Análise | Por que o julgamento de Trump em NY mostra que o sistema de Justiça americano funciona

Mesmo que o Judiciário dos EUA tenha a tendência de proteger pessoas como Trump, a justiça esta funcionando

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Por Eugene Robinson (The Washington Post)

Chegou a hora do espetáculo, finalmente. O primeiro julgamento criminal de um ex-presidente dos Estados Unidos começou nesta segunda-feira, com Donald Trump sentado à bancada da defesa em um tribunal de Nova York — provando que, de alguma maneira, eventualmente nosso sistema Judiciário funciona.

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Horas antes, Trump vomitava nas redes sociais um último jorro de insultos em sua tentativa de intimidar o ministro da Suprema Corte de Nova York Juan Merchan e a Procuradoria de Nova York por indiciá-lo e julgá-lo. Trump ralhou contra “um Juiz totalmente confuso, um Procurador Corrupto, um Sistema Jurídico em CAOS, um Estado sendo atropelado por crimes violentos e corrupção, e capangas do desonesto Joe Biden (…)”. Blá-blá-blá.

Não funcionou. Na primeira ordem do dia Merchan negou uma moção dos advogados de Trump para que o magistrado se retirasse do caso. Merchan decidiu que a demanda era repleta de “insinuações e especulações sem fundamento” e afirmou que, segundo as regras da ética, um juiz é “obrigado a não se afastar quando não lhe for exigido”.

O ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump deixa a Trump Tower em Manhattan para participar de sua audiência no tribunal em Nova York, Estados Unidos  Foto: Noah K. Murray/AP

Obrigado, sua excelência, por não se deixar intimidar. Agradeço também o procurador do Distrito de Manhattan Alvin Bragg por estar preparado para avançar com esse indiciamento após os outros três julgamentos de Trump — dois em âmbito federal e um em âmbito estadual, em Geórgia — terem atrasado.

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Trump está errado, evidentemente, quando alega que todos os seus problemas com a Justiça não passam de uma “interferência eleitoral” destinada a prejudicar suas chances contra o presidente Joe Biden em novembro. Qualquer um que tenha prestado atenção à trajetória política de Trump deveria duvidar seriamente que até mesmo condenações múltiplas, pelos indiciamentos mais graves, surtiriam muito impacto no fim das contas. A palavra “vergonha” não significa nada no universo político de Trump.

Mas Trump está certo quando afirma que nós temos um sistema Judiciário “manipulado” e “em dois níveis”. Mas a Justiça é manipulada em favor de pessoas como ele. Réus ricos, famosos e poderosos têm tratamento cinco estrelas.

O ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump conversa com a imprensa antes de participar de sua audiência no tribunal criminal de Manhattan  Foto: Mary Altaffer/AP

Lembremos de como chegamos até aqui: alguns analistas jurídicos lamentam o fato desse caso em Nova York — a respeito de um pagamento pelo silêncio da atriz pornô Stormy Daniels pouco antes da eleição de 2016 supostamente ocultado de maneira ilegal — ser o primeiro a ir a julgamento. As acusações não são nada triviais: as ações de Trump silenciaram informações embaraçosas que poderiam ter influenciado o resultado de sua disputa contra Hillary Clinton. Numa terminologia que Trump entende, isso pode ser qualificado como “interferência eleitoral”.

Sim, as acusações nos outros casos envolvem assuntos mais graves de Estado: o papel que Trump desempenhou na conspiração para invalidar a eleição de 2020 e inspirando a insurreição de 6 de janeiro de 2021 no Capitólio; suas ações na tentativa de reverter o resultado da eleição no Estado da Geórgia, especificamente; e a suposta ocultação ilegal de documentos secretos altamente sensíveis em Mar-a-Lago, incluindo dentro um banheiro decorado com um candelabro de cristal.

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Mas por que esses julgamentos atrasaram? Porque Trump tirou vantagem do nosso sistema Judiciário em níveis distintos para fazer os processos transcorrerem mais lentamente.

O procurador-geral Merrick Garland é em parte responsável no caso do 6 de Janeiro, pois esperou tempo demais para iniciar a investigação sobre a possível culpabilidade de Trump. É verdade que nenhum Departamento de Justiça já havia colocado um ex-presidente em julgamento. Mas nenhum presidente havia supostamente conspirado para permanecer no poder anulando ou bloqueando a certificação de uma eleição que tivesse perdido.

Uma vez que as acusações foram finalmente apresentadas, porém, Trump teve dinheiro para contratar hordas de advogados que entraram com moção atrás de moção para diminuir o ritmo do processo como pudessem. Quando o tribunal rejeitou novos e extravagantes argumentos — de que um presidente possui “imunidade absoluta” contra acusações criminais, por exemplo — Trump pôde pagar seus advogados para apelar e então apelar novamente, até chegar à Suprema Corte.

Similarmente, no caso dos documentos secretos Trump acionou seus advogados para obstruir os trabalhos com uma chuvarada de moções pré-julgamento. Também ocorre que a inexperiente juíza que preside o caso foi nomeada para o âmbito federal por Trump — uma vantagem que nenhum outro réu já tinha tido na história da jurisprudência americana.

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Na Geórgia, Trump e seus corréus tiveram todos os meios para contratar advogados que investigaram os promotores de Justiça e descobriram uma relação pessoal que puderam definir como um possível conflito de interesses. Nenhum defensor público sobrecarregado de trabalho teria feito isso. O caso sobrevive, mas após meses de atraso.

E como Trump usou todo esse tempo que comprou? Atacando agressivamente magistrados (exceto a juíza amigável na Flórida), promotores e possíveis jurados que ousassem culpabilizá-lo. Trump desafiou o espírito e possivelmente determinações de ordens de sigilo, incluindo a imposta por Merchan. Um réu menos rico, menos famoso e menos poderoso teria sido multado por desacato à corte.

Mas o sistema está finalmente trabalhando. A seleção dos jurados do caso “Povo do Estado de Nova York versus Donald Trump” começou. E soa como justiça ele ser condenado ou absolvido. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Análise por Eugene Robinson

Eugene Robinson escreve uma coluna sobre política e cultura. Em suas três décadas de carreira no The Washington Post, foi repórter e editor de cidades, correspondente estrangeiro em Buenos Aires e Londres, editor de internacional e subeditor-executivo encarregado da seção Style do jornal

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