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As duas preocupações dos EUA em relação a Israel e o Hamas; leia a coluna de Thomas Friedman

Lideranças republicanas podem comprometer auxílio a Israel e à Ucrânia em momento crítico para os dois países

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Por Thomas Friedman (The New York Times)
Atualização:

Quando nos afastamos o suficiente, podemos ver exatamente quais são as forças que movem a geopolítica atual: a Ucrânia está tentando se juntar ao Ocidente. Israel está tentando se juntar a um novo Oriente Médio. E Rússia e Irã se uniram para tentar impedir ambos.

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Infelizmente, o novo líder da maioria da Câmara dos Estados Unidos, o republicano Mike Johnson, é inexperiente demais ou refém demais da ideologia (ou ambas as coisas) para enxergar isso (ou se importar). Ele está pressionando pela aprovação de um orçamento que ajudaria Israel a se defender melhor, mas privaria a Ucrânia de uma fatia essencial do auxílio econômico e militar americano, tão necessário para reverter o avanço da Rússia.

Ele condicionou até os US$ 14,3 bilhões que o governo deseja enviar a Israel à aprovação do presidente Biden de uma proposta para desviar a mesma quantia de fundos destinados à Receita Federal (IRS) para fiscalizar melhor os sonegadores (atenção, lobby israelense: não aceite esse jogo. Da próxima vez, o auxílio a Israel estará ligado a posições extremas dos republicanos em relação ao aborto ou às armas).

É muita sorte Johnson não ter sido o líder da maioria durante a 2.ª Guerra; talvez ele e seus míopes seguidores aprovassem recursos para guerra contra os alemães na Europa, mas não contra os japoneses no Pacífico. Ou talvez aprovassem um acordo de lend-lease com os aliados, desde que o presidente Franklin Roosevelt eliminasse de vez o IRS. Mais armas, mais manteiga, nenhum imposto e duas frentes.

Israel realizou incursões por terra, mas ataques aéreos em larga escala ainda são principal meio utilizado na guerra até agora Foto: AP Photo/Ariel Schalit

Isso parece uma visão de mundo absolutamente incoerente, que enfraqueceria a liderança americana que definiu os contornos do mundo no qual prosperamos nos cem anos mais recentes, e é. Parece que as lideranças republicanas na Câmara são pensadores pequenos em um jogo maior, e são mesmo. São vergonhosos, sem-vergonha e perigosos. Façam um favor aos Estados Unidos e procurem emprego na Fox News como comentaristas de algum outro assunto.

Porque estamos em um momento de grande importância, comparável a 1945 ou 1989.

Se a Ucrânia conseguir escapar das garras da Rússia e finalmente for aceita na Otan e na União Europeia, com seu formidável exército, suas exportações agrícolas e capacidade tecnológica, isso reforçaria muito uma Europa inteira e livre. E se for possível manobrar Israel de volta à mesa de negociação para tratar de uma solução de dois Estados com a Autoridade Palestina, abrindo o caminho para a normalização das relações entre o Estado judaico e a Arábia Saudita, isso reforçaria muito um Oriente Médio novo e mais plural, desenvolvido em torno dos palestinos, dos demais árabes e dos israelenses, com foco no fortalecimento da resiliência de seus povos diante do futuro, e não na sua resistência um ao outro e ao Ocidente.

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Se essas mudanças sísmicas puderem ocorrer, o mundo pós-Guerra Fria terá uma chance muito melhor de enfrentar outros desafios globais, como a mudança climática, do que se essas mudanças forem sufocadas.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, esteve em Israel e se encontrou com o primeiro-ministro israelense em 18 de outubro Foto: REUTERS/Evelyn Hockstein

Mas não é necessário falar árabe, hebraico, persa, russo ou ucraniano para entender que o Hamas, apoiado pelo Irã, lançou sua guerra para deter a normalização entre sauditas e israelenses, evitando o isolamento de Teerã, e que Vladimir Putin lançou sua guerra para impedir a Ucrânia de expandir uma Europa inteira e livre, evitando o isolamento de Moscou.

A Rússia de Putin e o Irã do líder supremo aiatolá Ali Khamenei têm muito em comum, de acordo com Leon Aron, especialista em Rússia e autor de “Riding the Tiger: Vladimir Putin’s Russia and the Uses of War” [Montando o tigre: a Rússia de Putin e os usos da guerra]. “Os dois líderes nada têm a oferecer ao seu povo além de guerras quase santas, que os ajudam a se manter no poder conservando seus países em guerra ou em pé de guerra”, disse.

E ambos os líderes estão investindo contra outros países cujas aspirações são a antítese da identidade central e tóxica dos regimes russo e iraniano. “A Ucrânia prova que pode haver um país eslavo e ortodoxo, muito próximo da Rússia do ponto de vista étnico, que seja livre, democrático e próspero, com uma orientação política e econômica ocidental, sem precisar de um estado de guerra com o Ocidente nem de um estado policial, como o Belarus, e nem de uma ditadura militar, como a Rússia”, disse Aron.

