A atenção do mundo inteiro foi arrebatada pelo motim do Grupo Wagner contra o regime de Vladimir Putin. Mas a luta interna na Rússia não durou o suficiente para produzir alguma mudança significativa no campo de batalha na Ucrânia. A contraofensiva começou há menos de um mês, e já se iniciam os murmúrios do derrotismo, com “autoridades ocidentais” não identificadas dizendo à CNN que seu avanço “não está atendendo às expectativas em nenhuma frente”. Até o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, reconhece que a contra-ofensiva caminha “mais devagar do que o desejado”.
Na verdade, o ritmo arrastado do avanço não deveria ser nenhuma surpresa nem causar preocupação — ainda.
Muito poucas ofensivas avançam tão velozmente quanto a Operação Tempestade no Deserto, e esse ritmo de avanço só foi possível em virtude da massiva vantagem tecnológica que os Estados Unidos e seus aliados dispunham em relação ao Iraque. Antes da guerra terrestre começar, em 1991, as forças aliadas passaram mais de cinco semanas atingindo as forças iraquianas com todo tipo de armamento, de mísseis de cruzeiro Tomahawk a bombas lançadas de B-52. Então, depois dos implacáveis ataques aéreos, as forças terrestres aliadas foram capazes de introduzir um gigantesco “gancho de esquerda” através das areias sauditas para cercar as posições iraquianas fortificadas no Kuwait.
Nenhuma dessas opções se faz presente para os ucranianos: eles não possuem superioridade aérea, e não é absolutamente possível para eles contornar e cercar fortificações russas que se estendem por um front de 965 quilômetros — a não ser que eles avançassem sobre território russo para atacar as posições russas pela retaguarda. O problema dessa estratégia é que os EUA proíbem a Ucrânia de usar armas fornecidas pelos americanos para ataques dentro do território russo.
A única vez nesta guerra que os russos foram pegos com as calças arreadas foi durante o ataque surpresa da Ucrânia na Província de Kharkiv, em setembro, que libertou mais de 2.850 quilômetros quadrados em questão de dias. Mas é difícil replicar essa façanha. Mais típica foi a contraofensiva ucraniana que exigiu mais de dois meses (de 29 de agosto a 11 de novembro de 2022) de esforços para libertar a cidade de Kherson, no sul.
A atual missão da Ucrânia hoje é consideravelmente mais difícil do que naquele momento porque, nos sete meses passados desde então, o Kremlin mobilizou muito mais homens e instalou muito mais fortificações e campos minados. Os ucranianos estão agora avançando através de espessos campos minados, sobre um terreno aberto e plano, na direção das principais posições de fortificação russas conhecidas como Linha Surovikin (em homenagem a um general russo que supostamente soube com antecedência que a insurreição Wagner ocorreria). Os ucranianos avançam devagar porque tentam conter suas baixas — algo com que os comandantes russos sedentos de sangue não se importam. Dificilmente qualquer força militar ocidental se sairia melhor sem superioridade aérea.
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Os ucranianos tentam limitar suas perdas obstruindo linhas de abastecimento russas com ataques de longo alcance, utilizando os mísseis britânicos Storm Shadow. Um Storm Shadow foi aparentemente responsável por um tiro certeiro contra a ponte que liga a Crimeia à Província de Kherson — uma via crítica para as forças russas. “Os mísseis Storm Shadow surtiram efeito significativo no campo de batalha”, afirmou o secretário da Defesa britânico, Ben Wallace, na segunda-feira. Mas leva tempo para que o impacto de ataques contra linhas de abastecimento seja sentido em termos de escassez de munição de artilharia e combustível no front.
A maioria das nove brigadas de assalto treinadas e equipadas pelo Ocidente nem sequer entrou na batalha. O “evento principal” ainda está por vir, afirma o ministro da Defesa ucraniano, Oleksii Reznikov. Os meios de comunicação russos enfatizaram reveses ucranianos que resultaram na perda de alguns veículos de combate Bradley e tanques Leopard 2. Afirma-se, porém, que os blindados ocidentais protegeram suas tripulações de ferimentos graves; e a vasta maioria dos tanques e veículos de combate enviados à Ucrânia pelo Ocidente permanece intacta.
