A construção da parceria transatlântica centrada na Otan levou décadas de mobilização de tropas, exercícios conjuntos e sinalização firme de um compromisso inquebrável com seu princípio central: um ataque a um seria um ataque a todos. No entanto, um turbilhão que durou uma semana inteira deixou essa confiança em frangalhos, enquanto o governo do presidente Donald Trump anulou quase 80 anos de política americana em relação à Europa. Culminou com o presidente repetindo pontos da propaganda do Kremlin ao culpar falsamente a Ucrânia por iniciar sua guerra com a Rússia e chamar Volodmir Zelenski, o presidente da Ucrânia, de “ditador”.
Essa revolução na política externa dos Estados Unidos começou em 12 de fevereiro, quando Pete Hegseth, secretário de defesa americano, disse aos aliados dos americanos que seu país não era mais o “garantidor principal” da segurança europeia. Então, em 14 de fevereiro, na Conferência de Segurança de Munique, J.D. Vance, o vice-presidente, fez um ataque incisivo à Europa. Em vez de falar da Ucrânia, ele dedicou seu discurso a repreender a Europa quanto à liberdade de expressão e imigração. “A ameaça que mais me preocupa em relação à Europa não é a Rússia”, ele disse ao público. “O que me preocupa é a ameaça de dentro.” O apoio indireto de Vance à Alternativa para a Alemanha (AfD), da extrema direita, um partido considerado tão extremo que parte dele está sob vigilância doméstica, e sua decisão de se encontrar com uma liderança do partido, pareceu um ataque flagrante aos seus anfitriões alemães. Um político alemão proeminente resumiu o humor de muitos: “Parece que eles querem nos pegar”.
Na conferência, os líderes europeus se perguntaram se o que viria a seguir seria tão memorável quanto uma conferência anterior de Munique, em 1938, quando Neville Chamberlain, do Reino Unido, cedeu às ambições de Adolf Hitler; ou a de Ialta em 1945, quando EUA, Reino Unido e União Soviética dividiram a Europa. Em meio a essa turbulência, as democracias da Europa foram forçadas a contemplar a perspectiva de se opor à tirania sem o apoio dos Estados Unidos pela primeira vez desde a 2.ª Guerra Mundial — e das enormes expansões necessárias para que suas forças armadas o façam com alguma credibilidade.

Os temores de uma capitulação semelhante à de Munique diante de Vladimir Putin, o presidente da Rússia, foram ainda mais inflamados em 18 de fevereiro, quando altos funcionários americanos e russos se encontraram pela primeira vez desde a invasão da Ucrânia por Putin, três anos atrás. Embora as conversas fossem a respeito do fim da guerra, nenhum europeu ou ucraniano estava à mesa, levando alguns a gracejar que isso era porque a Ucrânia estava sobre a mesa. A piada soou menos engraçada quando concluída após a reunião por Marco Rubio, o secretário de Estado. Dando a Putin uma vitória simbólica, Rubio concordou em fortalecer as relações diplomáticas com os russos e falou em “parcerias econômicas potencialmente históricas” entre a Rússia e os Estados Unidos.
A abordagem agressiva e transacional de Trump às relações internacionais aumenta o medo do abandono. O presidente havia enviado anteriormente a Kiev seu secretário do Tesouro, Scott Bessent, para exigir que a Ucrânia entregasse os direitos de exploração do que o governo Trump diz serem US$ 500 bilhões em minerais essenciais como pagamento por toda a ajuda que os Estados Unidos deram no passado. Muitos dos minerais estão em território controlado pela Rússia, embora acredite-se que os Estados Unidos tenham pedido à Rússia para negociar o acesso a eles. Em Munique, autoridades americanas pressionaram a Ucrânia a assinar um acordo, mas depois concordaram em continuar as negociações.
Os líderes europeus foram avisados de que talvez tivessem que assumir mais responsabilidade. Em seu primeiro mandato, Trump ameaçou que os Estados Unidos “seguiriam seu próprio caminho” se outros membros da Otan não aumentassem os próprios gastos com defesa para pelo menos 2% do PIB, uma meta definida após a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. Eles fizeram progresso: 23 dos 32 membros estão atingindo a meta. No entanto, as forças armadas de muitos seguiram encolhendo. Poucos poderiam esperar enfrentar a Rússia sem o apoio dos americanos, uma situação em que 2% do PIB seriam lamentavelmente inadequados.
Isso foi exposto em duas cúpulas de emergência convocadas por Emmanuel Macron, presidente da França, em 17 e 19 de fevereiro. Elas serviram para discutir o envio de tropas para a Ucrânia para garantir sua segurança se um acordo de paz for alcançado que seja aceitável para Zelenski, e para descobrir como financiar o rearmamento europeu e mais apoio à Ucrânia. Macron primeiro lançou a ideia de colocar botas no chão no ano passado e ele ganhou o apoio de Keir Starmer, primeiro-ministro do Reino Unido, que está disposto a contribuir com forças britânicas. Mas outros líderes europeus resistiram à ideia, temendo que pudessem sobrecarregar seus recursos. Donald Tusk, presidente da Polônia, descartou uma contribuição polonesa.
