Por que Donald Trump está tão obcecado pelo Canadá?

Os canadenses dizem que a retórica do presidente Trump sobre o 51.º Estado é uma ameaça à sua segurança nacional; e também estão perplexos com a origem de sua visão para a anexação canadense

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Por Martine Powers (The Washington Post)
Atualização:

Enquanto o presidente Donald Trump argumentava nas semanas recentes — pela primeira vez, pela terceira vez, pela décima vez — em favor de eliminar a soberania do Canadá e converter o país no 51.º Estado dos Estados Unidos, começaram a chegar mensagens na caixa de entrada do advogado Mitchell Wine. “Alguns amigos me escreveram e disseram: ‘É tudo culpa sua’”, relembrou Wine dando risada.

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Wine não acredita realmente que seja tudo culpa dele. Em 2016, ele representou um grupo de investidores que processou Trump, a Trump Organization e outros entes alegando que receberam informações falsas ao comprar condomínios no Trump International Hotel and Tower Toronto. Possivelmente por causa do estilo controvertido de Trump, o negócio do hotel passou por dificuldades. Os investidores perderam dinheiro. O edifício entrou em recuperação judicial, os clientes de Wine fizeram um acordo, e o nome de Trump acabou enfim removido do prédio.

Os termos do acordo eram confidenciais, e Trump nunca admitiu irregularidades.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, participa de um evento na Casa Branca  Foto: Alex Brandon/AP

Agora, anos depois, as pessoas em Toronto olham para o empreendimento imobiliário fracassado e se perguntam: será por isso que Trump é tão obcecado com o Canadá?

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“Não tenho ideia”, disse Wine. Falando sob condição de anonimato para detalhar o pensamento do presidente, um funcionário da Casa Branca insistiu que o conceito do 51.º Estado surgiu espontaneamente na mente de Trump e é uma proposta séria, motivada por sua convicção de que a anexação beneficiaria tanto os americanos quanto os canadenses.

“Como o presidente Trump disse, os canadenses se beneficiariam de impostos mais baixos e fronteiras seguras como residentes do estimado 51.º Estado americano”, disse a porta-voz da Casa Branca, Anna Kelly.

Os canadenses dizem que a visão de Trump para o Canadá como um acréscimo aos EUA é ofensiva, revoltante e — cada vez mais — uma séria ameaça à sua segurança nacional. Eles reconhecem que uma invasão dos EUA pode não ser iminente, mas acreditam que a insistência de Trump em tarifas sobre importações vindas do Canadá é um esforço real para enfraquecer a economia do país a um ponto em que a anexação possa se tornar algo a se considerar mais seriamente.

O primeiro-ministro do Canadá, Mark Carney, participa de uma partida de hockey durante uma visita a Edmonton, Alberta  Foto: Jason Franson/AP

“Uma coisa é dizer isso antes de tomar posse. Outra coisa é dizer isso com o selo dos EUA por trás do pódio”, disse o especialista em política canadense David McLaughlin, que foi chefe de gabinete do ex-primeiro-ministro canadense Brian Mulroney. “Estamos nos perguntando: por que ele continua dizendo isso? Deve ser porque ele quer que isso aconteça.”

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As teorias sobre exatamente o que — ou quem — motiva a obsessão de Trump variam entre grandiosidades e minúcias.

Motivação

Os canadenses que enviaram e-mails para Wine sugeriam que o fracasso dos hotéis de Trump em Toronto e Vancouver lhe deixou com o desejo de vingança contra o Canadá. (Um funcionário da Casa Branca, falando sob condição de anonimato para detalhar o pensamento do governo, chamou essa sugestão de “absurda” e disse que os empreendimentos imobiliários “não têm absolutamente nada a ver com isso”.) Outros, incluindo Matthew Holmes, vice-presidente-executivo e diretor de políticas públicas da Câmara de Comércio Canadense, argumentaram que a conversa de Trump sobre anexação é um reflexo de seu relacionamento antagônico com o ex-primeiro-ministro canadense Justin Trudeau, a quem ele chamou anteriormente de “muito desonesto e fraco”.

