WASHINGTON POST - Em setembro do ano passado, o presidente Vladimir Putin ganhou uma aula de história de uma criança em idade escolar. Putin estava falando a uma plateia de estudantes, na cidade de Vladivostok, no extremo leste do país, a respeito dos méritos de ter “conhecimento sobre o passado”, para obter um “melhor entendimento sobre os dias de hoje”. Num determinado momento, ele invocou o grande legado do czar russo Pedro, o Grande, que, afirmou ele, derrotou a Suécia na Batalha de Poltava, na Guerra dos Sete Anos contra os suecos, em 1709.
Mas o dado histórico não era correto, conforme Nikanor Tolstikh, estudante da cidade de Vorkuta, no Círculo Polar Ártico, recordou o presidente. A Rússia lutou contra a Suécia no conflito que ficou conhecido como Grande Guerra do Norte, que durou mais de duas décadas, de 1700 a 1721. A Guerra dos Sete Anos foi um conflito abrangente, global, que ocorreu posteriormente naquele mesmo século, durante a qual os suecos e os russos estiveram, na verdade, do mesmo lado.
Após esta leve correção, a diretora da escola de Tolstikh lamentou a “arrogância” de seu aluno nos meios de comunicação locais. Em uma outra entrevista, a professora de , Tolstikh admitiu que não teria tido a ousadia de contradizer Putin. Um porta-voz do Kremlin insistiu que Putin detém um “conhecimento absolutamente fenomenal da história”, mas que “ele está sempre pronto para ouvir tais correções, seja de uma criança ou de um especialista”.
Na última quinta-feira, Putin provou que não se esqueceu desta retificação. Em um evento em comemoração ao 350.º aniversário de Pedro, ele se comparou explicitamente ao czar expansionista e celebrou seus anos de conquistas imperiais.
“Pedro, o Grande travou a Grande Guerra do Norte por 21 anos”, afirmou Putin depois de visitar uma exposição em honra a Pedro. “Poderia parecer que ele esteve em guerra contra os suecos, que ele tomou algo deles. Ele não tomou nada deles, ele reassumiu (o que era da Rússia).”
O presidente russo aludiu, então, para a atual “operação especial” na Ucrânia, que ele e sua propaganda estatal também classificam como uma guerra de restauração e retorno — sem se importar com o fato de que a invasão violadora de soberania marca um grave rompimento com o direito internacional e ocasionou muitos bilhões de dólares em prejuízos em vilarejos e cidades da Ucrânia, mortes de milhares de pessoas e perturbações na economia global que colocam em risco outros milhões de seres humanos.
“O que (Pedro) estava fazendo?”, disse Putin. “Reassumindo e fortalecendo. Foi isso o que ele fez. E parece que também cabe a nós reassumir e fortalecer.”
Um fascínio pelo passado
As guerras e a expansão territorial de Pedro ajudaram a forjar os contornos do posterior Império Russo, empurrando suas fronteiras para regiões na Finlândia, ao norte, e no Mar Negro, ao sul. A Batalha de Poltava citada por Putin testemunhou as forças russas impingirem uma surra histórica na Suécia e em suas ambições continentais na Europa. Poucos anos depois, Pedro estabeleceu sua capital a oeste, São Petersburgo, sobre o Mar Báltico, construindo a cidade sobre um forte sueco capturado.
Putin idolatra há muito o monarca do século 18 e mantém uma estátua de bronze do czar sobre a escrivaninha cerimonial de seu gabinete no Kremlin. Em uma entrevista ao Financial Times, de 2019, Putin declarou que Pedro “viverá enquanto viver sua causa”. Na época, o jornal britânico interpretou que a “causa” era preservar a “esfera de influência” de Moscou sobre países nas fronteiras da Otan em expansão.
