Opinião | Por que ditadores como Saddam Hussein deixam perplexos os presidentes americanos

Incentivos da concorrência política na democracia recompensam a demonização dos inimigos e valorizam pouco a tentativa de se refletir cuidadosamente sobre um tirano ou deixar de lado o senso comum a respeito de suas motivações

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Por Steve Coll

THE NEW YORK TIMES - Os Estados Unidos cometeram seu pior erro de política externa da era do pós-Guerra Fria quando invadiram o Iraque em 2003 para desarmar Saddam Hussein de suas supostas armas de destruição em massa. A guerra que se seguiu cobrou um preço altíssimo em recursos e vidas iraquianas e americanas, além de ter fortalecido o Irã, energizando conflitos regionais indiretos que enredaram Washington no Oriente Médio, como o governo Biden redescobriu, dolorosamente.

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Em um momento em que os EUA identificaram o gerenciamento das ditaduras na China e na Rússia como o mais importante desafio de segurança nacional do país, e em que o isolado e idiossincrático líder da Coreia do Norte possui armas nucleares e mísseis intercontinentais, o caso de Saddam proporciona um raro e bem documentado estudo da razão pela qual os ditadores frequentemente deixam perplexos os analistas e presidentes americanos.

Como seria possível ter evitado a invasão americana do Iraque? Boa parte da nossa investigação posterior teve como foco os dados de espionagem falsos e manipulados a respeito das armas de destruição em massa do Iraque, as escolhas do presidente George W. Bush, a maneira de vender a guerra e a cumplicidade da mídia. Outra questão central raramente é examinada: por que Saddam sacrificou seu longo reinado e, finalmente, a própria vida, ao criar a impressão de possuir armas perigosas que ele não possuía?

Saddam Hussein em reunião com o ministro argelino de Equipamentos e Gestão, Abderrahmane Belayat, no palácio presidencial em Bagdá, em 1998 Foto: INA FASSBENDER

É uma pergunta que podemos responder. Saddam registrou as conversas particulares de sua liderança com a mesma assiduidade de Richard Nixon. Ele deixou cerca de 2 mil horas de gravações em fitas, bem como um vasto arquivo de minutas de reuniões e registros presidenciais. O material documenta o raciocínio do líder iraquiano em momentos chave do seu longo conflito com Washington, incluindo sua reação privada ao 11 de setembro e aos planos do governo Bush de derrubá-lo. Esclarece também a complicada questão de por que ele não conseguiu convencer inspetores da ONU, diferentes agências de espionagem e muitas lideranças mundiais de que não possuía armas de destruição em massa.

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Nas gravações, enquanto comenta os assuntos globais (os colegas raramente ousam interrompê-lo), Saddam pode parecer surpreendentemente perspicaz e presciente. Em outubro de 2001, dias após Bush ter anunciado a guerra liderada pelos EUA contra a Al Qaeda e o Taleban, Saddam comentou com seu gabinete: “Se os EUA instalarem um novo governo em Cabul de acordo com seus desejos, acham que isso vai acabar com os problemas dos afegãos? Não. Isso só trará mais pretextos para o terrorismo, em vez de eliminá-lo”. Diante da hostilidade americana, ele se esquivou como pôde, motivado por dois objetivos acima de tudo: manter-se no poder e conquistar a glória no mundo árabe, preferivelmente atacando Israel.

Saddam tinha crenças profundamente racistas a respeito dos judeus e se iludia com elaboradas teorias da conspiração a respeito do poder americano e israelense no Oriente Médio. Ele acreditava que sucessivos presidentes americanos, influenciados pelo sionismo, conspiravam secretamente e continuamente com os aiatolás radicais do Irã para enfraquecer o Iraque. O caso da conspiração Irã-contra dos anos 1980, quando os EUA se uniram brevemente a Israel para vender armas ao regime do aiatolá Ruhollah Khomeini, consolidou as crenças do líder iraquiano pelos próximos anos. Não ocorreu a ele o fato de o episódio Irã-contra representar um ramo de incompetência desmiolada da política externa americana.

