Enquanto o mundo observa a Síria ressurgir dos 50 anos de regime Assad, Israel bombardeia centenas de alvos militares no país, com o objetivo declarado de impedir que armas químicas e mísseis de longo alcance caiam nas mãos de terroristas. O Exército anunciou ter conduzido 350 ataques aéreos. Aos mesmo tempo, mobiliza tropas na fronteira, onde pretende estabelecer uma “zona de defesa”.
As Forças de Defesa de Israel (IDF da sigla em inglês) anunciaram ter destruído a maior parte dos estoques de armas estratégicas da Síria nas 48 horas que se seguiram à queda de Bashar Assada. A lista, afirma, inclui mísseis com alcance de até 190 quilômetros, caças, helicópteros de ataque, tanques e lançadores entre outras armas. Os ataques atingiram ainda instalações da Marinha Síria nos portos de Al-Bayda e Latakia, onde 15 navios de guerra estavam atracados.
“Israel está atacando principalmente depósitos de armas de destruição em massa, especialmente armas químicas, que o regime Bashar Assad usou contra a própria população”, aponta Gunther Rudzit, professor de Relações Internacionais da ESPM. “Agora, Israel também atacou a Marinha Síria o que representa uma mudança: está aproveitando a fraqueza síria porque não quer que o novo governo seja forte o suficiente para ameaçá-lo.”
Assad foi derrotado pela ofensiva da Organização para Libertação do Levante. O grupo rebelde tem suas origens ligadas ao Estado Islâmico e a Al Qaeda, mas buscou se desvencilhar dos extremistas nos últimos anos. Em declaração com foco no Ocidente o líder, Abu Mohammad al-Golani, indicado para chefiar o governo de transição, disse que o mundo não tem nada a temer e que a Síria agora está “caminhando para a estabilidade”.
A despeito das promessas, o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu alertou: “Se o novo regime na Síria permitir que o Irã se restabeleça, ou permitir a transferência de armas para o Hezbollah, responderemos fortemente e cobraremos um preço elevado.”
A declaração reforça os interesses estratégicos de Israel observados por analistas ouvidos pelo Estadão. Seriam eles: impedir o uso do território sírio como corredor para transferência de armas do Irã para grupos que apoia como o Hezbollah; evitar o surgimento de grupos hostis que possam representar ameaça direta; e demonstrar a capacidade de dissuasão.
Nesse sentido, Netanyahu atribuiu o colapso do regime sírio aos “golpes severos” que desferiu contra o Hamas, o Hezbollah e o Irã em rara entrevista coletiva no começo da semana. “O eixo ainda não desapareceu, mas como prometi, estamos mudando a face do Oriente Médio”, declarou.
De fato, o conflito civil sírio, adormecido há quase uma década, ressurgiu no momento em que o Hezbollah estava enfraquecido com o assassinato do seu líder Hassan Nasrallah e a incursão israelense no Líbano. Outro grande aliado de Bashar Assad, a Rússia, estava ocupada com a própria guerra na Ucrânia. E o regime, que no passado usou de repressão brutal para se manter no poder, caiu sem apresentar resistência.
Avanços sobre as Colinas do Golan
Diante do colapso, Israel passou a bombardear alvos militares na Síria ao mesmo tempo que o seu Exército avança para além do território ocupado nas Colinas do Golan — capturado na Guerra dos Seis Dias e anexado pelo lado israelense sem reconhecimento internacional, com exceção dos Estados Unidos.
O avanço pode não representar uma nova frente nova da guerra travada por Israel, afirma Karina Stange Calandrin, professora de Relações Internacionais (Ibmec-SP e Uniso) e colunista da Interesse Nacional. O risco de escalada, no entanto, está presente.
“Embora não se trate de uma nova frente completamente distinta — já que a disputa pelo Golan é histórica —, a instabilidade e a fragmentação do poder na Síria podem criar um ambiente mais volátil. Isso, somado às críticas do mundo árabe, aumentaria o risco de incidentes na fronteira e pressões regionais, elevando o potencial de escalada, ainda que não necessariamente leve a um confronto direto iminente”, afirma.