O que nós estamos vendo neste momento são ataques de sondagem, com intenção de detectar pontos fracos nas linhas russas — ou criar algum. Mark Arnold, brigadeiro-general do Exército americano que tem aconselhado as forças ucranianas, disse-me que “os ucranianos estão tentando provocar os russos a acionar reservas móveis, para atingir os russos em outras posições”. Se os russos morderem a isca, o ataque ucraniano poderia ganhar força.
“Ainda que dificilmente fosse este o ponto em que os estrategistas ucranianos esperariam estar neste momento”, disse-me Michael Kofman, do Fundo Carnegie para a Paz Internacional, o avanço das forças de Kiev “está totalmente dentro das margens de expectativa entre os analistas que previram dificuldades e custos numa operação contra defesas preparadas. (…) É cedo demais para avaliar o curso da operação, e seu desempenho inicial não é determinador”.
Em vez de julgar os ucranianos, o Ocidente deveria estar fazendo mais para ajudá-los. Ainda que os EUA tenham fornecido mais de US$ 40 bilhões em ajuda militar para a Ucrânia e os aliados dos americanos tenham acionado outros bilhões, a Ucrânia também pagou US$ 800 milhões por equipamentos que nunca foram entregue ou que chegaram em condições tão precárias que não puderam ser usados. Conforme noticiou o New York Times, “Uma entrega recente de 33 sistemas de artilharia autopropulsada doados pelo governo italiano fornece um exemplo característico. Vídeos mostraram fumaça saindo do motor de um deles, e líquido de refrigeração do motor vazando de outro”.
Alguns equipamentos americanos (incluindo os veículos de combate Bradley e os obuses M777) também têm sido mal conservados, disse-me um bem-informado observador ucraniano, a ponto de necessitar de reparos extensos antes de serem colocados em funcionamento — e alguns desses sistemas simplesmente tiveram componentes canibalizados.
Há também bastante equipamento que o governo Biden simplesmente se recusou a fornecer, como os Sistemas de Mísseis Táticos de longo alcance — capazes de ajudar os ucranianos a mirar com mais eficiência bases russas e linhas de abastecimento do inimigo na Crimeia, ou caças de combate F-16 que poderiam permitir aos ucranianos defender suas tropas de ataques de helicópteros russos Ka-52. Os F-16 podem finalmente chegar da Europa no outono — tarde demais para influenciar a atual contraofensiva. Os tanques Abrams dos EUA também chegarão tarde demais para esta temporada de combates. Além disso, falta aos ucranianos veículos suficientes de detonação de minas e equipamentos de construção de pontes para atravessar trincheiras.
Ainda que o secretário de Estado americano, Antony Blinken, alegue que os ucranianos “têm em mãos o que precisam para ser bem-sucedidos”, isso pode não ser verdade. Se os ucranianos vencerem, terá sido apesar das limitações em seu equipamento e treinamento. Se sua ofensiva não romper as linhas russas, terá sido porque não lhe foram fornecidas as armas necessárias — em particular caças de combate modernos e mísseis de longo alcance. Qualquer revés que os ucranianos sofrerem deveria fazer o Ocidente redobrar seu apoio em vez de pressionar prematuramente por negociações que resultem num conflito congelado.
Nós, no Ocidente, não podemos determinar quem chefia o Kremlin. Mas ao apoiar a Ucrânia ao máximo, nós podemos colaborar com a pressão sobre o regime criminoso de Vladimir Putin, cujas rachaduras começam a emergir após 16 meses de guerra. Dada a crescente evidência de que parte do Exército russo apoiou a revolta Wagner, Putin poderá ter de expurgar suas Forças Armadas no meio da guerra. Simplesmente remover os soldados Wagner — que estão entre os mais eficazes combatentes da Rússia — enfraquecerá os invasores. A Ucrânia ainda poderá se beneficiar, contanto que seus apoiadores ocidentais demonstrem a paciência necessária. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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