O lado com os maiores batalhões
Como a Rússia tem quase 600 mil soldados atacando a Ucrânia, uma força europeia teria que ser considerável para ter algum valor de dissuasão, observa Matthew Savill, do Royal United Services Institute, um centro de estudos estratégicos. Para o Reino Unido, isso pode significar uma brigada aumentada com defesas aéreas e apoiada por caças a jato. No entanto, com apenas 73 mil soldados, manter tal força ao lado de uma presença existente na Estônia “comprometeria essencialmente o exército mobilizável”.
Quando cinco aliados da Otan analisaram uma mobilização, tornou-se aparente que as forças terrestres europeias seriam sobrecarregadas perigosamente, criando lacunas nas próprias linhas defensivas da Otan. Seria um “presente para Putin” se os aliados diluíssem sua presença em estados da linha de frente, diz um ex-oficial americano familiarizado com esse planejamento.
Confrontados com tais restrições, França e Reino Unido estão elaborando planos provisórios para uma “força de garantia” consistindo principalmente de poder aéreo ocidental, com apenas um pequeno contingente de tropas terrestres.

Seja qual for a força, há um amplo consenso de que os Estados Unidos teriam que fornecer inteligência, defesa aérea, cobertura aérea e outras “facilitações” — não apenas por razões logísticas e técnicas, mas para impedir a Rússia de testar a mobilização. Keir e Macron viajarão para Washington para discutir isso. “Se houver uma linha de defesa americana”, diz um oficial europeu, “ela desencadeará a geração de força por outros”. Algumas vozes influentes estão propondo arranjos alternativos, como um escudo aéreo liderado pelos Estados Unidos que poderia proteger os céus da Ucrânia sem exigir muitos homens no solo e uma força naval para reabrir o Mar Negro. No entanto, essas são as mesmas forças que muitos no Pentágono acreditam que seriam mais úteis em qualquer conflito futuro com a China na Ásia.
Por mais desconfortáveis que os membros europeus da Otan estejam com a ideia de colocar soldados em perigo sem o que Keir chamou de “uma linha de defesa dos EUA”, eles também têm que enfrentar a perspectiva ainda mais desconfortável de que Trump pode estar planejando uma partilha da Europa no estilo de Ialta, em uma esfera de influência ocidental e outra russa. Em dezembro de 2021, antes da guerra, Putin exigiu que a Otan efetivamente abandonasse seus membros da Europa Central e Oriental, recuando suas tropas para as fronteiras que prevaleciam em 1997. As demandas formais da Rússia não incluem atualmente essas disposições. Mas muitos europeus seniores temem que Putin as reative e que Trump possa vê-las como pesos atraentes em um pacote envolvendo a Ucrânia.
Alguns diplomatas americanos ecoam essa preocupação. Um risco, diz Julie Smith, embaixadora dos Estados Unidos na Otan até o mês passado, é que Trump concorde em retirar as 20 mil tropas americanas que Joe Biden enviou para a Europa após a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022. Essas forças, mobilizadas principalmente na Polônia e na Romênia, com algumas chegando aos estados bálticos, representam apenas um quinto das tropas americanas na Europa.
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Se elas forem retiradas agora, argumenta Smith, outros aliados europeus, como Reino Unido, França e Alemanha, podem julgar muito arriscado manter seus próprios oito grupos de batalha que estão atualmente na frente oriental da Otan. Alternativamente, se Trump estiver decidido a punir a Alemanha, ele poderia retirar as 30 mil a 40 mil tropas baseadas lá. “As luzes estão piscando em vermelho”, ela avisa. Muitos aliados alarmados notaram a recente conversa de Trump sobre “desnuclearização” com a Rússia. Isso pode até colocar em risco a implantação de armas nucleares táticas americanas na Europa, que são transportadas por várias forças aéreas europeias.
Autoridades americanas estão sugerindo um tipo diferente de força de manutenção da paz para uma presença da Otan, incluindo países não europeus como Brasil ou China, que ficariam ao longo de uma eventual linha de cessar-fogo como um para-choque. Acredita-se que Vance tenha dito aos europeus que uma força somente europeia seria menos eficaz para dissuadir a Rússia de um eventual ataque. Ivan Krastev, um cientista político, brinca que a fronteira pode ser chamada de “linha Trump” para recrutar a vaidade do presidente. A Rússia, no entanto, é contra qualquer mobilização de tropas estrangeiras na Ucrânia e, assim, Trump teria que coagir Putin a aceitar até mesmo isso.