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Enquanto isso, a normalização das relações entre o estado judaico e a Arábia Saudita, berço do Islã, provavelmente abriria caminho para a normalização entre Israel e o país muçulmano mais populoso do mundo, a Indonésia, bem como a Malásia e, quem sabe mais tarde, o Paquistão. Isso provaria que judeus e muçulmanos não estão destinados a viver eternamente em conflito e pode reavivar a relações nem sempre harmônicas, mas frequentemente harmônicas, que suas comunidades mantiveram durante boa parte da sua história antes do conflito palestino.

Como apontei, nada teria isolado mais o Irã.

E o Hamas sabia que, se Israel conseguisse uma normalização das relações com a Arábia Saudita em termos que satisfizessem a Autoridade Palestina, mais moderada, na Cisjordânia, trazendo vantagens financeiras significativas e mais legitimidade, o modelo de resistência eterna do Hamas em Gaza ficaria totalmente isolado. Assim, o Hamas lançou esta guerra sabendo que ela traria morte e destruição não somente para muitos israelenses, mas também a um número muito maior dos seus próprios civis inocentes. Revoltante. O Irã também sabia disso.

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Tudo isso criou uma imensa oportunidade para Putin. Ele recebeu uma delegação do Hamas em Moscou na semana passada, e já está expandindo suas relações com o Irã; o país fornece a Putin drones e mísseis para matar ucranianos, em troca de tecnologia cibernética, aeronaves avançadas e, possivelmente, equipamento antiaéreo para Teerã. Para Putin, é uma vitória tripla. Ao ajudar o Irã a fomentar uma guerra entre Israel e os representantes iranianos no Oriente Médio, Putin sabe que está obrigando os EUA a enviar mais peças sobressalentes, mísseis Patriot e munição para a artilharia de 155mm para Israel em detrimento da Ucrânia. E se o fluxo de armas para Kiev for subsequentemente interrompido por Johnson e pelos parlamentares republicanos, tudo que Putin terá de fazer é contar os dias até Donald Trump ser reeleito e a Ucrânia ser sua, ou ao menos é o que ele supõe. Além disso, essa instabilidade toda faz subir o preço do petróleo.

Enquanto os republicanos jogam um perigoso jogo com o auxílio econômico e militar, há duas preocupações que os militares americanos dizem ter na cabeça: eles acreditam que os israelenses querem tomar a Cidade de Gaza, onde fica o núcleo da infraestrutura militar e dos homens do Hamas, e em seguida usá-la como base para ataques mais táticos contra a liderança do Hamas e seus lança-foguetes no restante de Gaza, sem ocupar a região. Mas o avanço militar israelense já está encontrando um desafio comum no combate urbano: fica-se preso em um beco e, em resposta, chama-se o poderio aéreo para mandar o inimigo pelos ares, juntamente com tudo que houver ao redor, o que leva a significativas baixas entre os civis. Os EUA não podem ignorar nem defender essa estratégia por muito mais tempo, dizem autoridades do governo americano.

Em segundo lugar, os EUA enxergam um imenso buraco no coração da estratégia de Israel: quem governará em Gaza quando e se o Hamas for expulso? A única possibilidade provável é a Autoridade Palestina, em Ramallah, na Cisjordânia. Mas essas lideranças palestinas só poderão assumir esse papel se Israel permitir que suas capacidades cresçam, desde que consigam governar, e se Israel for visto como defendendo uma solução de dois estados. Mas o atual governo de Benjamin Netanyahu se dedica à anexação da Cisjordânia.

Assim, parece que o exército de Israel está reocupando Gaza para posteriormente entregá-la a algum tipo de Autoridade Palestina legítima, enquanto os políticos e colonos israelenses de extrema-direita fazem hora extra para deslegitimar essa autoridade e expulsar os palestinos da Cisjordânia. É uma contradição estratégica. O que Israel precisa é de um processo de paz com a Autoridade Palestina em meio ao conflito.

A verdade inescapável é a seguinte: Israel não pode sair de Gaza e conservar o apoio ocidental sem um parceiro palestino capaz de governar o local com credibilidade, e a Ucrânia não pode manter o apoio ocidental a não ser que produza algum avanço substancial contra o exército de Putin no inverno que se aproxima, ou que decida que isso é impossível e aceite algum tipo de acordo sujo. Nesse caso, alguma concessão territorial a Putin em troca da garantia da proteção da Otan e uma porta para a União Europeia. Nenhuma liderança ocidental está pronta para dizer isso a Kiev, mas todos sabem disso e acreditam nisso: o apoio do Ocidente à Ucrânia não sustentará uma interminável guerra de atrito.

É por isso que hoje os EUA precisam ajudar Israel e Ucrânia a resistir ao eixo Rússia-Irã em seus teatros locais. Mas, no dia seguinte às suas guerras, Israel e Ucrânia terão de enfrentar algumas escolhas muito difíceis. Afinal, se estamos oferecendo grandes cheques a eles, não se trata de cheques em branco. Eles terão data de validade e exigirão algumas decisões políticas dolorosas em breve, como deveria ser. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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