Por que dois condenados pelo assassinato de Malcolm X serão inocentados?

Dois homens condenados em 1966 pelo crime deverão ter as condenações anuladas depois de uma extensa investigação, que valida dúvidas antigas a respeito dos assassinos do líder da defesa dos direitos civis

PUBLICIDADE

Por Ashley Southall e Jonah E. Bromwich
Atualização:

Dois dos homens considerados culpados pelo assassinato de Malcolm X deverão ter suas condenações anuladas nesta quinta-feira, 18, afirmaram a Promotoria de Manhattan e os advogados de ambos, o que reescreverá a história oficial de um dos mais notórios assassinatos da era dos movimentos por direitos civis nos Estados Unidos.

PUBLICIDADE

A anulação das condenações de Muhammad A. Aziz e Khalil Islam representa um reconhecimento marcante de graves erros cometidos em um caso de imensa importância: o assassinato, em 1965, de um dos líderes negros mais influentes dos EUA na luta contra o racismo.

Uma investigação de 22 meses, conduzida conjuntamente entre a Promotoria de Manhattan e advogados dos dois homens, constatou que promotores de Justiça e duas das principais forças de segurança do país — o FBI (polícia federal americana) e o Departamento de Polícia de Nova York — omitiram provas cruciais que, se tivessem sido apresentadas, teriam ocasionado uma reviravolta no caso, que levaria à absolvição dos homens.

Malcolm X responde a perguntas em coletiva no Hotel Theresa, em Nova York, em 21 de maio de 64. Foto: AP Photo

Os homens, conhecidos na época do crime como Norman 3X Butler e Thomas 15X Johnson, passaram décadas na cadeia após serem condenados pelo assassinato, que ocorreu em 21 de fevereiro de 1965, quando três homens abriram fogo no salão lotado do Audubon Ballroom, em Manhattan, quando Malcolm X começava a discursar.

Mas a acusação contra a dupla foi questionável desde o início da investigação, e nas décadas que se passaram, historiadores e amadores colocavam em dúvida a narrativa oficial.

Publicidade

A investigação recente, realizada num momento em que um explosivo documentário a respeito do assassinato e uma nova biografia de Malcolm X renovaram o interesse no caso, não identificou os verdadeiros matadores apontados agora pelos promotores, nem as pessoas envolvidas no caso que morreram sem ter sido presas.

A investigação também não revelou nenhum tipo de conspiração da polícia ou do governo para assassiná-lo. E também deixou sem resposta questões a respeito de como e por que a polícia e o governo federal fracassaram em evitar o assassinato.

Conhecido como Thomas 15X Jhonson, Khalil Islam (centro) foi um dos condenados pela morte de Malcolm X. Foto: AP Photo (03/03/1965)
Muhammad Aziz, conhecido como Norman 3X Butler, é escoltado adelegacia de Nova York. Foto: AP Photo (26/02/1965)

Mas o reconhecimento do promotor de Manhattan Cyrus R. Vance Jr., um dos mais proeminentes promotores distritais dos EUA, redefine um dos mais dolorosos momentos da história contemporânea do país.

E num momento em que racismo e discriminação no sistema de Justiça criminal são novamente foco de um movimento nacional de protesto, isso revela uma amarga verdade: que dois dos réus condenados pelo assassinato de Malcolm X — homens negros e muçulmanos, presos precipitadamente, com base em evidência duvidosas — foram vítimas de mesma discriminação e injustiça que o líder denunciou em termos que ecoam há décadas.

Em entrevista, Vance desculpou-se em nome das forças de segurança, que, segundo ele, faltaram com as famílias dos dois homens. Essas faltas, afirmou ele, não podem ser remediadas, “mas o que sim podemos fazer é reconhecer o erro e a gravidade do erro”.

Publicidade

A nova investigação de Vance, conduzida juntamente com o Projeto Inocência e o escritório do advogado defensor de direitos civis David Shanies, enfrentou grandes obstáculos. Muitos dos envolvidos no assassinato de Malcolm X, incluindo testemunhas, investigadores e os advogados que participaram do julgamento do caso, assim como outros potenciais suspeitos, morreram há muito. Documentos cruciais se perderam no tempo, e evidências físicas, como as armas do crime, não estavam mais disponíveis para teste.

O promotor de Manhattan, Cyrus R. Vance Jr., foi um dos responsáveis por revisar o caso da morte de Malcolm X. Foto: Desiree Rios/The New York Times

“Isso aponta para uma verdade: que as forças de segurança, ao longo da história, fracassaram em atender as expectativas a respeito de suas responsabilidades”, afirmou  Vance. “Esses homens não tiveram a Justiça que mereciam.”

Ainda assim, as evidências disponíveis eram significativas.

Uma série de documentos do FBI incluía informações que implicavam outros suspeitos e descartavam o envolvimento de Islam e Aziz. Anotações de promotores indicam que eles omitiram a presença de agentes disfarçados no salão no momento do tiroteio. E arquivos do Departamento de Polícia revelaram que um repórter do New York Daily News recebeu um telefonema na manhã do crime indicando que Malcolm X seria assassinado.

