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Análise|Por que Trump insiste em falar no serial killer fictício Hannibal Lecter?

Trump é o ‘guardião da cripta da década de 1980′, disse um biógrafo do ex-presidente; candidato republicano mencionou Lecter enquanto fazia alegações infundadas sobre imigrantes

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Por Marianne LeVine (The Washington Post) e Clara Ence Morse (The Washington Post)

Hannibal Lecter é um serial killer canibal, amante de favas e um bom chianti, fictício e, agora, uma presença regular nos discursos de Donald Trump.

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Enquanto o candidato presidencial republicano falava a respeito da imigração e da fronteira em um comício em 3 de agosto, em Atlanta, ele declarou: “Eles odeiam quando eu falo do Dr. Hannibal Lecter. O bom e velho Hannibal Lecter”, em uma aparente referência à mídia.

Durante seu discurso de aceitação na Convenção Nacional Republicana no mês passado, ele perguntou: “Alguém viu ‘O Silêncio dos Inocentes’? O bom e velho Hannibal Lecter. Ele adoraria recebê-los para o jantar. São dos hospícios. Eles estão esvaziando seus hospícios.”

Em Wildwood, Nova Jersey, em 11 de maio, ele disse à multidão: “O bom e velho Hannibal Lecter. Era um homem maravilhoso. ... Lembram da última cena?” Trump continuou dizendo: “Temos pessoas sendo liberadas no nosso país que não queremos no nosso país”.

As referências de Trump a Lecter são ao mesmo tempo consistentes e absurdas. Ele normalmente menciona o serial killer fictício no contexto da imigração, alegando sem evidências que os imigrantes estão vindo de asilos e instituições mentais e frequentemente usando linguagem desumanizante.

Cerca de 1% dos presos na fronteira sul têm condenações criminais, mostram dados federais. Há pouca evidência de que imigrantes sem documentos cometam mais crimes do que cidadãos dos Estados Unidos. Muitos imigrantes que cruzam a fronteira dos EUA buscam asilo político aqui, mas esse termo nada tem a ver com doenças mentais. Trump também falou em Lecter antes de ler “The Snake”, um poema que ele usa há anos para transmitir uma mensagem anti-imigrante em seus comícios e eventos públicos.

No entanto, as referências a Lecter revelam algo mais a respeito de Trump: a era em que ele alcançou a fama e seu período anterior como celebridade. Um comício de Trump é uma espécie de cápsula do tempo, um momento congelado em âmbar de uma era anterior, a década de 1980, quando Trump comandava os clubes e tabloides de Nova York e apareceu pela primeira vez na capa da revista Time.

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Trump é o “guardião da cripta da década de 1980″, que foi “o ponto alto de sua vida até se tornar presidente”, disse Tim O’Brien, um biógrafo de Trump que criticou o ex-presidente.

“Toda vez que ele abre a porta, saem pessoas dos anos 1980, seja Roger Stone ou Rudy Giuliani, sai a moda dos anos 80, seja sua gravata monocromática ou ternos que invariavelmente são feitos em duas ou três cores diferentes... a decoração do escritório dele ainda é da década de 1980″, disse ele. “Nenhum de seus gostos foi atualizado em décadas.”

Trump citou 'Silêncido dos Inocentes' em diversos momentos ao longo da campanha, como o discurso de aceitação na Convenção Nacional Republicana no mês passado Foto: Julia Nikhinson/AP

A obsessão de Trump por Hannibal Lecter se encaixa perfeitamente nesse molde. O romance de Thomas Harris, O Silêncio dos Inocentes, no qual o filme se baseia, chegou às livrarias na mesma época que o livro de Trump de 1987, “Trump: The Art of the Deal” (o New York Times colocou os dois livros lado a lado em sua lista de best-sellers de bolso em meados de 1989). O filme, estrelado por Jodie Foster como a cadete do FBI Clarice Starling e Anthony Hopkins como Lecter, foi lançado em 1991 e se tornou o primeiro e único filme de terror a ganhar o Oscar de melhor filme.

Uma década depois, Trump compareceu à estreia de “Hannibal”, a sequência de “O Silêncio dos Inocentes”, em Nova York, em 2001. De acordo com uma reportagem do USA Today, ele chegou à estreia com a futura esposa Melania Trump, então Melania Knauss. A reportagem observou que o estúdio de cinema na época estava preocupado com a reação das mulheres ao sangue. Melania disse que “não teve problemas” e não fechou os olhos. Trump respondeu: “Eu fechei”.