Atirar ou gaguejar
Uma alternativa às tropas estrangeiras seria aumentar as forças armadas da Ucrânia. Zelenski disse à Economist que precisaria dobrar o tamanho de seu exército na ausência de garantias semelhantes às da Otan. Isso exigiria um fluxo sério — e caro — de armas e munições. Trump pode considerar uma troca de armas por minerais, talvez para mostrar a seus apoiadores que os EUA estavam recebendo algo em troca de seus esforços. Os países europeus também estão revisitando a ideia de apreender ativos russos congelados. A França continua se opondo à ideia, em parte por causa do risco de repercussão financeira, embora Friedrich Merz, provável sucessor de Olaf Scholz como chanceler alemão após as eleições, esteja mais aberto à ideia.
A Ucrânia, com o apoio da Europa, tem alguma influência própria. Se Trump está tão ansioso por um acordo que concede a maioria das exigências de Putin, Zelenski pode preferir ir embora, apostando que seria melhor para a Ucrânia lutar apenas com a ajuda europeia. Da mesma forma, Elina Valtonen, ministra das Relações Exteriores da Finlândia, disse à Economist que havia alertado os Estados Unidos contra um “acordo rápido e sujo que provavelmente fracassará de qualquer maneira, e que fará o presidente Trump parecer fraco”.

Além disso, a crise pode galvanizar a Europa para a ação. No Reino Unido, houve indícios de que Keir estava caminhando para um grande aumento nos gastos com defesa, com uma meta de pelo menos 3% do PIB até o final da década. Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, propôs ativar uma “cláusula de escape” das regras orçamentárias da UE para permitir que os estados-membros aumentem os gastos com defesa. Ela também disse que a UE pode desviar € 93 bilhões (US$ 97 bilhões) em fundos inexplorados de recuperação da covid para a defesa, informou o Financial Times.
Aconteça o que acontecer nas negociações, a Europa precisará fazer mais por sua própria defesa. Se um acordo exigir o envio de tropas europeias para a Ucrânia, esses compromissos e a necessidade de mobilizar novas forças para preencher as lacunas que eles deixam podem ser extremamente caros. No entanto, se a Ucrânia rejeitar um acordo ruim, ou se a diplomacia entrar em colapso e a guerra continuar, então a Europa ainda poderá ser abandonada para pagar uma parcela muito maior da conta de ajuda militar — talvez a conta inteira, se Trump lavar as mãos em relação ao problema. Nesse caso, os europeus podem ter que escolher entre aumentos nos gastos, apreensão de ativos russos ou simplesmente assistir ao gradual desmoronamento da Ucrânia. Na prática, as somas são grandes, mas dificilmente incapacitantes: US$ 50 bilhões ou mais compensariam o déficit de ajuda dos Estados Unidos por um ano. O problema seria obter armas. Talvez a Europa tenha que comprar muitas delas de produtores americanos.
O pior caso seria se Trump começasse a retirar as tropas americanas da Europa e talvez até mesmo o guarda-chuva nuclear, ou sinalizar que não virá em auxílio da Otan se a Rússia atacar um de seus membros. Tais medidas dramáticas são vistas como menos prováveis — pelo menos por enquanto. O Congresso teria que autorizar grandes somas de dinheiro para pagar por qualquer retirada de tropas em larga escala, por exemplo, e elas poderiam levar anos.
Mas isso não é tão implausível quanto era algumas semanas atrás. Em particular, algumas autoridades europeias especulam a respeito de como se preparariam para tal catástrofe. Elas poderiam, por exemplo, acelerar a aquisição de mísseis de longo alcance para dissuadir a Rússia e aprofundar as consultas nucleares com o Reino Unido e a França, as potências nucleares da Europa.
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O paradoxo é que, apesar dessas ansiedades turbulentas, a Europa e os EUA precisam um do outro. Os europeus estão lidando com o fato de que seu principal garantidor de segurança por quase 80 anos não está apenas se distanciando, mas de certa forma mostra-se ativamente hostil. Eles estão cada vez mais se protegendo contra a retração americana. Mas isso não é algo que eles buscarão fazer, mesmo que seja apenas por causa do custo de montar uma defesa exclusivamente europeia contra a Rússia, que um insider coloca em 5-6% do PIB por ano. O primeiro curso de ação é, portanto, manter o engajamento com Trump, por mais louca e precipitada que seja sua diplomacia.
Mais importante, se Trump realmente quer um acordo duradouro, ele precisará de ajuda europeia e, talvez, tropas europeias. E para dar à Europa a confiança para fornecer isso, ele precisará declarar o compromisso dos EUA com a segurança da Europa, em vez de aderir a uma divisão como a de Ialta. Raramente a conferência de Munique viu tamanho frenesi. E ainda assim as negociatas, a intimidação e o roer de unhas que determinarão o futuro da Ucrânia e da Europa estão apenas começando./ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL