Por que o plano de paz de Biden para o Oriente Médio é inviável? Leia a coluna de Thomas Friedman

Acordo que busca normalizar relações entre Israel, Arábia Saudita e os palestinos pode provocar ruptura na coalizão do governo israelense

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Por Thomas Friedman

Quanto mais eu obtenho informações sobre o complexo acordo de paz e segurança que time Biden está tentando costurar entre Estados Unidos, Arábia Saudita, Israel e os palestinos, mais eu me convenço de que se houver sucesso ele ganhará o Nobel da Paz e de Física. Porque encontrar uma maneira de equilibrar os diferentes interesses dessas quatro partes faz a mecânica quântica parecer tão fácil quanto jogar jogo da velha.

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Mas para simplificar para vocês, estimados leitores, dadas as muitas permutas que este pacto poderia implicar, permita-me colocar foco na única forma que atende ao interesse dos Estados Unidos e que eu apoiaria.

Trata-se de um acordo que normalizaria relações entre Israel e Arábia Saudita, forjaria uma relação de segurança mais profunda entre EUA e Arábia Saudita e ocasionaria avanços concretos no sentido de uma solução de dois Estados entre Israel e os palestinos — mas faria isso de uma maneira que quase certamente provocaria a ruptura da atual coalizão de governo israelense, que é liderada por supremacistas judeus de extrema direita de um tipo que nunca teve poderes de segurança nacional em Israel antes.

O então vice-presidente dos EUA, Joe Biden (à esquerda), e o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, olham um para o outro enquanto proferem declarações conjuntas durante a sua reunião em Jerusalém, a 9 de março de 2016.  Foto: Debbie Hill / Reuters

Mas, lamentavelmente, não é esta a versão que o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, tenta nos vender. Portanto, eu quero fazer um apelo direto ao presidente Joe Biden e ao príncipe-herdeiro saudita, Mohammed bin Salman: não deixem Netanyahu fazê-los de idiotas úteis. Vocês não podem normalizar as relações com um governo israelense que não é normal, que nunca será um aliado estável dos americanos nem parceiro dos sauditas. E neste momento o governo de Israel não é normal.

Considerem apenas dois exemplos: o ex-chefe do Mossad Tamir Pardo alertou recentemente que esta coalizão de governo israelense, indubitavelmente reunida por Netanyahu com o objetivo de mantê-lo fora da cadeia em razão das acusações de corrupção às quais ele responde, inclui “partidos racistas horríveis”. Quão racistas? “Alguém pegou a Ku Klux Klan e a trouxe para dentro do governo”, afirmou Pardo.

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E tem mais essa: na semana passada, o ministro de Relações Exteriores de Israel, Eli Cohen, instruiu, segundo relatos, o embaixador israelense na Romênia, Reuven Azar, e o líder colono Yossi Dagan a se encontrar com o chefe de um partido de extrema direita em Bucareste — um partido que Israel boicotava havia muito tempo em razão de seu histórico de declarações antissemitas e negando a existência do Holocausto.

Por quê? Conforme explicou o jornal Haaretz, isso é parte de um esforço planejado por Dagan “para promover relações entre Israel e partidos europeus de extrema direita para convencê-los a apoiar os assentamentos coloniais de Israel na Cisjordânia”. Sim, Netanyahu e seus aliados estão tentando construir uma alternativa ao apoio diplomático dos EUA com partidos xenófobos e extremistas na Europa, que não se importam com assentamentos coloniais.

Ficaram chocados? É compreensível. A estrutura dos 75 anos de relações EUA-Israel foi construída em torno do objetivo de salvar Israel de ameaças externas de países árabes e do Irã. Então é difícil para diplomatas americanos, militares americanos, cidadãos americanos e organizações judaicas americanas dar-se conta de que sua função agora é salvar Israel de uma ameaça interna israelo-judaica manifestada pelo próprio governo do país.

Israelenses participam numa manifestação na cidade de Bnei Brak, dominada pelos ultraortodoxos, em protesto contra a reforma judicial do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que, segundo eles, viola os direitos das mulheres, em Bnei Brak, Israel, 24 de agosto de 2023.  Foto: Nir Elias/ Reuters

Muita gente está em negação, mais notavelmente no Comitê de Assuntos Públicos EUA-Israel (AIPAC), o lobby pró-Israel mais poderoso nos EUA, que continua cúmplice de Netanyahu em Washington e ignora os defensores da democracia israelense. O Haaretz descreveu recentemente o AIPAC como o “lobby pró-Netanyahu e anti-Israel” no Congresso americano.

Mas é melhor essa turma acordar, porque depois de quatro anos de uma coalizão como esta à frente de de Israel nós poderemos dar adeus à ideia de que algum dia Israel voltará a ser um aliado confiável dos EUA.

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E isso nos traz de volta ao acordo com os sauditas, que foi concebido para combinar dois componentes. O primeiro é uma aliança Washington-Riad renovada, segundo a qual os EUA concordam com algum tipo de tratado de defesa mútua enquanto os sauditas obtêm acesso às armas americanas mais avançadas. Em troca, a Arábia Saudita fica do lado dos EUA e limita relações militares, tecnológicas e econômicas com a China.

A segunda parte do acordo era uma normalização de relações entre os sauditas e Israel contanto que os israelenses abrissem concessões aos palestinos para manter viva a esperança de uma solução de dois Estados.