Em entrevistas, aliados e ex-aliados de Trump, canadenses politicamente conectados e especialistas em política externa sugeriram outras teorias, incluindo que influenciadores de direita, conselheiros políticos do presidente ou até mesmo um encontro casual em Mar-a-Lago no início deste ano poderiam ter influenciado Trump a começar sua cruzada pelo 51.º Estado.

O primeiro-ministro do Canadá, Mark Carney, visita uma fábrica de aço da ArcelorMittal em Hamilton, Ontário, em meio a ameaças de tarifas e anexação por Donald Trump  Foto: Nathan Denette/AP

Mas muitos canadenses estão simplesmente confusos. “Seu palpite é tão bom quanto o meu”, disse o primeiro-ministro de Ontário, Doug Ford, quando questionado sobre a gênese da aspiração de Trump de incorporar o Canadá aos EUA. “Estamos atônitos por ele estar fazendo isso.”

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Primeiro mandato

Ex-funcionários do primeiro governo Trump não se lembram da ideia do “51.º Estado” ter surgido durante a gestão. O ex-secretário de comércio Wilbur Ross e o ex-conselheiro de segurança nacional John Bolton disseram ao Washington Post que nunca tinham ouvido Trump levantar a questão antes.

Mas Gerald Butts, que foi primeiro-secretário principal de Trudeau, afirmou em uma publicação recente nas redes sociais que a ideia foi “muito” discutida em interações anteriores entre o presidente americano e Trudeau.

Trump começou a se referir publicamente ao Canadá como o “51.º Estado” antes de tomar posse pela segunda vez; e intensificou consistentemente sua retórica nos primeiros dois meses de sua presidência.

O presidente americano argumentou que incorporar o Canadá aos EUA reduziria impostos dos canadenses, aumentaria a segurança da fronteira e melhoraria as defesas militares do Canadá.

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O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assina uma série de ordens executivas na Casa Branca  Foto: Ben Curtis/AP

“Para ser honesto com você, o Canadá só funciona como um Estado. (…) Seria um dos grandes Estados de qualquer maneira — e este seria o país mais incrível”, disse Trump no Salão Oval, em 13 de março. “Visualmente, se olharmos para um mapa, eles desenharam uma linha artificial bem no meio, entre o Canadá e os EUA, apenas uma linha reta artificial. Alguém fez isso há muito tempo, muitas, muitas décadas atrás, e isso não faz sentido”, continuou Trump, aparentemente se referindo ao tratado de 1908 que estabeleceu a fronteira entre os EUA e o Canadá. “É tão perfeito quanto um grande e apreciado Estado.”

Muitos canadenses dizem que não veem mais as declarações de Trump como uma piada ou uma tática de negociação bombástica na guerra tarifária.

“O irônico é que eu me sentei com inúmeros republicanos”, disse Ford, que na semana passada mobilizou-se para impor brevemente uma sobretaxa em importações de eletricidade para os EUA antes de reverter essa decisão. “Nenhum republicano concorda com ele. A portas fechadas, eles me dizem que não têm ideia sobre o porquê de ele estar fazendo isso.”

Pete Hoekstra, indicado por Trump para ser o próximo embaixador no Canadá, parecia igualmente inseguro sobre o que interpretar a respeito dos comentários de seu chefe. Durante sua audiência de confirmação no Senado, na semana passada, Hoekstra foi questionado se concordava que o Canadá é um país soberano e não deveria, nem mesmo de brincadeira, ser chamado de 51º Estado.

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“O Canadá é um país soberano, sim”, disse Hoekstra. “Quanto ao presidente e sua relação com o ex-primeiro-ministro e o Canadá — as características e a natureza dessa relação; bem, disso eu não sei, ok?”

Piadas

Memes e piadas sobre uma possível anexação do Canadá circularam em nichos online da direita no ano que antecedeu a eleição de 2024. O ex-apresentador da Fox News Tucker Carlson e o comentarista político Tim Pool refletiram sobre a possibilidade de uma invasão do Canadá — ou, nas palavras de Carlson, “de libertar a grande nação do Canadá de si mesma”.

Trump também levantou a possibilidade da anexação do Canadá durante um jantar com Trudeau, no fim de novembro, de acordo com relatos da época — embora um ministro canadense que esteve presente tenha insistido logo depois que o então presidente eleito estava apenas brincando.

Desde então, Trump tem manifestado o interesse de anexar o Canadá mais enfaticamente.

