Por que o Irã se tornou a maior ameaça de desinformação na corrida presidencial dos EUA?

Com uma onda de operações de hackers e sites falsos, o Irã intensificou seus esforços para desacreditar a democracia americana e possivelmente desequilibrar a eleição contra o ex-presidente Donald Trump

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Por Steven Myers (The New York Times), Tiffany Hsu (The New York Times) e Farnaz Fassihi (The New York Times)

Um site chamado Savannah Time se descreve como “sua fonte confiável de notícias e perspectivas conservadoras na vibrante cidade de Savannah”. Outro site, o NioThinker, quer ser “seu destino de referência para notícias perspicazes e progressistas”. O canal online Westland Sun parece atender muçulmanos no subúrbio de Detroit.

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Nenhum deles é o que parece ser. Em vez disso, são parte do que autoridades americanas e analistas de empresas de tecnologia dizem ser uma campanha cada vez mais intensa do Irã para influenciar a eleição presidencial americana deste ano.

Faz tempo que o Irã realiza operações clandestinas de informação contra seus adversários, especialmente Israel, Arábia Saudita e Estados Unidos, mas até agora a maioria de suas atividades foi conduzida sob a sombra de campanhas semelhantes por parte da Rússia e da China. Seus mais recentes esforços de propaganda e desinformação se tornaram mais descarados, mais variados e mais ambiciosos, de acordo com o governo dos EUA, autoridades de empresas e especialistas em Irã.

O líder supremo do Irã, o ayatollah Ali Khamenei, vota nas eleições iranianas em Teerã, Irã  Foto: Arash Khamooshi/NYT

Os esforços do Irã parecem ter a intenção de minar a campanha do ex-presidente Donald Trump para retornar à Casa Branca, de acordo com autoridades e empresas, mas também têm como alvo o presidente Biden e a vice-presidente Kamala Harris, sugerindo terem o objetivo mais amplo de semear discórdia interna e desacreditar o sistema democrático nos EUA de forma mais ampla aos olhos do mundo.

“O Irã está se tornando cada vez mais agressivo em seus esforços de influência estrangeira, buscando atiçar a discórdia e minar a confiança em nossas instituições democráticas”, alertou recentemente Avril Haines, diretora de inteligência nacional.

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Haines alertou os americanos para serem cautelosos “ao interagir online com contas e atores que não conhecem pessoalmente”.

Seu escritório se juntou ao FBI e à Agência de Segurança Cibernética e de Infraestrutura no mês passado para emitir uma declaração observando que “o Irã percebe as eleições deste ano como particularmente consequentes em termos do impacto que podem ter em seus interesses de segurança nacional, aumentando a inclinação de Teerã de tentar moldar o resultado delas”.

O ex-presidente americano e candidato republicano a presidência, Donald Trump, participa de um evento em Washington, Estados Unidos  Foto: Jose Luis Magana/AP

A missão do Irã nas Nações Unidas se recusou a comentar campanhas de desinformação e sites que têm como alvo os EUA. Em uma declaração anterior emitida em 19 de agosto, abordando os esforços para hackear a campanha de Trump, a missão disse que as alegações “não têm fundamento e são desprovidas de qualquer credibilidade” e que o Irã “não fomenta nem a intenção nem a motivação de interferir na eleição presidencial dos EUA”.

Operação

A vasta rede de agentes de influência e hackers do Irã inclui empresas de fachada controladas pelo Corpo da Guarda Revolucionária, de acordo com um oficial iraniano e outro iraniano que trabalha no setor de mídia e informação do estado, ambos familiarizados com as campanhas de desinformação do país. Ambos pediram que seus nomes não fossem publicados porque não estavam autorizados a falar publicamente. O Corpo da Guarda Revolucionária é uma força poderosa e de elite enraizada em todos os setores do país, incluindo a economia, a política e o ciberespaço.

O governo e a Guarda também operam uma rede de indivíduos que usam plataformas de redes sociais para promover os pontos de vista do Irã, alguns sob nomes falsos. Eles também encomendam projetos de empresas de tecnologia e startups no Irã, algumas das quais não estão totalmente cientes dos verdadeiros propósitos dos projetos, disseram as autoridades.

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Os dois iranianos — um é membro da Guarda — disseram que o governo do Irã aumentou os já significativos recursos que investiu em suas operações de informação desde 2022, quando protestos liderados por mulheres abalaram o país. Eles disseram que agentes do governo rotineiramente exploram universidades iranianas para recrutar os melhores graduados em tecnologia, oferecendo altos salários, financiamento para pesquisa e espaço para trabalhar.

