Por que sorteios podem ser melhores do que eleições para a democracia? Leia a análise

As pessoas acham que líderes escolhidos aleatoriamente são menos eficazes do que os determinados sistematicamente, mas em múltiplos experimentos conduzidos pelo psicólogo Alexander Haslam, o oposto mostrou-se verdade

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Por Adam Grant*

THE NEW YORK TIMES- Às vésperas do primeiro debate da corrida presidencial de 2024, a confiança no governo registra baixas históricas. As autoridades têm trabalhado duro para salvaguardar as eleições e assegurar os cidadãos a respeito de sua integridade. Mas se quisermos preservar a integridade da função pública, nós poderíamos estar em posição muito melhor se eliminássemos de uma vez todo tipo de eleição.

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Se você acha que isto soa antidemocrático, pense outra vez. Os gregos antigos inventaram a democracia, e em Atenas muitas autoridades do governo eram selecionadas por meio de sorteio — uma loteria aleatória entre um conjunto de candidatos. Nos Estados Unidos, nós já usamos um tipo de sorteio para selecionar jurados. E se nós fizéssemos o mesmo com prefeitos, governadores, legisladores, ministros da Suprema Corte e até presidentes?

As pessoas acham que líderes escolhidos aleatoriamente são menos eficazes do que os determinados sistematicamente. Mas em múltiplos experimentos conduzidos pelo psicólogo Alexander Haslam, o oposto mostrou-se verdade. Os grupos na realidade tomaram decisões mais inteligentes quando seus líderes foram escolhidos aleatoriamente do que quando eleitos por seus membros ou escolhidos com base em sua capacidade de liderança.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, já anunciou que vai tentar ser reeleito nas eleições de 2024  Foto: Pablo Martinez Monsivais / AP

Por que líderes escolhidos aleatoriamente são mais eficazes? Eles lideram mais democraticamente. “Líderes eleitos sistematicamente podem subverter objetivos do grupo”, sugerem Haslam e seus colegas, porque têm uma tendência a “afirmar sua superioridade pessoal”. Quando um líder é ungido pelo grupo, o poder pode facilmente lhe subir à cabeça: eu sou o escolhido.

Quando um indivíduo sabe que foi escolhido aleatoriamente, ele não experimenta poder suficiente para se corromper. Em vez disso, sente uma responsabilidade realçada: eu não fiz nada para conquistar essa função, portanto preciso trabalhar para representar bem o grupo. E em um dos experimentos de Haslam, quando um líder é escolhido aleatoriamente, os membros tendem mais a apoiar as decisões do grupo.

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Ao longo do ano passado, eu ventilei a ideia do sorteio a vários dos atuais congressistas americanos. Sua preocupação imediata é capacidade: como podemos garantir que cidadãos escolhidos aleatoriamente serão capazes de governar?

Na Atenas antiga, os cidadãos podiam escolher se participavam ou não do sorteio — e também tinham de ser aprovados em um exame a respeito de sua capacidade de exercer funções públicas e fazer valer direitos. Nos EUA, imagine que qualquer um que queria entrar no sorteio tenha de ser aprovado em um teste cívico — o mesmo padrão que o aplicado sobre solicitantes de cidadania. Nós poderíamos acabar encontrando líderes que entendam a Constituição.

O ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, está buscando a nomeação do Partido Republicano para voltar a Casa Branca em 2024  Foto: Alex Brandon / AP

Um sistema de sorteios também melhoraria nossas chances de evitar os piores candidatos em primeiro lugar. Quando se trata de caráter, nossas autoridades eleitas não estão exatamente arrasando. Parafraseando William Buckley Jr, eu preferiria ser governado pelas 535 primeiras pessoas da lista telefônica. Porque as pessoas mais atraídas ao poder são normalmente as menos capazes de exercê-lo.

As características mais perigosas em um líder são o que os psicólogos chamam de tríade de traços obscuros de personalidade: narcisismo, maquiavelismo e psicopatia. Pessoas com esses traços têm em comum a disposição de explorar os outros para ganhos pessoais. Pessoas com a tríade obscura de traços tendem a ser mais ambiciosas politicamente — são atraídas à autoridade por si só. Mas nós com frequência nos encantamos com elas. É você, George Santos?

