A proposta de reforma do Judiciário proposta pelo governo do primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, para reduzir severamente os poderes da Suprema Corte provocou semanas de manifestações, abalou o setor de tecnologia do país e levantou temores de violência política. Agora, protestos estão surgindo dentro das Forças Armadas do país.
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Centenas de soldados da reserva militar assinaram cartas expressando relutância em participar de tarefas não essenciais ou já desistiram de missões de treinamento, disseram autoridades. As unidades afetadas incluem a divisão 8200 que lida com sinal e inteligência cibernética e cujos graduados ajudaram a impulsionar a indústria de tecnologia do país, bem como unidades de combate de elite.
A liderança militar teme que a crescente oposição ao projeto nas fileiras militares afete a prontidão operacional das Forças Armadas de Israel, de acordo com altos oficiais militares.
A maior preocupação é um levante dentro da Força Aérea, onde 37 dos 40 integrantes de um esquadrão de elite anunciaram que vão boicotar o próximo treinamento militar por causa dos planos do governo. Eles temem que possam ser chamados a se envolver em operações ilegais, e que as restrições ao judiciário de Israel possam fortalecer os apelos estrangeiros para processá-los no Tribunal Penal Internacional, disseram as autoridades. Os pilotos da reserva geralmente lideram os ataques aéreos regulares de Israel na Síria e na Faixa de Gaza, e estariam envolvidos em qualquer grande ataque israelense às instalações nucleares do Irã.
A agitação entre os militares é a mais recente onda de oposição aos planos do governo de reformar o judiciário depois que protestos levaram centenas de milhares de israelenses às ruas de cidades como Tel-Aviv. Para muitos israelenses, a oposição entre os militares é a reação mais preocupante e significativa aos planos e Natanyahu, que aumentariam o controle do governo sobre como os juízes são escolhidos, limitariam a capacidade da Suprema Corte de derrubar novas leis e tornar mais fácil para o Parlamento anular o tribunal.
Quase 50 líderes de esquadrão representando centenas de pilotos da reserva se reuniram na sexta-feira com o chefe da Força Aérea de Israel para expressar suas dúvidas sobre os esforços de revisão judicial do governo. O corpo de pilotos é predominantemente formado por reservistas que geralmente se apresentam ao serviço três ou quatro vezes por mês.
Democracia em jogo
Muitos israelenses acreditam que o plano do governo de reformar o Judiciário prejudicará a democracia do país. Essa visão é compartilhada por muitos oficiais militares, alguns dos quais participaram de protestos regulares. Pesquisas de opinião da eleição geral de novembro sugerem que a coalizão governista recebeu forte apoio de soldados rasos.
Para os apoiadores do governo, as mudanças no Judiciário são um meio essencial de priorizar a maioria dos legisladores eleitos e tirar poder de juízes não eleitos. Mas, para os críticos, a reforma removeria uma das poucas restrições aos excessos do governo em um país sem uma Constituição formal, ameaçando os direitos das minorias de Israel.
Ambos os lados se acusam de tentativa de golpe, e uma pesquisa recente sugeriu que mais de um terço dos israelenses temem que uma guerra civil possa estourar por causa da crise. Desde o começo do ano, israelenses participaram de protestos em massa contra as propostas, em uma das maiores e mais longas ondas de protestos da história de Israel.
Em Israel, os militares são vistos como um unificador social que unia as partes fragmentadas da sociedade, e que continuam sendo essenciais para a segurança de um país que está envolvido em vários conflitos indiretos, inclusive com o Irã.
Análises sobre o caso
A reunião de sexta-feira entre os cerca de 50 oficiais do corpo de pilotos da reserva e o comandante da Aeronáutica, major-general Tomer Bar, foi realizada no quartel-general da Aeronáutica e foi tensa, disseram alguns dos participantes ao The New York Times.
De acordo com oficiais militares, as preocupações dos reservistas incluíam temores com a reforma do Judiciário, bem como o medo de que o governo, que é liderado em parte por líderes políticos de extrema-direita, pudesse ordenar operações que poderiam ser considerados ilegais.