Os motivos que levaram ao fracasso de Saddam em esclarecer que ele não possuía armas de destruição em massa na esteira dos eventos que levaram à invasão de 2003 estão entrelaçados no seu trágico conflito de décadas contra Washington: sua colaboração furtiva e desconfiada com a CIA nos anos 1980; a Guerra do Golfo em 1990 e 1991; a campanha pelo desarmamento do Iraque, defendida pela ONU; e o confronto apoteótico após o 11 de setembro.

Pouco depois da Guerra do Golfo, ele ordenou secretamente a destruição de suas armas químicas e biológicas, como exigido por Washington e pelas Nações Unidas. Ele esperava que, com isso, o Iraque pudesse ser aprovado nas inspeções de desarmamento, mas ocultou o que tinha feito e mentiu repetidas vezes aos inspetores. Não revelou a verdade a seus próprios generais, temendo com isso se tornar alvo de ataques internos ou externos. A decisão de atender às exigências mas mentir a respeito disso diante dos inspetores da ONU era um desafio à lógica ocidental.

Soldados iraquianos passam por um monumento ao líder iraquiano Saddam Hussein durante uma tempestade de areia em Bagdá, na terça-feira, 25 de março de 2003 Foto: TYLER HICKS / NYT

Mas Saddam jamais se submeteria a uma humilhação pública, até por acreditar que isso não funcionaria. “Um dos erros que as pessoas cometem é pensar que, quando o inimigo está decidido a nos ferir, haveria alguma forma de reduzir o dano se agirmos de determinada forma”, disse ele a um colega. Na verdade, completou: “O dano não será menor”.

Saddam acreditava que a CIA era praticamente onisciente e, assim, especialmente depois do 11 de setembro, quando Bush o acusou de ocultar armas de destruição em massa, ele supôs que a agência já sabia que ele não tinha armas perigosas, e que as acusações seriam apenas o pretexto para uma invasão.

Uma CIA capaz de cometer erros analíticos da dimensão do seu equívoco a respeito das armas de destruição em massa do Iraque era algo que não fazia parte da visão de mundo dele.

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Ao pesquisar o conflito de Saddam com os EUA, eu processei o Pentágono e, com a ajuda do Reporters Committee for Freedom of the Press, obtive parte de seus arquivos e gravações, entre eles material nunca divulgado, que se revelou inestimável para meu livro, mas é lamentável que o acesso tenha sido tão difícil. É do interesse dos Estados Unidos que o arquivo completo fique disponível para pesquisadores, para que novas perspectivas a respeito da ditadura de Saddam possam informar o público americano e o seu governo.

Meu trabalho dizia respeito aos antecedentes da invasão de 2003, principalmente sob o ponto de vista do líder iraquiano. Mas foi impossível não pensar em como os responsáveis pelas decisões americanas poderiam ter produzido resultados melhores, e quais lições de seus fracassos seriam relevantes hoje. Saddam não foi o primeiro assassino de massas sobre o qual escrevi de forma mais aprofundada, mas me lembrou de como pode ser difícil e constrangedor tentar desenvolver empatia por alguém que pensa ou age de formas que nos parecem repulsivas. Mas é praticamente impossível compreender ou influenciar os outros sem suspendermos nosso julgamento momentaneamente, tentando enxergar o mundo com olhos alheios. Como autor, tive à disposição os meios de humanizar Saddam sem sanitizá-lo. Pude também perceber como algo assim seria difícil para um presidente americano eleito.

Os incentivos da concorrência política na democracia recompensam a demonização dos inimigos e valorizam pouco a tentativa de se refletir cuidadosamente sobre um tirano ou deixar de lado o senso comum a respeito de suas motivações. Em tese, analistas de inteligência não partidários na CIA e em outras agências deveriam ser capazes de pensar e aconselhar livremente a respeito do caráter e das motivações dos mais perigosos adversários dos EUA. Na realidade, analistas experientes frequentemente se rendem à mentalidade do rebanho, reciclando a opinião pública ou política prevalecente. Isso certamente ajuda a explicar os equívocos da comunidade de espionagem sobre as armas de destruição em massa de Saddam.