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Trump começou a incorporar O Silêncio dos Inocentes aos discursos em março de 2023. Ele mencionou o filme em um discurso na Conservative Political Action Conference, de acordo com uma análise do Washington Post de seus discursos neste ciclo eleitoral. O próprio Lecter só foi citado em um comício em outubro em Waterloo, Iowa. Em 70 discursos rastreados pelo Post entre o início de sua campanha em novembro de 2022 e 12 de agosto, Trump mencionou Lecter ou o filme O Silêncio dos Inocentes em 20 deles (Trump pareceu reconhecer que as referências a Lecter podem estar desatualizadas, refletindo em um comício em Sioux City que “os jovens” não tinham ouvido falar dele).

As menções a Lecter são uma maneira de Trump continuar “aumentando a aposta” de suas descrições anteriores de imigrantes, disse Gwenda Blair, outra biógrafa de Trump. “Não são apenas criminosos, estupradores, que Trump já usou a partir de 2015... vamos colocar canibais na mistura.”

Trump “é alguém que entende de imagens e branding, e Hannibal Lecter é uma marca bem conhecida de horror absolutamente indescritível”, acrescentou Blair.

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O deputado republicano Jim Banks, de Indiana, que está concorrendo ao Senado, acha que há uma explicação simples. “Foi um ótimo filme”, disse Banks. “É amplamente reconhecido como um dos melhores filmes de todos os tempos. E acho que ele gosta de irritar os liberais com isso.”

Várias pessoas próximas à campanha de Trump disseram que não sabiam a história por trás da fixação de Trump por Lecter e nunca perguntaram. Seus discursos também parecem ter deixado Hopkins, o ator galês que ganhou um Oscar por interpretar Lecter, perplexo. Em uma entrevista ao Deadline, Hopkins observou: “Hannibal, isso foi há muito tempo, esse filme. Deus, isso foi há mais de 30 anos. Estou chocado e horrorizado com o que você me disse a respeito de Trump”.

Em entrevistas no comício de Trump em Atlanta, os eleitores ofereceram diferentes interpretações.

“A primeira vez que ouvi isso, pensei: ‘O quê?’ Mas depois de ouvir algumas vezes, pensei: ‘Ah, agora entendi a conexão’”, disse Jim Scandle, 72 anos. “Ele está tentando mostrar que muitas dessas pessoas que estão entrando ilegalmente neste país são de instituições mentais, assim como Hannibal Lecter. E então, você sabe, não tem nada a ver com Hannibal Lecter, exceto o fato de que ele estava em uma instituição mental.”

Bert Sandler, 66 anos, riu quando perguntado a respeito de O Silêncio dos Inocentes (Sandler não vê o filme há “provavelmente” seis anos, mas exclamou: “Com favas!” ao refletir sobre os comentários de Trump).

Republicano normalmente menciona serial killer fictício no contexto da imigração, alegando sem evidências que os imigrantes estão vindo de asilos e instituições mentais. Foto: Tierney L. Cross/AFP

Ele tinha uma interpretação mais filosófica.

“Acho que ele está apenas falando a respeito de como o mundo está hoje”, disse Sandler. “Acho que é onde estamos, com essa divisão. Acho que ele está apenas tentando retratar um personagem que é bastante divisivo e precisava de muita ajuda, e acho que os EUA precisam de muita ajuda.”

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Debbie Courtney ofereceu uma opinião mais curta: “Eu só penso no mal”. Ela acrescentou: “Não acho que ele esteja falando de alguém comendo outra pessoa no jantar”.

A campanha de Trump não ofereceu mais esclarecimentos a respeito da propensão do ex-presidente em mencionar Lecter ou voluntariou suas posições pessoais sobre favas e um bom chianti. Em vez disso, Steven Cheung respondeu em uma declaração: “O presidente Trump é um contador de histórias inspirador e talentoso, e fazer referência à cultura pop é uma das muitas razões pelas quais ele consegue se conectar com sucesso com o público e os eleitores. Enquanto isso, [a vice-presidente Kamala Harris] é tão carismática quanto um sofá velho.”/TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Análise por Marianne LeVine
Clara Ence Morse
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