Na semana passada, um ministro de extrema direita do Ministério da Defesa, Bezalel Smotrich, que também atua como ministro das Finanças, pediu que o Estado “eliminasse” uma cidade palestina no centro da violência recente na Cisjordânia ocupada. Um dos participantes da reunião perguntou como um piloto poderia saber com segurança que, ao receber as coordenadas para bombardear um determinado alvo, não estaria cumprindo tal objetivo, segundo três oficiais.
Julgamento comprometido
Como a reforma prejudicaria a independência do Judiciário em Israel, ela poderia reforçar o argumento de que o sistema judiciário israelense não é adequado para julgar supostos crimes cometidos por israelenses, segundo Roy Schondorf, vice-procurador-geral para assuntos jurídicos internacionais que se aposentou recentemente.
Por sua vez, isso pode aumentar a pressão sobre os promotores do Tribunal Penal Internacional em Haia para acusar oficiais israelenses, diz Schondorf, que supervisionou os esforços para proteger oficiais israelenses de processos internacionais.
Embora nenhuma ameaça formal para evitar o serviço de reserva tenha sido feita na própria reunião, todos, exceto três dos 40 membros do Esquadrão 69, uma força de ataque chave que pilota caças F-15, escreveram posteriormente ao General Bar para retirar-se do treinamento desta semana, mas permanecem disponíveis para missões de combate.
Em uma carta conjunta a Netanyahu e ao ministro da Defesa, Yoav Gallant, na segunda-feira 6, todos os 10 ex-chefes da Força Aérea expressaram “grande preocupação” com os “processos que estão acontecendo no Estado de Israel e na Força Aérea”. A carta acrescentava: “Temos medo das consequências desses processos e da grave e palpável ameaça que pode ser percebida ao Estado de Israel”.
O governo descartou as preocupações e advertências dos reservistas como “ataques de raiva de uma elite privilegiada” com medo de perder seu papel dominante na sociedade. Os “reservistas não são patriotas”, disse Galit Distel Atbaryan, ministro da Informação, em um post nas redes sociais na noite de domingo. “Não são o sal da terra. Não são sionistas. Não são os melhores dos nossos rapazes. Não são pessoas maravilhosas. Não são o povo de Israel”.
Na noite de segunda-feira, Netanyahu, que serviu como oficial em uma unidade de comando, disse em um discurso que as ações dos reservistas “ameaçam a base de nossa existência”. “Há espaço para protesto; não há espaço para rejeição” do serviço militar, disse Netanyahu, ao lado do ministro da Segurança Nacional, e um dos ícones da extrema-direita, Itamar Ben-Gvir, que foi impedido de servir no Exército durante a década de 1990 devido a preocupações com suas visões extremistas. .
Alguns integrantes do governo adotaram um tom mais conciliador. “A situação exige que conversemos, e rapidamente”, disse Gallant, o ministro da Defesa, em um comunicado em vídeo. Também há um debate entre os próprios reservistas sobre a possibilidade de trazer a política para o serviço militar.
À medida que os relatos de descontentamento dos reservistas se espalhavam no fim de semana, um general da reserva da Força Aérea, Ori Seiffert, escreveu uma carta aberta aos colegas reservistas, pedindo que continuassem a servir como pilotos, apesar de se oporem à reforma judicial.
“Como muitos de nós, também estou perturbado e com medo da direção do governo”, escreveu o general Seiffert na carta, obtida pelo The New York Times Times. Mas, acrescentou, “devemos manter o poder da Força Aérea e o poder das Forças de Defesa de Israel”. “Para meus irmãos reservistas, eu digo, proteste e sirva, sirva e proteste”, acrescentou o general Seiffert.
Os reservistas que já optaram por limitar seu dever voluntário disseram que a decisão foi extremamente difícil. Um coronel da reserva da Unidade 8200 – um dos mais de 500 reservistas da ciberdivisão que assinaram uma carta criticando a reforma – disse que a decisão o fez ficar acordado à noite toda, e que ele retornaria rapidamente ao serviço se uma guerra estourasse.
“Se chegarmos a uma situação em que ocorre um ataque ofensivo contra Israel”, disse o coronel de 47 anos, que não quis se identificar por temer ameaças à segurança de inimigos estrangeiros de Israel, “todos nós estaremos lá para proteger os cidadãos de Israel”.
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