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O jornal britânico The Telegraph sugeriu uma possível fonte: Peter Navarro, o conselheiro de Trump sobre comércio, que tem promovido os termos linha-dura do presidente sobre tarifas contra o Canadá. (Quando perguntado sobre Navarro ter ou não impulsionado a ideia de anexação, um funcionário da Casa Branca disse, falando sob condição de anonimato para detalhar o pensamento do presidente, que “o próprio presidente teve a ideia”.)

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, olha para o então primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, durante uma coletiva de imprensa em Washington  Foto: Andrew Harnik/AP

Outra possível influência: Kevin O’Leary, também conhecido como “Senhor Maravilha”, também conhecido como uma das celebridades investidoras do reality show “Shark Tank”.

O’Leary, que é canadense, tem defendido nos últimos meses uma aliança econômica formal entre EUA e Canadá semelhante à União Europeia. Ele prevê um sistema de imigração combinado, cidadanias mútuas e uma moeda em comum.

“Neste momento, o problema é a China. E isso continuará enquanto a China tentar se tornar a maior economia do mundo”, disse O’Leary na semana passada. “Se, de alguma forma, nós combinarmos as economias do Canadá e dos EUA, é fim de jogo. Acabou. Ninguém seria capaz de nos alcançar.”

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O’Leary foi um dos muitos indivíduos na órbita de Trump que estiveram em Mar-a-Lago no início de janeiro para se reunir com Trump antes da posse. Durante esse período, recorda-se O’Leary, ele teve uma conversa com Trump sobre o Canadá, as conexões duplas de sua família com o Canadá e os EUA, e sua afinidade por ambos os países.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, participa de uma reunião no Salão Oval, em Washington  Foto: Demetrius Freeman/The Washington Post

“Não sei se algo que eu disse o fez pensar sobre isso”, disse O’Leary na semana passada. “E aquilo foi o começo de algo. Mas não posso afirmar que fui eu que lhe dei a ideia. Quem sabe? Não tenho ideia.”

Em 6 de janeiro, Trump postou no Truth Social: “Muitas pessoas no Canadá AMAM ser o 51º Estado. (…) Se o Canadá se fundisse com os EUA, não haveria tarifas, os impostos cairiam muito e eles estariam TOTALMENTE SEGUROS da ameaça dos navios russos e chineses que os cercam constantemente. Juntos seríamos uma grande Nação!!!”

Os aliados de Trump dizem que esse endurecimento na terminologia tem como objetivo melhorar sua posição de negociação na guerra comercial EUA-Canadá.

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“Não acho que seja real por vários motivos”, disse o ex-presidente da Câmara Newt Gingrich. “O Senado ficaria para sempre em algum ponto entre democratas e socialistas. Eu não consideraria isso um projeto sério.”

Observadores canadenses dizem que a indignação com os ataques de Trump alimentou níveis coletivos sem precedentes de união e desafio.

Manifestante posa para foto com bandeira do Canadá e uma máscara com o rosto do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em frente a Casa Branca, em Washington  Foto: Ben Curtis/AP

“Não posso subestimar o quanto isso é visceral no Canadá”, disse Holmes, o funcionário da Câmara de Comércio Canadense. “As pessoas se sentem verdadeiramente traídas. É pessoal.”

Os ataques de Trump parecem ter dado impulso ao Partido Liberal do Canadá, que se preparava para uma derrota eleitoral.

Enquanto isso, os canadenses comuns começaram a praticar atos explícitos de patriotismo. Clientes de supermercados passaram a ler os rótulos dos itens nas prateleiras para evitar produtos fabricados nos EUA. Os canadenses dizem que nunca em suas vidas viram tantas bandeiras com folhas de bordo tremulando. O prefeito de Mississauga anunciou no sábado que, “a pedido de muitos”, a cidade começou a remover todas as bandeiras dos EUA de arenas esportivas e áreas públicas ao longo do Lago Ontário.

“Não somos o país mais unificado do mundo”, disse Wine, o advogado que foi questionado sobre o caso de seus clientes ter alimentado o sentimento anti-Canadá de Trump. “Mas hoje em dia nós somos. Hoje em dia nós amamos o Canadá ainda mais porque ficamos muito ofendidos com o comportamento do presidente.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO