O presidente russo, Vladimir Putin, reconheceu nesta segunda-feira, 21, a independência de Donetsk e Luhansk, regiões separatistas no leste da Ucrânia, em confronto com Kiev desde 2014. A decisão abre caminho para que os combatentes que lutam contra o Exército ucraniano na região requisitem assistência militar russa, o que, em tese, abre caminho para uma operação em território ucraniano.
A decisão irritou os países europeus, principalmente a Alemanha e a França. Antes do discurso, a União Europeia ameaçou a Rússia com sanções caso as regiões separatistas fossem reconhecidas. O presidente francês, Emmanuel Macron, que ontem tentou negociarum encontro entre Putin e o presidente americano, Joe Biden, para amenizar a tensão na região, convocou uma reunião de emergência de seu gabinete.
O chanceler alemão, Olaf Scholz, afirmou que o reconhecimento das independências de Donetsk e Luhansk pelo governo russo implicaria em uma "ruptura unilateral" dos acordos de Minsk, enquanto o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, afirmou que o bloco está "preparado para reagir fortemente se Putin reconhecer a independência das regiões".
Entenda a crise
A decisão de Putin é o último desdobramento de uma crise que dura três meses, mas que tem suas origens no fim da Guerra Fria. Com o colapso dos regimes comunistas no Leste Europeu, a aliança militar entre europeus e americanos avançou rumo a leste, com países que antes eram da esfera soviética passando à zona de influência ocidental.
Com a ascensão de Putin ao poder na Rússia, em 2000, lentamente começou uma reação russa no sentido de conter essa expansão para o leste. Isso ocorreu porque, para Putin, é fundamental uma espécie de 'zona-tampão' entre a Rússia e o Ocidente para a defesa estratégica de seu país.
Diante disso, primeiro, o Kremlin trabalhou para desestabilizar governos pró-Ocidente na Ucrânia e no Caucaso, ainda na primeira década deste século. A partir de 2007, a preocupação de Putin com o avanço da Otan o levou a operações militares contra a Geórgia, em 2008, e contra a Ucrânia, com a anexação da Crimeia em 2014.
Em 2021, o presidente russo voltou a se queixar da presença da Otan no leste europeu e da intenção da Ucrânia de se juntar ao bloco. Isso ocorreu em paralelo a duas trocas de comando importantes em países do Ocidente. Nos Estados Unidos, Joe Biden substituiu Donald Trump, e na Alemanha, Olaf Scholz sucedeu Angela Merkel.
Desde novembro, Putin reúne milhares de militares russos nas fronteiras norte e leste da Ucrânia e navios de guerra no Mar Negro. A Otan teme uma invasão da Ucrânia, algo que Putin ainda não decidiu. A pressão militar, no entanto, obrigaria os aliados ou a aceitar uma presença russa cada vez maior no país ou retaliar - com sanções ou militarmente.
Pedidos de reconhecimento
Desde antes da reunião do conselho russo, os líderes das autoproclamadas repúblicas populares de Donetsk e Luhansk fizeram um pedido para que o Kremlin reconheça ambas como Estados independentes. Os pedidos foram exibidos em mensagens de vídeo gravadas e exibidas pelo canal de televisão estatal Rússia 24.
"Em nome de todos os povos da República Popular de Donetsk (RPD), pedimos que reconheça a República Popular de Donetsk como um Estado independente, democrático, social e de Direito", disse Denis Pushilin, líder dos separatistas da região.
"Estimado Vladimir Vladimirovich [segundo nome de Putin], com o fim de impedir a morte massiva dos habitantes da república, peço que reconheça a soberania e a independência da República Popular de Luhansk", disse Leonid Pasechnik, pedindo também que o líder russo estude a possibilidade de firmar um tratado de cooperação de amizade entre Rússia e a RPL.
O Kremlin inicialmente sinalizou sua relutância em reconhecer as regiões como independentes, argumentando que isso efetivamente quebraria um acordo de paz de 2015 para o Leste da Ucrânia que marcou um grande golpe diplomático para Moscou, exigindo que as autoridades ucranianas oferecessem um “autogoverno” às regiões rebeldes. Mas Putin argumentou na segunda-feira que as autoridades ucranianas não mostraram interesse em implementar o acordo.
Tentativas diplomáticas
A reunião do órgão de segurança russo ocorre depois que Macron costurou um encontro entre os presidentes dos EUA e da Rússia, em um último esforço para evitar uma possível invasão da Ucrânia. O Kremlin nega que a reunião já esteja marcada.
O conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, disse que o governo sempre esteve pronto para conversar para evitar uma guerra – mas também estava preparado para responder a qualquer ataque.
“Então, quando o presidente Macron perguntou ao presidente Biden no domingo se ele estava preparado em princípio para se encontrar com o presidente Putin, se a Rússia não invadisse, é claro que o presidente Biden disse que sim”, disse ele ao programa “Today” da NBC na segunda-feira. “Mas todas as indicações que vemos no terreno agora em termos da disposição das forças russas é que elas estão, de fato, se preparando para um grande ataque à Ucrânia.”
O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, disse a repórteres na segunda-feira que Putin e Biden podem se encontrar se considerarem "viável", mas enfatizou que “é prematuro falar sobre planos específicos para uma cúpula”.O gabinete de Macron disse que o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, e o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, devem estabelecer as bases para a possível cúpula quando se reunirem na quinta-feira. O líder francês tem tentado agir como intermediário para evitar uma nova guerra na Europa, e seu anúncio seguiu uma enxurrada de ligações de Macron para Putin, Biden, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson e o presidente ucraniano Volodmir Zelenski.
Tensões crescentes
Mesmo enquanto a diplomacia avançava, havia sinais de escalada no conflito mais amplo. A Rússia e sua aliada Belarus anunciaram no domingo que estavam estendendo a permanência das tropas russas em solo belarusso e os exercícios militares no país, o que poderia servir de palco para um ataque à capital ucraniana, Kiev, localizada a apenas 75 quilômetros ao sul da fronteira de Belarus.
A partir de quinta-feira, os bombardeios também aumentaram ao longo da tensa linha de contato que separa as forças ucranianas e os rebeldes separatistas apoiados pela Rússia na região do Donbass, no Leste da Ucrânia. Mais de 14.000 pessoas foram mortas desde que o conflito eclodiu em 2014, logo após Moscou anexar a Península da Crimeia na Ucrânia.
A Ucrânia e os rebeldes separatistas trocaram acusações pelas violações em massa do cessar-fogo com centenas de explosões registradas diariamente. O mundo está assistindo os combates com cautela desde que as autoridades ocidentais alertaram há semanas que a Rússia procuraria um pretexto para invadir – e que o conflito em Donbass poderia fornecer essa desculpa para uma invasão.
Na sexta-feira, autoridades separatistas anunciaram a retirada de civis, mais de 14 mil já foram retirados, e a mobilização militar diante do que descreveram como uma “iminente ofensiva ucraniana nas regiões rebeldes”. Autoridades ucranianas negaram quaisquer planos de lançar um ataque.
Embora os separatistas apoiados pela Rússia tenham acusado as forças ucranianas de atirar em áreas residenciais, jornalistas da Associated Press que reportaram de várias cidades e vilarejos em território ucraniano ao longo da linha de contato não testemunharam nenhuma escalada do lado ucraniano e documentaram sinais de bombardeios intensificados pelos separatistas que destruíram casas e estradas.
Alguns moradores da principal cidade de Donetsk, controlada pelos rebeldes, descreveram bombardeios esporádicos das forças ucranianas, mas acrescentaram que não foi na mesma escala do conflito de quase 8 anos no Leste.
As autoridades separatistas disseram na segunda-feira que pelo menos quatro civis foram mortos por bombardeios ucranianos nas últimas 24 horas e vários outros ficaram feridos. Os militares da Ucrânia disseram que dois soldados ucranianos foram mortos no fim de semana e outro militar foi ferido na segunda-feira.
O porta-voz militar ucraniano, Pavlo Kovalchiuk, disse que os separatistas estavam “atirando de áreas residenciais usando civis como escudos”. Ele insistiu que as forças ucranianas não estavam respondendo ao fogo.
Em outro sinal preocupante, Moscou também alegou que forças da Ucrânia cruzaram a região russa de Rostov. Os militares russos disseram que mataram cinco suspeitos de serem “sabotadores” que cruzaram a fronteira da Ucrânia e também destruíram dois veículos blindados. O porta-voz da Guarda de Fronteira ucraniana, Andrii Demchenko, descartou a alegação russa como “desinformação”.
Em meio aos crescentes temores de invasão, o governo dos EUA enviou uma carta ao chefe de direitos humanos das Nações Unidas alegando que Moscou compilou uma lista de ucranianos a serem mortos ou enviados para campos de detenção após a invasão. A carta, noticiada pela primeira vez pelo The New York Times, foi obtida pela AP.
Peskov, o porta-voz do Kremlin, disse que a alegação era uma mentira e que essa lista não existe.
Ao longo da crise, os líderes da Ucrânia procuraram projetar calma – repetidamente minimizando a ameaça de uma invasão.
O ministro da Defesa ucraniano, Oleksii Reznikov, disse na segunda-feira que a Rússia reuniu 147.000 soldados ao redor da Ucrânia, incluindo 9.000 em Belarus, argumentando que o número é claramente insuficiente para uma ofensiva na capital ucraniana.
"A conversa sobre um ataque a Kiev do lado belarusso parece ridícula", disse ele, acusando a Rússia de usar as tropas de lá como uma tática de medo.
O principal diplomata da União Europeia, o chefe de política externa Josep Borrell, saudou a perspectiva de uma cúpula Biden-Putin, mas disse que o bloco de 27 países finalizou seu pacote de sanções para uso se Putin ordenar uma invasão.
“O trabalho está feito. Estamos prontos”, disse Borrell. Ele não forneceu detalhes sobre quem pode ser o alvo.
O ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, disse na segunda-feira que a União Europeia também concordou em enviar oficiais militares ao país em um papel consultivo. É provável que leve vários meses para configurar./ AP, EFE e NYT
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