Incentivos políticos domésticos também afastam os presidentes da ideia de conversar com autocratas inimigos, em parte porque fazê-lo poderia enfraquecer as sanções econômicas que os EUA buscam aplicar. “Se não fosse pelo constrangimento da imprensa, eu pegaria o telefone e falaria com o desgraçado”, disse o presidente Bill Clinton ao primeiro-ministro britânico Tony Blair em particular em 1998, referindo-se a Saddam. “Mas, nos EUA, essa decisão tem muito peso. Não posso fazer isso.” De fato, após o início de 1991, pelo que se sabe, nenhuma autoridade americana significativa conversou com Saddam ou seus principais enviados. Foi somente depois da captura, em dezembro de 2003, quando ele dividiu muitos cigarros com interrogadores da CIA e do FBI em uma prisão nos arredores de Bagdá, que ele começou a apresentar informações que ajudaram a explicar os equívocos dos EUA a seu respeito.

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Voluntários militares iraquianos seguram seus rifles ao lado de um enorme retrato do presidente iraquiano Saddam Hussein em Bagdá. Foto: KARIM SAHIB

Como explicou certa vez um dos assessores de Saddam, citando um provérbio árabe: “Ignoramos muitas verdades ditas por um mentiroso”. A melhor maneira de evitar isso é por meio de conversas privadas periódicas. Esse tipo de contato com Saddam antes de 2003 poderia ter revelado que, ao chegar aos 60 anos, ele perdera boa parte do interesse de outrora em questões militares e sua nova obsessão era escrever romances.

Em suas muitas contradições e inconsistências, Saddam não foi um ditador incomum. Características importantes do seu reinado são frequentemente encontradas nas autocracias: a paranoia em relação a ameaças ao poder do líder, informações suspeitas fornecidas por assessores aterrorizados e bajuladores e uma incapacidade de entender de fato as intenções dos adversários.

Como Vladimir Putin e o norte-coreano Kim Jong-un dos dias atuais, Saddam enervava o mundo ao falar casualmente a respeito da guerra nuclear. Durante o conflito envolvendo o Kuwait, ele estava tão convencido de que haveria um ataque atômico por parte de Israel ou dos EUA que ordenou a preparação de planos para evacuar a população de Bagdá para o interior. A mentalidade dele assustava até seu implacável primo Ali Hassan al-Majid, conhecido como “Ali químico”, posteriormente enforcado por sua participação no uso de gás para matar civis curdos nos anos 1980. “Toda essa conversa sobre os efeitos de ataques nucleares e atômicos… assusta as crianças”, queixou-se ele durante uma reunião gravada.

Ao que Saddam respondeu: “E nós somos o quê, um bando de moleques? Juro pelo seu bigode… fique atento à defesa civil!”

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Mas o líder iraquiano desejava evitar um conflito nuclear. A lição mais importante a se tirar deste exemplo pode ser a de que até um ditador descuidado pode ser dissuadido de uma agressão se compreender claramente que pode perder sua vida, seu legado ou seu poder.

Enganado por Saddam e mal informado pelos conselhos equivocados de aliados árabes, o presidente George H.W. Bush fracassou em emitir uma mensagem de dissuasão clara ao líder iraquiano antes que este invadisse o Kuwait em agosto de 1990. O presidente corrigiu tal erro no início de 1991, enquanto se preparava para ordenar que uma força liderada pelos EUA expulsasse as tropas iraquianas do emirado. Ele mandou o secretário de Estado James Baker para transmitir ao principal enviado de Saddam a informação de que, se o Iraque atacasse soldados americanos com gás, os Estados Unidos derrubariam seu governo. Baker não fez menção às armas nucleares, mas o líder iraquiano já acreditava que os americanos não hesitariam em lançar bombas atômicas. Com a guerra se aproximando, ele mobilizou armas químicas para atacar soldados americanos e aliados, mas hesitou no momento da decisão e não usou o gás. Meses depois, destruiu as armas. A dissuasão funcionou.

Mas talvez nem sempre funcione. O caso de Saddam é um paradoxo. Seu comportamento era tão errático que teria sido arriscado demais confiar a segurança dos EUA na capacidade de adivinhar suas intenções. Melhor seria agir com base nas capacidades do Iraque, emitindo mensagens de dissuasão claras e convincentes. Mas, no fim, os EUA se equivocaram tanto a respeito de suas capacidades de usar armas de destruição em massa porque falharam em compreender quem ele era de fato. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Opinião por Steve Coll

Coll é editor da The Economist e autor de “The Achilles Trap: Saddam Hussein, the C.I.A., and the Origins of America’s Invasion of Iraq”.

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