O Líder Supremo do Irã, aiatollah Ali Khamenei, participa de uma reunião com o presidente do Irã, Masoud Pezeshkian, em Teerã, Irã  Foto: Escritório do Líder Supremo do Irã / AP

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“A estratégia do Irã no campo da informação e propaganda é semelhante à forma como a Guarda Revolucionária administra suas milícias representantes em todo o Oriente Médio”, disse Amir Rashidi, diretor de direitos digitais e segurança do Miaan Group, uma organização de direitos humanos com foco no Oriente Médio. “Eles se infiltram gradualmente, mas com força, e planejam para o longo prazo.”

Já neste ano, agentes iranianos conseguiram hackear os e-mails de Roger Stone, um antigo conselheiro de Trump, e tentaram penetrar na campanha de Biden e de Kamala, com resultados pouco claros. A Meta divulgou no mês passado que havia detectado um esforço semelhante contra ambas as campanhas políticas no aplicativo de mensagens WhatsApp.

O foco do Irã nos Estados Unidos se intensificou quando Israel, um aliado americano, invadiu Gaza após o ataque do Hamas em 7 de outubro. Desde então, Israel também trocou tiros com o Hezbollah no Líbano. Ambos os movimentos são parte de uma rede de milícias apoiada pelo Irã no Oriente Médio.

Protestos

Nos EUA durante o segundo trimestre, o Irã também usou as redes sociais para incitar protestos organizados por estudantes contra a guerra de Israel em Gaza, com agentes fornecendo assistência financeira e se passando por estudantes, de acordo com avaliações da inteligência americana.

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O Irã negou envolvimento nos protestos, embora o líder supremo do país, aiatolá Ali Khamenei, os tenha aplaudido em uma carta aberta.

Desde o início da República Islâmica em 1979, a desinformação e a propaganda têm sido uma parte essencial da identidade do regime. Conforme a tecnologia evoluiu, também evoluíram as táticas e ambições do Irã, com Khamenei em 2011 descrevendo o ciberespaço como a nova fronteira para a “jihad” (guerra) de informação do Irã.

Naquele ano, ele ordenou a criação do Conselho Supremo para o Ciberespaço, um órgão de formulação de políticas. Ele apelou ao governo iraniano e às forças armadas para que trabalhassem com o conselho, descrito por grupos de direitos humanos como uma ferramenta estatal para a opressão, para promover os interesses do país e a ideologia islâmica.

O presidente do Irã, Masoud Pezeshkian, participa de uma entrevista para a televisão estatal do Irã na capital Teerã  Foto: Escritório da presidência do Irã / AP

“O Irã basicamente transferiu sua robusta infraestrutura existente e mentalidade de desinformação das ferramentas de mídia tradicionais para o ciberespaço e, nesse processo, globalizou sua missão”, disse Omid Memarian, um especialista em Irã ligado ao Dawn, um grupo de defesa dos direitos sediado em Washington, que pesquisou a desinformação.

Antes de 2020, no entanto, o Irã demonstrou pouco interesse em afetar diretamente as eleições americanas, de acordo com um relatório publicado no início daquele ano pelo Digital Forensic Research Lab do Atlantic Council.

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Isso começou a mudar depois que o presidente Trump abandonou unilateralmente o acordo nuclear de 2015 entre o Irã e as potências mundiais e impôs severas sanções econômicas. Em 2020, Trump também ordenou o assassinato em Bagdá do major-general Qassim Suleimani, que liderava a poderosa Força Quds da Guarda Revolucionária.

As operações de influência ligadas ao Irã foram aceleradas desde então, observou a Microsoft em um relatório no ano passado. Os pesquisadores da empresa identificaram sete campanhas distintas em 2021; um ano depois, havia 24.

Clint Watts, diretor do Centro de Análise de Ameaças da Microsoft, alertou em um relatório no mês passado que uma operação iraniana vem preparando nos EUA desde março atividades “ainda mais extremas”. Isso pode incluir a incitação à violência contra figuras ou grupos políticos para semear dúvidas quanto ao resultado da eleição.

Pelo menos cinco sites enganosos surgiram para alimentar os eleitores americanos com um regime constante de conteúdo destinado a minar o apoio a Israel e a confiança na democracia dos EUA de forma mais ampla, de acordo com a Microsoft e a OpenAI, que detectaram o uso de suas ferramentas de inteligência artificial nesses esforços.