Os investigadores também entrevistaram uma testemunha viva, um homem identificado apenas como JM, que corroborava o álibi de Aziz, sugerindo que, no momento do crime Aziz estava em sua residência, cuidando de ferimentos nas pernas, conforme ele afirmou no tribunal.

Publicidade

De maneira geral, a investigação recente constatou que, se novas as evidências tivessem sido apresentadas a um tribunal, teriam ocasionado as absolvições dos dois homens condenados. E Aziz, de 83 anos, que foi solto em 1985, e Islam, que foi solto em 1987 e morreu em 2009, não teriam sido obrigados a passar décadas lutando para lavar suas reputações.

“Não foi uma mera omissão”, afirmou Deborah Francois, uma das advogadas dos homens. “Isso foi produto de uma improbidade extrema e grave das autoridades.”

O assassinato

Ele havia se apresentado ao público americano seis anos antes, o malandro das ruas de Nebraska que se transformou em reverendo e pregava em nome da Nação do Islã, um movimento negro nacionalista, a respeito da maneira que as autoridades abusavam do poder que detinham para brutalizar pessoas negras.

Malcolm X fala com repórteres em Washington, em 1963; dois anos depois, foi morto a tiros em Nova York. Foto: AP Photo (16/05/1963)

Algumas das ideias que abraçou durante o tempo que passou com a Nação do Islã — ele chamava pessoas brancas de demônios e defendia um separatismo racial — seriam consideradas controvertidas mesmo segundo padrões atuais. Os meios de imprensa retratavam Malcolm X como um “racista”, um perigoso agitador e se referiam à Nação como um “culto”.

Publicidade

Mas ele também exercia intensa fascinação, como o inflamado e persuasivo orador que verbalizava ideias que muitos americanos jamais tinham ouvido. E em 1965, um ano depois de deixar a Nação do Islã, ele estava começando a definir a missão de um novo movimento, a Organização para a Unidade Afro-Americana — a respeito da qual planejava falar no Audubon Ballroom.

Policiais montam guarda em frente aoAudubon Ballroom, local onde Malcolm X foi assassinado. Foto: AP Photo (21/02/1965)

Pouco depois de iniciar sua fala, ele foi atacado por três homens armados, que avançaram na direção do palco e o assassinaram a tiros, em frente à sua mulher e três de suas filhas. Ele tinha 39 anos.

Um suspeito, Thomas Hagan (cujo nome islâmico é Mujahid Abdul Halim), foi detido no local do crime após ser alvejado na coxa.  Aziz, conhecido na época como Norman 3X Butler, foi preso cinco dias depois, e Islam, conhecido como Thomas 15X Johnson, depois de outros cinco dias. No período de uma semana, os três homens, todos membros da Nação do Islã, foram indiciados pelo assassinato.

Viúva de Malcolm X, Betty Shabbaz olha para o corpo do marido durante velório; ela e 3 filhas do casal presenciaram o assassinato. Foto: AP Photo (27/02/1965)

Em seu julgamento, em 1966, os promotores acusaram Islam, que havia trabalhado como motorista de Malcolm X, de ser o assassino que disparou o tiro de espingarda fatal contra o líder. Halim e Aziz foram acusados de estar logo atrás, disparando tiros de pistola. Dez testemunhas oculares afirmaram ter visto Islam, Aziz ou ambos no local.

Mas as declarações das testemunhas eram contraditórias, e nenhuma evidência concreta ligava Aziz ou Islam ao assassinato, nem mesmo à cena do crime. Ambos os homens apresentaram álibis críveis, corroborados por testemunhos de cônjuges e amigos.

Publicidade

E quando Halim, também conhecido como Talmadge Hayer, foi interrogado pela segunda vez durante o julgamento e confessou o crime, ele insistiu que os outros dois réus eram inocentes.

Thomas Hagan, então com 22 anos, luta com a polícia após o assassinato de Malcolm X. Foto: AP Photo/WCBS-TV News

Em 11 de março de 1966, os três foram considerados culpados e, um mês depois, sentenciados à prisão perpétua.

Mesmo naquela época, as evidências já apontavam para outra teoria a respeito do caso.

Nova investigação

Algumas das provas que pareciam inocentar Aziz e Islam emergiram durante seu julgamento, mas em razão de informações cruciais terem sido omitidas pelas autoridades, sua importância só ficou clara posteriormente.

Publicidade

Uma testemunha de defesa, Ernest Greene, declarou que tinha visto o homem que portava a espingarda e o descreveu como um sujeito de pele escura e corpulento, com uma barba “profunda" — o que não combina com a descrição de Islam, o homem acusado pelos promotores de disparar uma espingarda, que tinha pele clara, corpo esguio e o rosto barbeado.