Eu abordarei a questão Riad-Washington posteriormente, quando todos os detalhes forem conhecidos. Mas conforme afirmei, quando se trata do componente israelo-saudita-palestino, há duas permutas possíveis — uma delas atende ao interesse americano, a outra definitivamente não.


A permuta que definitivamente não atende ao nosso interesse é a que Netanyahu tentará convencer os EUA a empreender. Bibi está tentando cumprir quatro objetivos — minar o poder da Suprema Corte israelense de conter seu governo extremista ao mesmo tempo que transforma a si mesmo em um herói no país alcançando um acordo de paz com a Arábia Saudita sem ter de dar aos palestinos nada significativo, portanto avançando com o sonho de sua coalizão de anexar a Cisjordânia — enquanto faz a Arábia Saudita pagar a conta e Biden dar sua bênção.

Biden e MBS têm de rejeitar esses termos sem pensar duas vezes.

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O acordo no qual eles devem insistir deve estipular que, em troca da normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita, Israel tem de congelar todas as construções de assentamentos coloniais na Cisjordânia nas áreas designadas para o Estado palestino, para possibilitar negociações futuras; não legalizar mais nenhum assentamento israelense clandestino; e, mais importante, insistir para que Israel transfira território da Área C na Cisjordânia, conforme a definição dos Acordos de Oslo, para Áreas B e A, sobre as quais a Autoridade Palestina exerce maior controle.

Uma mulher agita bandeiras enquanto está em cima de um manifestante, à medida que um conjunto de manifestantes participa numa manifestação contra o primeiro-ministro do Israel Benjamin Netanyahu.  Foto: RONEN ZVULUN / REUTERS

EUA e Arábia Saudita também têm de declarar que o objetivo do processo diplomático será uma solução de dois Estados na Cisjordânia. Todos os presidentes americanos têm se comprometido com esse intuito — que o rei saudita, Abdullah, também enfatizou durante a entrevista que me concedeu em 2002 anunciando a iniciativa de paz saudita, que virou posteriormente a Iniciativa de Paz Árabe.

Esses termos são vitais porque conformam um expediente que os supremacistas judeus no gabinete de Netanyahu não são capazes de engolir e que o primeiro-ministro não é capaz de falsear. Portanto, forçariam o governo de Netanyahu e o povo israelense a escolher: vocês preferem a anexação ou normalizar relações com o país muçulmano mais importante do planeta — e obter acesso a outras nações muçulmanas, como Indonésia e Malásia?

Se nós conseguirmos colocar esta escolha sobre a mesa, isto quase certamente arrebentaria a atual coalizão de governo israelense. O ministro israelense das Finanças, Bezalel Smotrich, de extrema direita, alertou a todos na semana passada que “nós não abriremos nenhuma concessão aos palestinos” para garantir um acordo de normalização de relações com a Arábia Saudita. “Isso não passa de ficção”, declarou ele.

Mesmo que Israel tenha interesse que os EUA intermedeiem um acordo com os sauditas, “isso não tem nada a ver com Judeia e Samaria”, acrescentou Smotrich, referindo-se à Cisjordânia por seus nomes bíblicos.

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Só para lembrar: desde a britânica Comissão Peel, de 1936, o movimento sionista e Israel aceitam que o ordenamento para a resolução do conflito palestino-israelense tem de ser dois Estados para dois povos — por meio do plano de partilha aprovado pela ONU em 1947, das Resoluções 242 e 338 da ONU, de Camp David, Oslo e, finalmente, dos Acordos de Abraão, de 2020. Este comprometimento de Israel tem sido um pilar crucial de sua aliança com os EUA.

A atual coalizão de Netanyahu é o primeiro governo israelense em oito décadas que — como parte do acordo de formação da coalizão — estabeleceu a anexação israelense da Cisjordânia como um objetivo declarado; ou, conforme colocam seus termos, “aplicar soberania na Judeia e Samaria”, rejeitando qualquer partilha.

Os EUA não podem permitir que isto aconteça. Netanyahu tem alterado unilateralmente fundamentos da nossa relação e nos testado. É hora de Washington testar o governo de Netanyahu com uma escolha clara: anexação ou normalização.

Pessoas seguram bandeiras durante uma manifestação contra o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Foto: RONEN ZVULUN / REUTERS

Eu não consigo prever o que poderia acontecer se esta escolha explodir a coalizão de Netanyahu. Novas eleições em Israel? Ou um governo de unidade nacional, com a centro-esquerda e a centro-direita trabalhando juntas para trazer Israel de volta à sanidade?

Por agora, minha única certeza é a respeito do que tem de ser impedido: esta coalizão israelense tem de ser impedida; e, ainda mais importante, um acordo ruim — que permita a Netanyahu esmagar a Suprema Corte de Israel e ganhar a normalização de relações com a Arábia Saudita pagando um preço tão pequeno aos palestinos ao ponto de os fanáticos direitistas de seu gabinete poderem continuar a empurrar o país para o abismo — tem de ser impedido absolutamente.

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Não seria um acordo que Biden — um dos presidentes americanos mais hábeis em política externa em todos os tempos — gostaria que constasse em seu legado, não seria um acordo que constituiria uma fundação estável para a parceria estratégica israelo-saudita que MBS busca.

Simplesmente digam não. O contrário seria vergonhoso. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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