O ex-presidente americano e candidato presidencial republicano, Donald Trump, participa de uma entrevista na emissora americana Fox Nexs em Harrisburg, Pensilvânia, no dia 4 de setembro  Foto: Mandel Ngan/AFP

As operações de informação do Irã têm como alvo principal Trump. Um artigo no NioThinker, o site de tendência progressista que a Microsoft vinculou aos esforços do Irã, descreveu o ex-presidente como um “elefante entupido de opioides na vidraçaria do MAGA” e um “litigiossauro louco e delirante”.

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As campanhas iranianas, no entanto, também têm como alvo os democratas. Uma manchete recente no Savannah Time, que não tem nenhuma conexão óbvia com a cidade na Geórgia, alertou que Kamala representava “um flerte perigoso com os controles de preços no estilo comunista”. O conteúdo do site frequentemente ecoa veículos de notícias conservadores nos EUA, protestando contra políticas que apoiam questões LGBTQ ou outras questões de gênero.

Os dois oficiais iranianos disseram que o Irã não estava muito preocupado com o vencedor final em novembro e acreditavam que a animosidade de Washington transcende qualquer partido político. O objetivo maior, eles disseram, era semear a agitação, aprofundar a polarização e colocar o Irã no nível da Rússia e da China como uma potência geopolítica.

O Irã também acusou os EUA e Israel de realizar campanhas de desinformação com o objetivo de desestabilizar o país, que foi alvo de ataques cibernéticos de ambos, incluindo entre os alvos um navio militar e seu sistema nacional de distribuição de combustível.

Influência russa

Os esforços de influência do Irã lembram aqueles da Rússia, que hackeou a campanha de Hillary Clinton em 2016 e conduziu operações de influência nas redes sociais. Na eleição presidencial de 2020, o Irã obteve dados de registro de eleitores americanos e os usou para enviar e-mails falsos e intimidadores aos eleitores democratas. Algumas das mensagens fingiam ser dos Proud Boys, um grupo extremista de extrema direita, enquanto outras continham links para um vídeo enganoso que tentava levantar dúvidas em relação à votação pelo correio.

Uma avaliação de inteligência de 2021 trazida a público descobriu que o Irã tentou minar as perspectivas eleitorais de Trump e desacreditar o processo democrático, com um objetivo maior de prejudicar a imagem dos EUA no Oriente Médio.

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Durante as eleições intercalares em 2022, o Irã tentou interferir mais uma vez, esperando “explorar aparentes divisões sociais”, de acordo com outro relatório de inteligência tornado público. Especialistas encontraram evidências de que autoridades iranianas queriam fortalecer grupos nacionalistas e usar as redes sociais para colocar extremistas uns contra os outros em 2024.

O Irã também considerou táticas como estabelecer agências de notícias falsas para interagir com veículos de mídia americanos e implantar “equipes de trolls” nas redes sociais, de acordo com a avaliação de inteligência.

O Twitter, a plataforma posteriormente renomeada para X, encontrou três redes de influência com sede no Irã em outubro de 2022, de acordo com a avaliação. Elas eram compostas principalmente de contas fingindo ser americanos de esquerda que defendiam sentimentos pró-palestinos e tentavam arrecadar fundos para candidatos americanos e endossar políticos locais, geralmente progressistas.

“Eles sabem ser bastante criativos”, disse John Hultquist, analista-chefe da Mandiant Intelligence do Google, sobre as operações de informação do Irã.

As operações de influência secreta de Teerã são amplamente conduzidas por unidades dentro da Guarda. O governo dos EUA identificou pelo menos três empresas de fachada que, segundo ele, são controladas pela Guarda: União Internacional de Mídia Virtual, União Islâmica Iraniana de Rádio e Televisão e Instituto Bayan Rasaneh Gostar.

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Um anúncio de emprego para o Bayan Gostar não descreve o tipo de trabalho que a empresa realiza, mas diz que os funcionários podem trabalhar remotamente e receber um salário e benefícios do governo. Os candidatos devem ser “jovens e ambiciosos” e estar “familiarizados com o ciberespaço e plataformas de redes sociais”.

O Departamento do Tesouro impôs sanções a todas as três empresas antes das eleições de 2020. Ele acusou especificamente o Bayan Gostar de “explorar questões sociais nos EUA, incluindo a pandemia de Covid-19, e desmerecer figuras políticas dos EUA”.

Agora, faltando apenas semanas para a próxima eleição americana, o Irã parece destemido.

“Eles claramente não estão preocupados com uma reação”, disse Bret Schafer, um membro sênior da Alliance for Securing Democracy do German Marshall Fund. “A tolerância ao risco é bastante alta e isso os torna uma preocupação, porque se eles não estão preocupados em serem pegos ou em inventar apelidos e constranger, isso lhes permite simplesmente tentar um monte de coisas e ser bastante agressivos”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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