O porta-voz do Exército, Nadav Shoshani, admitiu que as tropas operavam em pontos adicionais à zona tampão, mas negou os relatos de que estivessem avançando em direção a Damasco, a capital da Síria. E destacou: “Não somos parte deste conflito e não temos nenhum interesse além de proteger nossas fronteiras e a segurança de nossos cidadãos”.
Reagrupamento de forças no Oriente Médio
O primeiro-ministro Binyamin Netanyahu defendeu a operação como necessária para garantir a segurança na fronteira israelense depois que as forças sírias abandonaram suas posições. O movimento, contudo, despertou reações da missão da ONU responsável por patrulhar a zona desmilitarizada nas Colinas do Golan e do mundo árabe.
O Catar, que atuou como mediador em negociações frustradas pelo cessar-fogo na Faixa de Gaza, descreveu a incursão como “ataque flagrante à soberania e unidade da Síria” e alertou para o risco de mais violência na região. A crítica foi seguida por adversários de Israel, como o Irã, e pela Arábia Saudita.
Riad ensaiou normalizar as relações com Tel-Aviv, em negociação mediada pelos Estados Unidos. O processo, no entanto, foi interrompido pela guerra em Gaza, que levou a uma aproximação improvável entre Arábia Saudita e o Irã, antigos rivais na disputa por influência no Oriente Médio.
“O Irã expandiu sua influência entre os sunitas com o chamado Eixo da Resistência, que abrange o Iraque, a Síria, o Hezbollah (no Líbano), o Hamas... Esse avanço ameaçava a Arábia Saudita”, lembra Gunther Rudzit, destacando que a aproximação entre Riad e Tel-Aviv tinha como base o inimigo em comum: Teerã.
É nesse contexto que o Hamas lança o ataque terrorista sem precedentes, que desencadeou a guerra em Gaza. “Para que? Para Israel fazer o que fez e tornar praticamente impossível essa normalização”, afirma Rudzit. A virada de mesa das negociações — apenas paralisadas no primeiro momento —, afirma, veio com a vitória de Donald Trump nos EUA e a indicação do conservador Mike Huckabee, defensor dos controvertidos assentamentos judeus na Cisjordânia, para o posto de embaixador em Israel. “O quadro mudou completamente”.
Agora, com o fim do regime Bashar Assad, o Irã perde um aliado estratégico no Oriente Médio. É difícil prever o futuro da Síria, onde os vencedores da guerra civil controlam apenas parte do país, fragmentado entres diferentes grupos e interesses. Mas é fato que, sem apoio sírio, o fornecimento de armas iranianas para aliados se tornaria mais complexo.
“O Irã veria sua capacidade de intimidar Israel e consolidar presença militar avançada ficar consideravelmente limitada”, destaca Karina Stange Calandrin.
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Guerra na Faixa de Gaza
O Hamas, por sua vez, saudou a queda de Bashar Assad — a relação era conturbada apesar do laço em comum com o Irã. Em comunicado, o grupo terrorista diz esperar que a Síria mantenha o “apoio ao povo palestino”. Analistas ouvidos pelo Estadão, contudo, destacam que a mudança do poder em Damasco não deve ter impactos significativos no conflito em Gaza.
Para Karina Stange Calandrin, o Hamas pode até tentar capitalizar a mudança em busca do apoio logístico e político. Acontece que as lideranças sírias tem uma série de desafios pela frente e devem evitar atritos diretos com Israel, que possam dificultar estabilização e o reconhecimento internacional da nova ordem em Damasco.
“A possibilidade de algum impacto sobre o conflito na Faixa de Gaza, dependeria mais das prioridades estratégicas e da disposição real do novo governo sírio em fornecer apoio tangível ao Hamas, o que não está garantido no momento”, conclui.
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