Mas a descrição de Greene combinava com a de outro homem, cujo nome os jurados nem sequer ouviram: William Bradley, membro da mesma mesquita da Nação do Islã localizada em Newark, Nova Jersey, frequentada por Halim. Bradley pertencia ao braço armado da Nação do Islã, à qual Malcolm X tinha se juntado em 1952, promovendo-a incessantemente por 12 anos antes de uma amarga ruptura, no ano anterior ao seu assassinato.

Bradley media menos de 1,80 metro, pesava pouco mais de 82 quilos e tinha pele escura. Ele havia servido no Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA como operador de metralhadora e sua ficha criminal incluía uma acusação por posse de arma de fogo ilegal.

O FBI possuía a descrição de Bradley na época do assassinato, e Halim chegou a identificá-lo como um dos assassinos. E as autoridades estavam cientes de que a Nação do Islã mirava Malcolm X; uma semana antes do assassinato, a casa dele foi atacada com bombas incendiárias, enquanto ele, sua mulher e suas filhas dormiam na residência.

William Bradley era parte do braço armado da Nação do Islã. Foto: East Orange Police Department via The New York Times

Mas passaram-se anos até que o envolvimento de Bradley com o crime ficasse mais evidente, à medida que sucessivos investigadores amadores — jornalistas, historiadores, biógrafos e outros — esmiuçaram o caso.

Publicidade

Um dos mais importantes desses civis foi Abdur-Rahman Muhammad, que apresentou uma série da Netflix no início do ano passado que mais uma vez demonstrou a inocência de dois homens — e a culpa de outro. Após o lançamento da série, Vance anunciou que assumiria o caso.

Os investigadores de Vance, trabalhando juntamente com os advogado de Islam e Aziz, examinaram as evidências que tinham sido apresentadas e analisadas publicamente, incluindo o arquivo do FBI a respeito de Bradley (Bradley, que mudou o nome para Al-Mustafa Shabazz, morreu em 2018, e seu advogado negou a participação dele no assassinato).

Os arquivos do FBI continham um relatório declarando que as autoridades de Nova York não tinham sido informadas que Bradley era suspeito, bem como o relato indireto de um informante segundo o qual Bradley seria o assassino que portava a espingarda.

Os investigadores também entrevistaram novas testemunhas e analisaram uma série de registros: testemunhos públicos, arquivos da Promotoria, transcrições de julgamentos e documentos produzidos na fase inicial da investigação, procedimentos do júri, do julgamento e apelações posteriores às condenações.

A análise constatou que um dos pontos fracos mais significantes da linha de argumentação da acusação era a confissão de Halim e o fato dele ter inocentado os outros dois réus.

Publicidade

Apesar de todos os acusados pertencerem à Nação do Islã, os promotores não conseguiram estabelecer nenhuma conexão entre Halim, que frequentava a mesquita de Newark e afirmava que seus comparsas eram de Nova Jersey, e Islam e Aziz, que frequentavam a mesquita da Nação do Islã que funcionava no Harlem. Várias testemunhas de defesa afirmaram que Aziz e Islam estavam em suas residências no momento do assassinato.

Admiradores se reúnem para prestar últimas homenagens durante o velório de Malcolm X. Foto: Don Hogan Charles/The New York Times

Ainda que a maioria das pessoas que a investigação recente pretendia entrevistar já tivesse morrido, uma testemunha que se apresentou durante uma exibição do documentário forneceu um relato que parecia confirmar o álibi de Aziz, mas nunca havia sido ouvida pelas autoridades.

A testemunha, um homem identificado como JM, afirmou que estava prestando serviço de telefonista na mesquita da Nação do Islã no Harlem no dia em que Malcolm X foi assassinado, quando Aziz ligou e pediu para falar com o capitão da mesquita. Eles desligaram o telefone, e JM foi procurar o capitão. Posteriormente, JM retornou o telefonema — para o número da residência de Aziz. E Aziz atendeu o telefone.

Vidas despedaçadas

Representantes dos homens inocentados afirmaram que este momento significa muito para as famílias de Aziz e Islam. Mas Shanies, um dos advogados defensores de direitos civis que os representa, afirmou que suas condenações surtiram efeitos “horrendos, tortuosos e irreparáveis” que serão eternos.

Os dois homens passaram, conjuntamente, 42 anos na cadeia, entrecortados por anos em confinamento solitário. Eles foram mantidos em alguns dos piores presídios de segurança máxima de Nova York nos anos 1970, década que testemunhou a rebelião carcerária de Attica.

Aziz tinha seis filhos quando foi condenado; Islam tinha três. Ambos os homens viram seus casamentos se despedaçar e passaram os melhores anos de suas vidas atrás das grades.

Mesmo após sua soltura, eles eram identificados como assassinos de Malcolm X, o que prejudicou sua capacidade de viver tranquilamente na sociedade.

“Isso afetou-os de todas as maneiras que você poderia imaginar — e as suas famílias”, afirmou Shanies.

No capítulo final da série documental, Muhammad, o apresentador, pede para Aziz assinar uma petição para a Promotoria de Manhattan reavaliar sua condenação. Aziz agradece, mas afirma que os 20 anos que passou na cadeia eliminaram a esperança de que sua reputação seja lavada./ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.