perceber que era do seu melhor interesse se juntar a um grupo de protestantes de língua inglesa em sua luta contra o governo britânico. (A Declaração de Independência ainda estava distante no horizonte.)

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Vale a pena ler a carta hoje porque os delegados expuseram elementos que, segundo consideravam, tornavam seu sistema de governo muito melhor do que o existente no Canadá governado pelos britânicos. Eles também listaram direitos que os franco-canadenses teriam enquanto “homens livres ingleses”. Não está claro se eles tinham ouvidos moucos ou pensavam honestamente que os franco-canadenses gostariam de considerar a si mesmos ingleses.

A linha de fronteira internacional entre o Canadá, à esquerda, e os Estados Unidos, à direita, é marcada por torres nas águas da Boundary Bay.  Foto: Lindsey Wasson/Associated Press

O primeiro desses direitos era que os americanos deveriam ter participação em seu governo porque eles escolheriam seus próprios representantes, aprovariam suas próprias leis e não seriam governados por “éditos de homens” que não controlassem. Os autores sustentavam claramente fortes sentimentos sobre esse ponto porque o defenderam de várias maneiras diferentes, citando os pensadores iluministas Beccaria e Montesquieu, e também o que eles qualificaram como histórias de muitas nações. “Todas essas histórias demonstram a verdade da simples posição de que viver sob a vontade de um só homem, ou grupo de homens, produz miséria para todos os homens.”

Em seguida, o grande direito que os colonos sentiam que os franco-canadenses não possuíam era de julgamento por júri, que em suas mentes garantia que os acusados de crimes receberiam seu dia de justiça no tribunal. Então eles abordaram a “liberdade da pessoa” — explicando que esse direito era protegido por uma providência chamada habeas corpus, que imediatamente faria com que qualquer restrição ilegal a indivíduos fosse removida e reparada.

A liberdade de imprensa foi o último grande direito que os autores da carta pensaram que os franco-canadenses admirariam. Eles disseram que a imprensa livre era importante porque promovia a verdade, a ciência, a moralidade e as artes em geral, mas também porque a comunicação rápida entre os comuns fazia com que “autoridades opressoras se acanhem ou intimidem com modos mais honrosos e justos de conduzir os assuntos”.

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Os autores se espelharam em Montesquieu para sustentar o que pensavam ser um argumento importante sobre a separação dos poderes. O sistema canadense, no qual o governador fazia as leis e selecionava o conselho legislativo e os juízes, prejudicava e insultava os canadenses, escreveram eles. “Quando o poder de fazer leis e o poder de executá-las estão unidos na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistrados não pode haver liberdade, porque pode surgir apreensão de que o mesmo monarca ou senado promulgue leis tirânicas para executá-las de maneira tirânica.”

Ainda citando Montesquieu — que tinha morrido quase 20 anos antes — os autores disseram que o filósofo francês sem dúvida teria dito aos canadenses para aproveitar a oportunidade de ser “conquistados pela liberdade”. Ele também teria dito que os canadenses eram “um povo pequeno em comparação àquele que, de braços abertos, os convida para a irmandade” e que era do interesse deles “ter o restante da América do Norte como seus amigos inalteráveis” em vez de “inimigos inveterados”.

Uma última parte da carta que vale a pena mencionar é a seção sobre religião. Ela foi redigida com o objetivo de acalmar qualquer medo que os católicos francófonos pudessem ter sobre se unir aos protestantes, em grande parte anglófonos, nas colônias americanas, dado que as guerras religiosas duraram séculos. Se os franco-canadenses se juntassem às colônias, afirmaram os autores calmamente, o resultado seria similar ao dos cantões suíços, onde os fiéis católicos e protestantes “viviam na mais alta concordância e paz”. O que poderia ter tido mais impacto se os delegados não tivessem aprovado também uma carta para os habitantes da Grã-Bretanha na qual o catolicismo foi descrito como “uma religião que inundou sua ilha em sangue e disseminou impiedade, intolerância, perseguições, assassinatos e rebeliões por todas as partes do mundo”. O clero franco-canadense garantiu que a segunda carta fosse amplamente distribuída para o seu rebanho.

À parte as manifestações sobre paz religiosa, os delegados pareciam sinceros em relação ao que consideravam as muitas atrações do sistema de governo que estavam construindo; que de fato serviu bem aos Estados Unidos por muitos anos.

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Mas hoje o presidente Donald Trump, seu gabinete e seu partido estão desmantelando as fundações estabelecidas há 250 anos. Há muitas razões pelas quais uma esmagadora maioria dos canadenses diz a pesquisadores que não quer ser americana. Por que eles se juntariam a um país liderado por políticos que estão pisoteando seus valores fundadores?

Imprensa livre? Trump ataca e menospreza os meios de comunicação americanos há anos. Quando classificou o fluxo de imigrantes para os EUA como uma “invasão”, ele abriu o caminho para desmantelar o direito de habeas corpus. Julgamento justo por júri? Condenado por 34 crimes, Trump chamou o veredicto de “vergonhoso”. A ruína da separação entre os Poderes é patente na falta de resistência no Congresso. E os canadenses assistem com horror enquanto “um só homem, ou grupo de homens” — Trump e sua camarilha — abre seu caminho brutalmente através de instituições e costumes federais.

Quando os canadenses franceses não responderam ao convite de 1774, o Congresso Continental autorizou uma invasão no ano seguinte. Cerca de 1,7 mil soldados do recém-formado Exército Continental atravessaram o Lago Champlain, tomando facilmente Montreal e Trois-Rivières, ao mesmo tempo que quase o mesmo contingente atravessou por terra na região que constitui hoje o norte do Maine. Os soldados se encontraram do lado de fora dos muros da Cidade de Quebec, o último bastião britânico no Canadá.

O que os americanos retrataram como uma guerra de libertação para livrar os canadenses da tirania britânica terminou com um desastre humilhante. Uma inteligência falha levou os americanos a acreditar que os franco-canadenses dariam boas-vindas à invasão. Alguns deram. Mas a maioria ficou de braços cruzados e observou os soldados americanos serem incapazes de tomar a Cidade de Quebec, em dezembro, e posteriormente fugirem para seu país quando reforços britânicos chegaram de navio, em maio.

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Funcionário arruma bandeiras do Canadá e Estados Unidos na frente de restaurante em Point Roberts, cidade americana na fronteira, ao sul de Vancouver.  Foto: Lindsey Wasson/Associated Press

Nem mesmo a intervenção de Benjamin Franklin, que viajou para Montreal em abril de 1776 para interceder junto aos franco-canadenses, ajudou. Conforme Jean Chretien, primeiro-ministro do Canadá de 1993 a 2003, disse a uma multidão vibrante em Ottawa, em 9 de março, Franklin ouviu um educado “Non, merci”.

Os canadenses não quiseram se tornar a 14.ª colônia em 1776 e — talvez por razões ainda melhores — não querem se tornar o 51.º Estado agora./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Opinião por Madelaine Drohan

Madelaine Drohan é pesquisadora-sênior da Escola de Pós-Graduação em Relações Públicas e Internacionais da Universidade de Ottawa e autora do livro “He Did Not Conquer: Benjamin Franklin’s Failure to Annex Canada” (Ele não conquistou: O fracasso de Benjamin Franklin em anexar o Canadá), a ser publicado proximamente

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