Mas a atual guerra revelou algo mais assentado profundamente na psique de Putin: uma narrativa de destino mítico que suplanta qualquer imperativo geopolítico e que colocou a Rússia em um curso sangrento de colisão contra o Ocidente. A Ucrânia é para Putin parte inseparável a história russa; foi lá que o cristianismo ortodoxo penetrou a cultura russa mais de mil anos atrás e que, portanto, é um tipo de berço da civilização russa. Putin precedeu a invasão à Ucrânia com um discurso alimentado por animosidade histórica, ralhando contra circunscrições bolcheviques sobre terras russas ao mesmo tempo que rejeitava o direito de facto da Ucrânia à soberania.
“Apesar desse ressentimento parecer situado no que Putin classificou como a tragédia do colapso soviético, sua inspiração imperial se estende ainda mais profundamente ao passado do país”, escreveu a historiadora especializada em Rússia Lynne Hartnett, da Universidade Villanova, no Washington Post. “Conforme Putin descreveu em um discurso em 2012, o reavivamento da consciência nacional russa requer que os russos se conectem com seu passado e se deem conta de que têm ‘uma história comum contínua de mais de mil anos’.”
Outros apontam para legados históricos que não agradam Putin. “Como Putin, Pedro quis construir o poder militar da Rússia e não apenas reformou seu Exército, mas construiu a Marinha do país, da mesma maneira que Putin passou 20 anos modernizando suas Forças Armadas”, escreveu Mark Galeotti na revista The Spectator. “Nesse processo, no entanto, ele iniciou o declínio do Estado russo rumo à insolvência e garantiu que travaria guerras não apenas ao noroeste, mas também ao sul, contra os otomanos”.
A Rússia não é, evidentemente, o único país em que nacionalistas que ocupam o poder são possuídos por tais ressentimentos. O primeiro-ministro iliberal da Hungria, Viktor Orbán, queixa-se das fronteiras delineadas após a 1.ª Guerra, no Tratado de Trianon, e da perda da “Grande Hungria” que se estendeu sobre os Bálcãs. Nacionalistas turcos, por sua vez, lamentam o Tratado de Sèvres, que rasgou o Império Otomano derrotado e fez encolher a pegada turca sobre o Oriente Médio. Na Índia, nacionalistas hindus conjuram a ideia de “Akhand Bharat”, um subcontinente indiano definido pelo alcance histórico da cultura hindu.
Cientistas políticos classificariam esses ímpetos como “revanchistas” ou “reivindicatórios”, em que os políticos açoitam seus apoiadores com com retóricas sobre terras perdidas e comunidades-irmãs separadas por fronteiras injustas. Mas o revanchismo de Putin, ao contrário de nacionalistas de direita em outras partes, provocou neste momento uma conflagração geopolítica sustentada por um crescente número de mortos.
Críticos de Putin apontam para sua incorporação explícita das conquistas de Pedro, o Grande como prova da imprudência que seria oferecer concessões ao Kremlin neste momento. A guerra, argumentam eles, não responde à expansão da Otan nem à fantasiosa crença na necessidade de “desnazificar” Kiev; a guerra expressa, em vez disso, o zelo inflexível de um imperialista do século 21.
“A confessa captura de territórios de Putin e o fato de ele comparar a si mesmo com Pedro, o Grande provam que (para ele) nunca houve um ‘conflito’, mas apenas uma captura sangrenta, sob pretextos forjados a respeito do genocídio de um povo”, tuitou Mikhailo Podoliak, conselheiro do governo ucraniano. “Não deveríamos falar sobre ‘preservar a dignidade’ (da Rússia), mas de sua imediata desimperialização.”
Não precisamos levar em conta mais que Poltava, local da famosa vitória de Pedro sobre a Suécia, mas que atualmente fica dentro da Ucrânia. As autoridades locais não saudaram a invasão russa. Em vez disso, no mês passado um tribunal da região de Poltava considerou culpados por cometer crimes de guerra dois soldados russos aprisionados. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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