Estudo

Em um estudo mundial sobre eleições, candidatos avaliados com altos índices de psicopatia na realidade se saem melhor nas urnas. Nos EUA, presidentes classificados com tendências de psicopatia e narcisismo foram mais persuasivos com o público do que homólogos em outros países. Uma explicação comum é que eles são mestres no domínio destemido e no charme superficial, e nós confundimos sua confiança com competência. Infelizmente, isso começa cedo: até crianças que apresentam traços de personalidade narcisista conseguem mais indicações a lideranças e dizem ser líderes melhores do que as demais. (E não são.)

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Se uma pessoa com a tríade obscura ganha uma eleição, todos nós saímos perdendo. Quando psicólogos avaliaram os 42 primeiros presidentes americanos, os narcisistas mostraram-se mais dispostos a assumir riscos irresponsáveis, tomar decisões antiéticas e sofrer impeachment. Acrescente uma pitada de maquiavelismo e outra de psicopatia e temos autocratas como Putin, Erdogan, Orbán e Duterte.

Eliminar as votações faria com que candidatos com a tríade de traços obscuros tivessem menos chance do que agora de ascender ao topo do poder. Evidentemente há também o risco de o sorteio nos privar da oportunidade de selecionar um líder com capacidades distintivas. Neste momento, este é um risco que eu estou disposto a correr. Por mais sortudos que os EUA possam ter sido por ter Lincoln no comando, é mais importante limitar nossa exposição a um mau caráter do que apostar na esperança de encontrar o melhor.

Os candidatos a nomeação republicana para a disputa pela Casa Branca participam de um debate em Milwaukee, Estados Unidos  Foto: Morry Gash/ AP

Além disso, se Lincoln estivesse vivo hoje seria difícil imaginá-lo candidato. Em um mundo repleto de discórdia e escárnio, evidências mostram que os congressistas são cada vez mais recompensados por incivilidades. E eles sabem disso.

Os sorteios dariam chance justa para indivíduos que não são altos o suficiente nem másculos o suficiente para concorrer. Também abririam a porta para pessoas que não têm conexões suficientes concorrer. Nosso falido sistema de financiamento de campanha permite que ricos e poderosos comprem seus sucessos nas disputas ao mesmo tempo que impede pessoas sem dinheiro ou influência de disputar eleições. E provavelmente esses indivíduos seriam os melhores candidatos: pesquisas sugerem que, em média, pessoas que crescem em famílias de renda baixa mostram-se líderes mais eficazes e tendem menos à fraude — menos propensos ao narcisismo tanto quanto à elegibilidade.

Mudar para um sistema de sorteios teria também poupado muito dinheiro. Somente as eleições de 2020 custaram mais de US$ 14 bilhões. E se não houver campanhas, não haverá interesses especiais oferecendo-se para pagar por elas.

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Finalmente, a inexistência das eleições também põe fim ao espaço para manipulação e às disputas no Colégio Eleitoral. Em vez de questionar se milhões de votos foram contados corretamente, nós assistiríamos essa loteria correr ao vivo, como fazemos com o sorteio das equipes do basquete profissional na ordem de escolha dos jogadores novatos.

Outros países começaram a testemunhar as promessas dos sorteios. Duas décadas atrás, Províncias canadenses e o governo holandês começaram a usar sorteios para criar assembleias de cidadãos que produziam ideias para melhorar a democracia. Nos últimos anos, os governos britânico e alemão organizaram sorteios para selecionar cidadãos para trabalhar em políticas relacionadas às mudanças climáticas. A Irlanda tentou um modelo híbrido, reunindo 33 políticos e 66 cidadãos escolhidos aleatoriamente para sua convenção constitucional de 2012. Na Bolívia, a ONG Democracy in Practice trabalha com escolas para substituir por sorteios as eleições para os conselhos estudantis. Em vez de elevar os suspeitos comuns, esses conselhos recebem uma gama mais variada de estudantes dispostos a liderar e ajudar a resolver problemas reais em suas escolas e comunidades.

À medida que nos preparamos para o aniversário de 250 anos dos EUA, talvez seja hora de repensar e renovar nossa maneira de escolher autoridades. O sangue que corre nas veias da democracia é a participação ativa do povo. Não há nada mais democrático do que oferecer para todos os cidadãos oportunidade igual de liderar. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*Adam Grant é psicólogo organizacional na Wharton School da Universidade da Pensilvânia, autor de “Think Again” e apresentador do podcast TED “Re:Thinking”

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